Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI
João Nhampossa

João Nhampossa

A Assembleia da República é o mais alto órgão legislativo na República de Moçambique ao qual cabe determinar as normas que regem o funcionamento do Estado e a vida económica, social e política através das leis e deliberações de carácter genérico conforme resulta do disposto no artigo 168 e do artigo 178, ambos da Constituição da República de Moçambique (CRM).

 

Ora, para efeitos de reforma ou revisão legislativa, têm iniciativa de lei: os deputados, as bancadas parlamentares, as comissões da Assembleia da República, o Presidente da República e o Governo, conforme dispõe o n.º 1 do artigo 182 da CRM.

 

Para além dos actos legislativos da Assembleia da República, o processo de reforma legal pode operar-se através dos actos normativos do Conselho de Ministros que revestem a forma de decreto-lei e de decreto. Aqui importa lembrar que os decretos-leis do Conselho de Ministro carecem de autorização legislativa da Assembleia da República, conforme se depreende do artigo 179 da CRM.

 

Em Moçambique, o processo de reforma legal tem sido contínuo, seja por falta de lei e demais actos normativos específicos que regem determinadas matérias ou aspectos da vida social, económica, política e cultural do País, seja porque alguma legislação em vigor está desajustada da realidade ou porque apresenta várias lacunas.

 

Existia no País um organismo que se designava Unidade Técnica da Reforma Legal (UTREL) que tinha várias funções específicas em reforma legal e, fundamentalmente, com os objectivos de assegurar a planificação integrada, a coordenação, a articulação, a execução e o acompanhamento dos programas e projectos de reforma legal. No entanto, a UTREL foi extinta sem que tivesse sido substituída por uma entidade com competências similares ou especializada em matéria de reforma legislativa com atribuições e/ou competências próprias para o efeito.

 

Desde então, o processo de reforma legal em Moçambique é feito de maneira um tanto quanto atabalhoada, baseado em critérios de duvidosa transparência, em que são contratados diferentes consultores para o efeito de reforma ou elaboração de determinada legislação a ser aprovada pela Assembleia da República ou pelo Conselho de Ministros, dependendo na natureza ou tipo de actos normativos (Leis, Decreto-leis, Decreto, etc).

 

Casos há em que os consultores contratados não têm domínio bastante para levar a cabo o trabalho de reforma da legislação em causa, de tal gravidade que chegam a elaborar e submeter documentos que não respeitam a estrutura de uma lei e que revelam se tratar de um trabalho maioritariamente de “copy & past” de outros ordenamentos jurídicos, com destaque para Portugal e Brasil, quais autênticos plágios que não respondem aos problemas da realidade moçambicana.

 

Para além disso, em determinadas situações, sem apresentação de razão plausível, não são lançados concursos públicos para a contratação de consultores para a reforma legal e, nos casos de adjudicação directa, também não estão claros os critérios da mesma. Na verdade, a contratação de consultores para a materialização da reforma ou revisão legal tornou-se um negócio maculado, em que o que fala mais alto é a distribuição dos elevados honorários e comissões entre os envolvidos no processo e não o conhecimento e a capacidade técnica.

 

Outrossim, o processo de reforma ou revisão legal em Moçambique raramente é acompanhado da devida participação pública, a qual é feita à velocidade da luz, sem tempo razoável para análise e oferecimento de contribuições consistentes e coerentes, para além de que há significativa exclusão de actores chave da área cuja reforma se opera, como é o caso das organizações da sociedade civil, da Ordem dos Advogados de Moçambique e da academia que não se resume apenas na Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane.

 

Os processos de revisão da CRM, a lei mãe, em particular a de 2004 e sobretudo a de 2018, aprovada pela Lei n.º 1/2018 de 12 de Junho, foram altamente caracterizados por deficiente participação pública. Nesta última revisão constitucional, devido à importância e profundidade das alterações constitucionais introduzidas houve quem defendesse a necessidade de referendo, considerando a adopção da descentralização político-administrativa agora em vigor e a alteração do direito de sufrágio universal e de participação política no que às autarquias locais diz respeito. Porém, a obrigatoriedade de realização do referendo foi completamente ignorada.

 

Importa aqui referir que em alguma participação pública que é levada a cabo em vários casos de reforma legal, ainda que de forma deficiente, as contribuições quase que são ignoradas no documento final aprovado. Trata-se, pois, de uma participação pública forçada, senão forjada, com o intuito principal de legitimar o processo em questão. Algumas organizações são chamadas para oferecer as suas contribuições em prazos extremamente curtos que não permitem a profunda e boa análise dos documentos normativos a aprovar.

