Após a apresentação de um importantíssimo evento, um par de senhores de muita classe, ambos cobertos de fatos pesados e de marca clássica, interpelaram o jovem Mestre de Cerimónias:
— Jovem, tudo bem? Quanto talento, ein!? O teu futuro é muito promissor, sabias? — Questionou um dos senhores, cuja aparência, autoridade e presença denotavam ser o líder da dupla.
Manuelinho, comovido pelo reconhecimento, respondeu, sem travões:
— Ora viva, meus ilustres senhores! Não é possível que eu esteja mal e demonstrar tanta energia. Aliás, estou muito bem e firme. Obrigado! Eu sou Manuelinho, natural de Quelimane.
— O teu carisma, a tua postura, firmeza e eloquência fazem de ti um candidato perfeito a grande líder. Podes ser o próximo Presidente do Município de Quelimane — Retorquiu aquele nobre senhor, enquanto o seu parceiro soltava olhares, como um sniper bem treinado, para todos os cantos daquele local. Tudo indicava que eles estavam ali com uma agenda bem estabelecida!
Manuelinho, espantado por aquela abordagem, reagiu, inocentemente, quase atrapalhado:
— Eu faço isso por amor. É algo que me apraz. Na verdade, é uma das coisas que gosto de fazer, além de cantar, compor e produzir músicas clássicas. Já produzi muitos cantores da praça!
Após trocar palavras, em silêncio, com o seu parceiro, o senhor reagiu planificadamente:
— Olha, jovem, aproxima. Temos uma proposta que vai mudar a tua vida e de toda a tua família.
Aproxima-te! O teu talento não pode ser desperdiçado. Não podes desperdiçar a tua influência.
Manuelinho era o filho mais velho do casal José e Marta. Pesava sobre os seus ombros, o cuidado dos seus seis irmãos mais novos. Todos homens. O seu pai era um pacato vendedor de produtos alimentícios no mercado Aquima, em Quelimane. A sua mãe era doméstica. Por isso, desde pequeno, ele teve que se abdicar dos prazeres e encantos de adolescente e jovem. Aos vinte anos, carregava a responsabilidade de um pai de família, o que se reflectia na sua forma de viver e estar, principalmente, pelos conselhos que espalhava com quem conversava.
Quis o destino que ele fosse Produtor Musical. Aliás, ele também é um excelente cantor e compositor de várias melodias e miscelâneas musicais ouvidas por milhares de gente em todo o País e no mundo. Tudo começou por causa do seu gosto pela dança, na altura influenciada por angolanos, que o conduziu aos estúdios da cidade de Quelimane, nos primórdios do seculo vinte e um. Enquanto assistia as gravações de hits, aprendeu a produzir músicas.
O seu gosto pela música, a responsabilidade e os cuidados pela sua família, maioritariamente sem condições, fizeram dele um leitor voraz. Manuelinho lia de tudo. Livros sobre música, história, filosofia, antropologia, sociologia, línguas, Sagradas Escrituras e vários livros de sabedoria ancestral que espalham o conhecimento de bem viver e estar na sociedade. Por isso, ainda cedo, Manuelinho carregava palavras distintas de sabedoria de um admirado ancião.
Ora, o calendário gregoriano marcava, nas suas páginas já cansadas de contagem rotineira, meados do nono mês do calendário de Rómulo, o mês de Novembro. Passava apenas um mês após a eclosão dos ataques extremistas e violentos no Cabo do norte de Moçambique que se tornou palco de danças sangrentas, dormitório recheado de insónia para milhares de mulheres, jovens e crianças, incluindo homens, e asilo repentino de Tutsis e Hutus, num claro jogo de batota à distraída SADC. Aliás, naquele Cabo, como jogo de Xadrez, polícias lideravam soldados!
Tratava-se, além disso, de um momento difícil para a família Sumila. A neta, que em vida respondia pelo nome da esposa do avô Sumila, Marciana, acabara de render o seu espírito para a eternidade, aonde seguem os fiéis que depositam a sua fé no Criador dos céus e da terra.
O Jota, que na altura era jornalista-estagiário na capital do País, no único centro de formação de jovens jornalistas, que hoje brilham em diversas telas televisivas, jornais e organizações nacionais e internacionais, como sobrinho mais velho, havia recebido a trágica notícia da partida da única tia com quem conviveu os seus dias de meninice. Tinha, entretanto, viagem marcada à África do Sul, terra queimada pela ignorância de gente que não sabe o que realmente quer, para participar da Conferência Internacional de Jornalismo Investigativo, onde Cardoso é uma marca!
Como de costume, o Jota teve de solicitar uma isenção para cumprir com as cerimónias fúnebres.
Assim, ele teve que partir para a capital do centro do País, terra conhecida por gerar um povo ‘rebelde’, que não se conforma com as malandrices e planos de líderes sanguinários, cujos cidadãos fazem justiça com as próprias mãos. Além disso, nela não se contratam Presidentes!
Em conversa, nas cadeiras de passageiro da Entre Rios, Manuelinho disse ao seu sobrinho:
— Jota, sabias que, por pouco, eu seria contratado para Presidente do Município de Quelimane? — Como assim? Afinal, os candidatos a Presidente dos Municípios não são eleitos nas autarquias para as quais concorrem? — Questionou, estarrecido, o jovem sobrinho.