 

Em bom rigor, o processo de reforma ou revisão legal está a ser penoso para o Estado do ponto de vista de tempo e dinheiro perdido, bem como da perda de credibilidade das instituições envolvidas neste processo aos olhos dos cidadãos, uma vez que é aprovada legislação de difícil compreensão e implementação.

 

Não faz sentido que a revisão do Código Penal tenha tido sido efectivada no ano de 2014 através da Lei n.º 35/2014, de 31 de Dezembro, para num período de cinco anos, já no ano de 2019, este Código Penal ter sido sujeito à nova revisão com a aprovação e entrada em vigor da Lei n.º 24/2019, de 24 de Dezembro, que aprova o novo Código Penal ora em vigor. Curiosamente, há sinais de que o mesmo é novamente objecto de um processo de revisão devido às várias incongruências estruturais e de conteúdo que apresenta para um bom exercício hermenêutico no interesse do Estado de direito democrático, de justiça social, baseado no respeito pelos direitos humanos.

 

Situação similar verifica-se relativamente ao processo de revisão do Código do Processo Penal que foi efectivado através da aprovação e entrada em vigor da Lei n.º 25/2019, de 26 de Dezembro, em que partes das suas normas são de duvidosa constitucionalidade de tal sorte que foram objecto de acção de inconstitucionalidade junto ao Conselho Constitucional ainda por decidir.

 

Um outro exemplo de obscuridade de reforma ou revisão legal que muito custa ao Estado prende-se com a legislação eleitoral que, obrigatoriamente, é reformada a cada ciclo eleitoral e não obedece a nenhuma orientação de política legislativa senão a vontade e interesses partidários dos principais partidos com assento na Assembleia da República.

 

Alguns regulamentos (decretos) do Conselho de Ministros e Posturas Municipais são elaborados e aprovados de forma problemática, com sérios encargos para o povo, sem que ao mesmo seja dada a oportunidade de participação pública transparente e compreensão das razões e objectivos da reforma ou adopção desses actos normativos, com grande impacto no bolso e condições de vida dos cidadãos.

 

No contexto da COVID-19, foi aprovada a Lei n.º 10/2020, de 24 de Agosto (Lei que estabelece o Regime Jurídico de Gestão e Redução do Risco de Desastres), cuja participação pública foi deficiente e os critérios de contratação de consultores para o efeito não transparente.

 

Actualmente, só para dar alguns exemplos correm processos de reforma ou revisão legal que abrangem áreas ou matéria de grande relevância e interesse público cuja transparência, participação efectiva e abrangente se requer, quais sejam:

 

  1. Proposta de lei que define as regras e os critérios para a fixação da remuneração dos servidores públicos e dos titulares ou membros de órgão público e aprova a tabela salarial única (TSU) a estes aplicáveis, bem como a das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (TSFA);
  2. Proposta de lei de revisão da lei do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado;
  3. Proposta de lei do Sistema da Segurança Social obrigatória dos Funcionários do Estado

 

Portanto, há uma propositada desorganização no processo de produção legislativa que permite com que este processo seja um negócio obscuro altamente lucrativo para determinadas entidades e que fere os princípios mais elementares do processo de produção legislativa, como a democracia e da transparência, tanto é que ultimamente a legislação aprovada é altamente deficiente e dificilmente reflecte a realidade moçambicana. Não há, pois, um verdadeiro debate público, sem discriminação no processo de produção legislativa.

A efectiva garantia pelo respeito e protecção dos direitos humanos, da ordem e segurança pública, bem como da cultura de paz na República de Moçambique depende, não só de um quadro constitucional fundado no Estado de Direito Democrático e de justiça social, baseado no respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, conforme determinam os artigos 1 e 3 da Constituição da República, mas grandemente da adopção de uma política pública criminal abrangente e eficaz que sirva de instrumento orientador tanto para a feitura das leis de combate ao crime, garantia da ordem e tranquilidade públicas, como para a capacitação institucional de toda a estrutura funcional da administração da justiça. Dúvidas não restam de que o Estado moçambicano carece ainda de uma política criminal devidamente concebida e que responda aos problemas aqui levantados ainda que resumidamente.

 

O slogan ou a ideia do combate ao crime, em suas várias dimensões e actualmente com destaque para a chamada criminalidade organizada, sempre constituiu um dos apanágios teóricos da agenda pública nacional de governação, entanto que uma prioridade. Porém, com uma prática quase que insignificante ao ponto de permitir cada vez mais espaço para o recrudescimento da criminalidade, com a fácil introdução de novas formas e/ou tipos de conduta criminal que são praticados ou concebidos a partir dos próprios agentes ou funcionários públicos, cuja função primordial se traduz no combate ao crime, senão vejamos:

 

Há várias evidências assustadoras de que a Polícia da República de Moçambique - PRM e as Forças de Defesa e Segurança (FDS) - enxergam o cidadão e o Estado como uma fonte para o saque e enriquecimento ilícito. Um facto digno de realce da conduta criminal das FDS, na sua vertente de Serviço de Informação e Segurança do Estado (SISE), é que hoje, em certa medida grave, estão em julgamento no famigerado processo das dívidas ocultas e têm sido conotadas como autores de vários crimes em Cabo Delgado, incluindo no desaparecimento de jornalistas e violação da liberdade de imprensa. Ora, esta conduta institucionalmente criminal é extensível à Polícia Municipal (PM), ao Serviço Nacional Penitenciário (SERNAP), a Autoridade Tributária que faz vista grossa ao sistema de fiscalização, sobretudo no tráfego fronteiriço com vista a alimentar o contrabando de diversa ordem.

 

Por sua vez, a Assembleia da República de Moçambique (AR) adopta e aprova leis criminais que não reflectem a realidade do crime em Moçambique sem qualquer orientação consistente e clara de uma política criminal para o efeito. Foi assim que se aprovou por duas vezes, em 2014 e 2019, o Código Penal desestruturado e confuso, bem como um Código de Processo Penal aprovado através da Lei n.º 25/2019, de 26 de Dezembro, o qual se revela deveras incompreensível e de difícil aplicação.

 

Igualmente, a AR provou a Lei de Prevenção e Combate às Uniões Prematuras, a lei contra a violência doméstica, legislação contra a corrupção, o branqueamento de capitais e conexos como é o caso da Lei sobre as vítimas, denunciantes, testemunhas, declarantes ou peritos em processo penal que são, em boa verdade, problemáticas e que não combatem a problemática da conduta criminal de forma eficaz, provavelmente por falta de uma política criminal com os devidos preceitos orientadores.

 

No mesmo sentido, as reformas das instituições relevantes para o combate ao crime são feitas de forma atabalhoada, com métodos duvidosos e com fraca participação pública das entidades ou pessoas com a devida experiência nas áreas em causa. Foi nestes termos que se transformou a Polícia de Investigação Criminal (PIC) para o Serviço Nacional de Investigação Criminal (SERNIC), de forma dissimulada, de tal maneira que o modus operandi da PIC e do SERNIC é o mesmo, senão pior agora. Curiosamente, o Gabinete Central de Combate à Corrupção é testemunha da tendência crescente da corrupção em Moçambique e, infelizmente, não da sua significativa redução como resultado das suas actividades.

 

Hoje, a questão dos raptos é o pão de cada dia dos moçambicanos e são praticados até pelos agentes da PRM, com destaque para o SERNIC. Mais do que isso, é que foram instituídos, pelo menos do ponto de vista prático, grupos operacionais, dos quais um se designa “Esquadrões da Morte” e que integram agentes da PRM, tanto é que os polícias do Grupo de Operações Especiais (GOE), da Força de Intervenção Rápida (FIR), unidade antimotim da PRM, já foram flagrados em actos de execução sumária, entanto que “Esquadrões da Morte.”

 

Os critérios de recrutamento ou de selecção dos agentes da PRM são críticos e há muito que se denuncia a prática da corrupção para o ingresso na PRM. Esta corporação está de tal maneira descredibilizada que quem quer ser agente da PRM é aquele que quase não encontrou outra forma de sobrevivência e que vivia da má conduta. Com muita preocupação da sociedade, as vagas na PRM são vistas como uma licença legal para a prática do crime com recurso aos símbolos e instrumentos do Estado.

 

Um outro exemplo traduz-se na excessiva impunidade pela prática de crimes, o que está praticamente institucionalizado e não se vislumbra um mecanismo orientador claro, prático e eficaz para acabar com a impunidade que alimenta cada vez mais a criminalidade, sobretudo a grande corrupção que envolve os dirigentes do Estado ao mais alto nível.