— Jota, Jota… Abra os teus olhos! Isso de concorrer às eleições é apenas o resultado de um contrato com gente que nunca aparece nos holofotes. É um emprego e não resultado de uma agenda política do candidato para a autarquia onde concorre. É um jogo político, meu filho.
O sobrinho, possuído de um espírito jornalístico, replicou, sem noção da profundeza dos factos:
— Tio, não é assim como as coisas acontecem. O candidato é eleito no seu partido e organiza seu programa eleitoral, que se transforma, quando eleito, na agenda da sua governação. Outros, entretanto, concorrem de forma independente, como fez Daviz Simango. Não é isso que está previsto no pacote legislativo para eleições autárquicas ou mesmo presidenciais?
— Jota, Jota. Deixa-me revelar-te algo. Como eu disse, queriam contratar-me para ser Presidente do Município de Quelimane.
— Como assim, tio?
— Eu estava a coordenar a organização de um evento importantíssimo. Era o Mestre de Cerimónias. Espalhei muita alegria, sobretudo, palavras ditas com sabedoria e confiança, como sempre tenho feito. No final, dois senhores aproximaram-se de mim e apresentaram a proposta.
— Sério? Que proposta, tio?
— Era um contrato para ser Presidente do Município de Quelimane. Simples quanto isso!
— Ahhh, tio, isso não é possível — Interpelou Jota, tentando buscar mais factos sobre o assunto.
— Eles disseram que me podiam lapidar e treinar, caso eu estivesse interessado. Afirmaram que poderiam mudar a minha vida e da nossa família. Construiriam uma casa para os vovós e alugariam, para mim, um apartamento na cidade para começar a acostumar-me com a vida de luxo que, caso eu aceitasse, seria a minha próxima companheira pelos cinco anos seguintes.
Enquanto o Manuelinho falava, um Chinês atravessou a nossa frente. Era o único passageiro curioso, que fotografava todas as passagens verdes que via ao longo da Estrada Nacional Número Um. Eu até desconfiei, porque já tinha perdido a conta das vezes que ele se havia levantado para registar, com imagens, a nossa floresta verdejante. Pensei nos variadíssimos, alguns não registados, abates de árvores e exportações ilegais de madeiras no País praticados pelos seus compatriotas. Enfim, dirigi o meu olhar ao meu tio, para continuar com a conversa:
— O que mais disseram, tio?
— Aqueles senhores tiraram um calhamaço de papéis com artigos bem organizados. Era o Estatuto do Partido Político que eu deveria representar e o esquema da minha candidatura. Tinham, também, o contrato de admissão como candidato a Presidente do Município. Possuíam um plano de mobilização de massas. Eu apenas seria a imagem que queriam, por ser natural de Quelimane e possuir qualidades que julgaram haver em mim. Era um esquema de tirar o chapéu. — E qual foi a tua reacção, tio? O que disseste?
Manuelinho fez uma pausa. Notei que se tratava de uma decisão difícil que ele deveria tomar, visto que o seu efeito seria de enormes proporcionalidades. Poderia até custar a sua vida.
— É verdade que precisamos de mudar de vida, mas não aceitei a proposta. Eu simplesmente recusei-me, Jota. Eu disse-lhes que não queria entrar naquele esquema. Não nasci para isso!
— E qual foi a resposta que teve deles, tio? — Questionou o jovem jornalista-estagiário.
— Eles disseram: “Infelizmente, acabaste de perder um jackpot, jovem.” E continuaram: “Mas se mudares de ideia, aqui está o nosso contacto. Podes ligar e vamos trabalhar juntos! Lembra-te que podes ser o próximo Presidente do Município de Quelimane.” E depois se foram! Enquanto se retiravam, olhavam para trás, para mim, e faziam dançar as suas cabeças da esquerda para direita e vice-versa. Era um sinal de que eu havia desperdiçado toda a minha vida e futuro!
Naquele instante de conversa, interpelada de vez em quando pelo Chinês que fotograva as zonas verdes, espalhadas pelo nosso vasto e belo território nacional, ao longo da deslembrada Ene Um, quase esquecíamos a triste notícia do falecimento da tia Marciana. Mas não era possível!
Por um instante, fui pensando no facto de os vários partidos políticos, que inundam os boletins de votos durante as épocas das eleições autárquicas e presidenciais, desaparecem logo após as eleições. Eu não sabia que muitas daquelas fotos são de candidatos contratados para concorrem tanto às autarquias, ao Parlamento e à Presidência. Grande parte deles não tem um plano a longo prazo, por isso, quando perdem, o contrato é exterminado e eles continuam no silêncio e a viverem as suas verdadeiras vidas anteriores ao contrato.
No entanto, alguns chegam até a desenhar planos de governação e projectos claros de liderança e transformação das suas autarquias, organização, bem como do País. Porém, as suas vontades voluntárias são substituídas por esquemas políticos que se voluntariam e definem quem deve ser candidato a Presidente de um Município ou País, ou mesmo líder de qualquer Organização!