 

Portanto, para garantir a protecção pelos direitos humanos, a lei e ordem, a salvaguarda da segurança de pessoas e bens, a cultura de paz, a tranquilidade pública, o respeito pelo Estado de Direito Democrático e a observância estrita dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, é preciso colocar o dedo na ferida no sentido de adoptar e implementar uma política pública criminal profundamente moderna, séria, transversal e interdisciplinar focada no respeito pela dignidade humana e defesa da soberania do Estado.

 

João Nhampossa

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

 

  1. Contextualização

“Todos os cidadãos são iguais perante a lei, gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres, independentemente da cor, raça, sexo, origem étnica, lugar de nascimento, religião, grau de instrução, posição social, estado civil dos pais, profissão ou opção política.” É o que está consagrado no artigo 35 da Constituição da República de Moçambique (CRM), o qual está em harmonia com determinados instrumentos internacionais de direitos humanos de que Moçambique é parte, quais sejam: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, só para citar alguns. Aliás, determina o artigo 43 da CRM que: “Os preceitos constitucionais relativos aos direitos fundamentais são interpretados e integrados em harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Carta Africana sobre os Direitos Humanos e dos Povos.” De acordo com estes instrumentos legais, o Estado moçambicano tem a obrigação de garantir a protecção dos direitos humanos e liberdades fundamentais dos seus cidadãos no território nacional e no estrangeiro.

 

  1. Caso Manuel Lourenço Cossa

 

Cidadão moçambicano e jornalista de profissão, ao serviço do Jornal Semanário, Magazine Independente, na Cidade de Maputo, foi vítima de violação do seu direito fundamental de livre circulação, dignidade humana e integridade física pelas autoridades angolanas, no dia 11 de Agosto de 2011, quando se encontrava no Aeroporto de Luanda prestes a entrar para o território angolano em missão de serviço.

 

Na verdade, Manuel Cossa fora convidado pelo Centro de Formação de Jornalistas de Angola, em parceria com a Gender Links, para participar duma formação de capacitação de jornalistas na área de economia e género em Luanda, entre os dias 12 a 15 de Agosto de 2011, particularmente dirigida a jornalistas da SADC. Na sequência, o referido cidadão solicitou o competente visto à Embaixada de Angola em Maputo para poder entrar legalmente neste País, ao que lhe foi concedido conforme as regras de concessão do visto na altura.

 

No entanto, o mesmo foi interdito de entrar no território angolano pelos Serviços de Migração Estrangeiros sem nenhuma explicação. A interdição foi feita com recurso a ameaças, maus tratos, incluindo a violação da integridade do seu passaporte que fora riscado como se de criminoso e imigrante ilegal se tratasse, tendo sido repatriado de imediato para Maputo em circunstâncias de muita humilhação, tendo ficado sem alguns dos seus instrumentos de trabalho, com destaque para o seu computador portátil.

 

Pelo sucedido, Manuel Cossa juntamente com a sua entidade empregadora, o Jornal Magazine Independente, apelaram às  autoridades moçambicanas, particularmente o Ministério dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, para junto ao Estado angolano esclarecer esta situação e reparar os danos sofridos pela violação, mas nada foi feito de que tivesse sido dado a conhecer à vítima, em protecção dos seus direitos.

 

Ao agir da forma como agiram, as autoridades angolanas puseram em causa não só o direito de livre circulação e dignidade da vítima, como também desprezaram e ignoraram a Constituição da República de Moçambique, na medida em que violaram, arbitrariamente, um passaporte (documento do Estado) legalmente emitido pelos Serviços de Migração de Moçambique sem fundamento que justificasse tais actos. Importa aqui referir que, durante muito tempo, Manuel Cossa ficou numa situação de não saber se podia seguramente viajar para o território angolano.

 

Nos termos do disposto no artigo 55 da Constituição da República de Moçambique e da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, de  que Moçambique e Angola são parte, todos os cidadãos gozam do direito de livre circulação no interior e exterior do território nacional, desde que não estejam judicialmente privados desse direito. Quanto a Manuel Cossa, não existe nenhum registo de privação de circulação. Pelo que os actos das autoridades angolanas constituíram, entre outros, violação do seu direito de livre circulação em Angola, uma vez que tinha todos os requisitos legais para o efeito.

 

Assim, no ano de 2012, Manuel Cossa recorreu ao Tribunal Administrativo pedindo o reconhecimento e protecção do seu direito fundamental de livre circulação, integridade física e dignidade humana e, em virtude disso, para que o Estado moçambicano fosse condenado a tomar todas as medidas necessárias para interceder junto ao Estado Angolano com vista à reparação dos danos causados à vítima e a pagar a devida indemnização por perdas e danos derivados das violações em causa.

 

Após oito anos de batalha judicial, em Novembro de 2020, o Plenário do Tribunal Administrativo, através do Acórdão n.º 75/2020, negou provimento ao pedido de Manuel Cossa e deu por encerrado o caso, alegando que, na sequência do sucedido, houve correspondências entre o Estado moçambicano e o Estado angolano, através dos quais, o Ministro das Relações Exteriores, em nome do Presidente da República de Angola, apresentou desculpas ao Governo Moçambicano, no quadro do poder discricionário dos dois Estados à luz dos artigos 47 e 48 da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos que permitem o pedido de desculpas como forma satisfatória de resolução do problema.

 

Todavia, nunca houve pedido de desculpas formais, nem por outra forma, para com a vítima, ao qual nunca foi dado a conhecer resultado de quaisquer correspondências, nem de que forma terá o Estado moçambicano garantido a reparação dos direitos violados pelas autoridades angolanas. Em bom rigor, no presente processo, o Ministério Público promoveu a improcedência do pedido nos termos decididos pelo Tribunal Administrativo.

 

  • Caso Albertina Mabasso

 

Esta cidadã moçambicana, residente na Matola, Província de Maputo, no ano de 2011, foi vítima de amputação brutal do seu dedo polegar esquerdo, acto perpetrado por um dos agentes da polícia sul-africana no posto fronteiriço de Libombo na Província de Mpumalanga, território sul-africano, bem próximo da fronteira de Rassano-Garcia, alegadamente por estar a transportar e vender cabelos artificiais. O autor deste acto violento ficou impune e à vítima não lhe foi concedida uma assistência legal condigna e em tempo útil para a devida reparação dos danos causados, não obstante ter havido denúncia ao Estado moçambicano para o devido apoio jurídico e o caso ter sido bastante noticiado e debatido na imprensa. O autor deste artigo não encontrou informação clara, no domínio público, sobre o desfecho final do caso pela intervenção do Estado.

 

  1. Xenofobia na áfrica do Sul

 

Desde o ano de 2008 que os casos de xenofobia contra os cidadãos moçambicanos, entre outros africanos, têm intensificado. No entanto, escasseia informação detalhada no domínio público que demonstra a prática de esforços eficazes do Estado moçambicano junto ao Estado sul-africano em defesa dos moçambicanos vítimas de acções de xenofobia na África do Sul.

 

  1. Caso Manuel Chang

 

No contexto do famigerado caso das dívidas ocultas e do libelo acusatório da justiça norte-americana sobre este processo, no dia 29 de Dezembro de 2018, as autoridades sul-africanas detiveram, no seu território, o antigo Ministro das Finanças e Deputado da Assembleia da República, Manuel Chang, a pedido das autoridades americanas para a consequente extradição do mesmo para os Estados Unidos da América. Desde então, o Estado Moçambicano, fundamentalmente através da Procuradoria-Geral da República (PGR), tudo tem feito para garantir a defesa de Manuel Chang, que não é Cossa, com vista a ser extraditado para Moçambique.

 

Dos variadíssimos esforços que estão a ser levados a cabo pelo Estado moçambicano desde o ano de 2018 até ao presente momento para a defesa de Chang na África do Sul, destaca-se a informação, ainda que não detalhada, de gastos de muitos milhões de meticais para pagar honorários dos advogados constituídos a favor de Chang e outras despesas relativas a este caso. Aliás, o Estado tem elaborado vários documentos e comunicados de imprensa que demonstram o seu vigor e interesse directo em defender Chang no estrangeiro.

 

  1. Concluindo

 

Tendo por base os casos supra descritos, parece que os cidadãos moçambicanos não têm igual tratamento, em termos de protecção dos seus direitos no estrangeiro, pelo seu próprio Estado que revela escolher a quem garantir pronta protecção dos direitos além-fronteiras. Afinal, que critérios estão a ser postos em prática para a efectiva garantia de defesa dos moçambicanos no estrangeiro ou cujos direitos são violados por autoridades estrangeiras?

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

Entre 2013 e 2014, empresas participadas pelo Estado Moçambicano (Proindicus, EMATUM e MAM), contraíram empréstimos no valor monetário de cerca de 2.2 bilhões de dólares americanos, alegadamente com o objectivo de servir o interesse público, no que respeita fundamentalmente à protecção da Zona Económica Exclusiva (ZEE).

 

Na sequência, houve denúncias, basicamente por via da imprensa, de que se tratava de dívidas ocultas que violavam o quadro legal em vigor no País aplicável para efeito da contração daqueles empréstimos. O Tribunal Administrativo emitiu um relatório relativo à Conta Geral do Estado, no qual declarou uma série de irregularidades e concluiu que o empréstimo havia sido ilegal do ponto de vista de procedimentos, visto que não tinha sido obtida parecer da Procuradoria-Geral da República e muito menos autorização da Assembleia da República, tal como previsto na Constituição da República de Moçambique (CRM).

 

Face a essas irregularidades e/ou ilegalidades, a Procuradoria-Geral da República (PGR) contratou uma auditoria forense que foi realizada pela Kroll, cujas conclusões, mais do que coincidem com as do Tribunal Administrativo, trazem mais dados sobre o modus operandi para a materialização deste calote. Posteriormente, a Assembleia da República constituiu uma Comissão Parlamentar de Inquérito que, por sua vez, chegou às mesmas conclusões que as duas entidades supra identificadas.

 

O Conselho Constitucional da República de Moçambique, assumindo que as dívidas ocultas foram contraídas de forma fraudulenta e em total desrespeito aos ditames da lei, em resposta a acções de inconstitucionalidade interpostas por organizações da sociedade civil lideradas pelo Fórum de Monitoria e Orçamento (FMO), proferiu o Acórdão n° 5/CC/2019 de 3 de Junho referente ao Processo nº 6/CC/2017, incorporado no Processo nº 8/CC/2017 sobre fiscalização sucessiva abstracta de constitucionalidade, através do qual declarou a nulidade dos actos inerentes ao empréstimo contraído pela EMATUM,SA, e a respectiva garantia soberana conferida pelo Governo, em 2013, com todas as consequências legais.

 

Igualmente, o Conselho Constitucional, através do Acórdão n.º 7/CC/2020, de 8 de Maio de 2020, referente ao Processo n.º 05/CC/2019 declarou a nulidade dos actos relativos aos empréstimos contraídos pelas empresas Proíndicos, SA, e Mozambique Asset Management (MAM, SA) e das garantias conferidas pelo Governo, em 2013 e 2014, respectivamente, com todas as consequências legais.

 

No dia 29 de Dezembro de 2018, em conexão com o caso das dívidas ocultas, foi detido na República da África do Sul o antigo Ministro das Finanças e Deputado da Assembleia da República, Manuel Chang, a pedido das autoridades americanas com vista a ser extraditado para os Estados Unidos da América. A acusação deduzida pelas autoridades americanas apresenta detalhadamente os contornos das dívidas ocultas, com indicação expressa, de que, para além das inúmeras irregularidades também detectadas pelas instituições moçambicanas acima mencionadas, houve actos de corrupção cometidos por entidades nacionais e estrangeiras, destacando-se o antigo Ministro das Finanças e figuras do Governo, do Ministério do Interior, das Forças de Defesa e Segurança, incluindo o SISE e pessoas a eles relacionadas.

 

Importa aqui referir, porque de extrema importância, que em 2015 a Procuradoria-Geral da República (PGR) instaurou um processo-crime com referência de N.º 1/PGR/2015 contra as pessoas envolvidas nas dívidas ocultas, o qual está, actualmente, a ser julgado pela 6ª Secção do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo, na chamada Tenda da BO como processo-crime n.º 18/2019-C.

 

No entanto, é de se notar que estranhamente, só a partir da detenção do Manuel Chang na África do Sul, com a acusação deduzida pelas autoridades americanas que tornou de domínio público o facto de existirem indícios suficientes da prática de diversos crimes, incluindo os crimes de peculato, abuso de cargo e função e corrupção, é que a justiça moçambicana começou a encetar diligências palpáveis, por um lado com vista a resgatar Manuel Chang e, por outro, com vista a denunciar outras peças chaves.

 

Com efeito, só a partir da detenção do Manuel Chang é que a PGR deu a conhecer ao público em geral que havia 19 (dezanove) arguidos em conexão com este assunto, destacando-se, de entre eles, o antigo Director Geral do Serviço de Informações e Segurança do Estado (SISE), o Presidente do Conselho de Administração das empresas Proindicus, MAM e EMATUM, que era simultaneamente Director Nacional de Inteligência Económica do SISE, bem como o filho primogénito do antigo Presidente da República, Armando Emílio Guebuza.

 

A judicialização das dívidas ocultas não constitui uma ameaça para a prática da corrupção

 

Não obstante os factos supra mencionados, o Governo negou distanciar-se das dívidas ilegais de tal modo que o posicionamento do mesmo, com destaque para o Ministério das Finanças e Primeiro-Ministro, vai no sentido de que as dívidas são soberanas, porque contraídas para responder aos mais altos interesses do Estado Moçambicano e que, por essa razão, o mais importante é negociar melhores condições de pagamento e garantir assim a credibilidade de Moçambique no plano internacional.

 

O Tribunal Administrativo em sérias dificuldades em responsabilizar os funcionários e agentes do Estado que se envolveram nas dívidas ocultas violando as suas obrigações e as normas do direito administrativo aplicável ao caso de contratação de dívidas externas desta natureza.

 

Num processo obscuro, pelo menos do ponto de vista do custo monetário, o Estado moçambicano, com a PGR na linha da frente tudo tem feito para “resgatar” Manuel Chang e não há informação clara no domínio público sobre quanto está a custar aos bolsos dos moçambicanos os honorários com advogados e demais despesas suportadas pelo Estado neste filme: “O resgate do Chang”.

 

Do ano de 2015, com a instauração do processo-crime sobre as dívidas ocultas e sucessos acontecimentos de ordem judicial até no estrangeiro sobre este caso até ao presente momento em que está a decorrer o julgamento das dívidas ocultas no Tenda da BO com a exposição humilhante de várias entidades públicas e privadas de renome no País, cujas liberdades, bom nome e imagem estão ora limitadas, ora ameaçadas e beliscadas, o que se nota é que não há lição bem aprendida para dissuadir a prática da corrupção e falta de transparência na gestão da coisa pública em Moçambique, senão vejamos, mais o que acima referido:

 

A gestão danosa do dinheiro dos contribuintes ao nível do Instituto Nacional de Segurança Social – INSS tem sido recorrente de tal maneira que esta instituição já é afamada como o saco azul de alguma elite ligada ao sector e ao partido no poder. Aliás, recentemente, a imprensa, com destaque para o semanário independente Canal de Moçambique, divulgou informação bastante preocupante que revelam a institucionalização da corrupção e má gestão dos fundos públicos em que os novos administradores do INSS recebem subsídios milionários só para o início de funções. Os titulares deste sector não demonstram uma atitude pública que esclareça aos cidadãos sobre o que está de facto a acontecer no INSS.

 

Organizações da sociedade civil tendem a denunciar a falta de transparência e má gestão dos dinheiros no que respeita tanto ao projecto SUSTENTA, como relativamente à Agência de Desenvolvimento Integrado do Norte (ADIN) criada no ano passado, sobretudo no contexto de Guerra e do drama humanitário que se vive em Cabo Delgado.

 

De referir que no campo florestal, no que a madeira diz respeito, há muito que há denúncia de esquema de corrupção que permite sobretudo a saída de várias toneladas de tronco, fundamentalmente, com destino à China, tanto é que até num passado recente foi denunciado o desaparecimento de número significativo de contentores cheio de tronco apreendido pelas autoridades de forma bastante estranha. Aliás, importa aqui lembrar que devido ao elevado esquema de abate de árvores e roubo da madeira foi introduzido de levado a cabo pelo antigo Ministério da Terra, Ambiente e Desenvolvimento Rural, a “Operação Tronco” cujos métodos de actuação e transparência foram muito criticados pela sociedade civil.

 

Num outro prisma, não se percebe a transparência na canalização dos valores das taxas e impostos pagos pelos munícipes para o desenvolvimento dos respectivos Municípios. Na verdade, pelo menos ao nível do Município da Cidade de Maputo assiste uma actuação de saque aos munícipes particularmente os pobres, num esquema de impunidade legalizada em benefícios dos agentes municipais que roubam os cidadãos.

 

Outrossim, no que se refere ao contexto da introdução das medidas para o combate a COVID-19, as organizações da sociedade civil sempre contestaram a falta de transparência e sinais de corrupção na divulgação e gestão dos fundos recebidos pelo Governo para fazer face a pandemia da COVID-19.

 

No quadro do modelo da governação descentralizada, ouvimos no ano transato notícias de esquema de corrupção relativamente ao arrendamento de uma residência no valor de 400 mil meticais mensais a favor da Sua Exa. Vitória Diogo, mas que nunca foi esclarecido ao público em geral o que de facto aconteceu e qual foi o desfecho do caso.

 

O comportamento da Polícia da República de Moçambique (PRM), com destaque para o SERNIC e Polícia de Trânsito revelam se tratar de um antro de corrupção sobejamente conhecido pela sociedade, cuja forma de suborno é ora denominado refresco, ora fala como homem. Essa prática tem sido contínua e dificilmente combatida. Aliás, o

 

Comandante Geral da PRM já mandou o conjunto de agentes da PRM de determinada região para a reciclagem por excesso de actos de corrupção, entre os actos que já envergonham Moçambique no Estrangeiro.

 

*Advogado de Direitos Humanos

 

Concluindo

 

Os nossos dirigentes, os demais agentes e funcionário públicos com cargos significantes e nossos empresários, senão lobistas, não revelam estar a aprender algo de bom com o processo das dívidas ocultas para que abandonem a prática da corrupção. Existe uma ideia de que agora é a nossa vez de comer e aqueles em julgamento foram apanhados porque não souberam roubar e assim continua o País a saque de grande dimensão.

 

Quem está a aprender com as dívidas ocultas é o povo. Este conhece hoje alguns conceitos e terminologia jurídica, a forma como se rouba um Estado através dos próprios dirigentes e com recurso as Forças de Defesa e Segurança, incluindo a SISE ao mais alto nível, bem como a forma como se protegem para que não sejam responsabilizados. É o povo o único que está a perceber o custo da corrupção para não praticar sob pena de viver numa interna desgraça e esquecido nas mãos da justiça.

 

Moçambique é caracterizado, pela respectiva Constituição da República, como um Estado de Direito e de justiça social, baseado no respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, conforme se depreende dos artigos 1 e 3 da mesma lei mãe. Outrossim, as alíneas c) e e) do artigo 11 da Constituição da República, respectivamente, consagram como parte dos objectivos fundamentais do Estado moçambicano: “a edificação de uma sociedade de justiça social e a criação do bem-estar material, espiritual e de qualidade de vida dos cidadãos.” “A defesa e a promoção dos direitos humanos e da igualdade dos cidadãos perante a lei.”

 

Curiosamente, há anos que no ordenamento jurídico moçambicano foi instituída a figura de Vice-Ministros, os quais para além de não serem, constitucionalmente, membros do Governo, não tomam decisões por competências próprias senão por delegação dos seus Ministros e em casos raros, atendendo que a principal função dos Vice-Ministros é a de substituir os Ministros em caso de situações de impedimentos destes. Trata-se de uma espécie de suplentes dos Ministros nos vários Ministérios em que tal figura foi concebida. “O Ministério é dirigido por um Ministro, que pode ser coadjuvado por um ou mais Vice-Ministros.” Assim determina o n.º 3 do artigo 43 da Lei n.º 7/2012, de 8 de Fevereiro (Lei de Base da Organização e Funcionamento da Administração Pública).

 

O Governo da República de Moçambique é o Conselho de Ministros, o qual é composto pelo Presidente da República que a ele preside, pelo Primeiro-Ministro e pelos Ministros. É o que dispõe o artigo 199 e o n.º 1 do artigo 200 da Constituição da República. Daqui resulta inequívoco que os Vice-Ministros não integram a composição dos membros do governo e apenas participam em reuniões do Conselho de Ministros na qualidade de convidados, conforme estabelece o n.º 2 do artigo 200 da Constituição.

 

No entanto, em virtude desse cargo de Vice-Ministro que é meramente cosmético, estes beneficiam de uma remuneração significativa aproximada a dos Ministros, incluindo subsídios e/ou regalias e alguma equipa de trabalho de assessoria ou assistência. Em bom rigor, os Vice-Ministros não têm uma função pública que justifique a remuneração que auferem, até porque sequer deviam existir, na medida em que quase que nada fazem para a prossecução do interesse público no contexto da governação ou Administração Pública. Importa aqui referir que o autor do presente artigo não conseguiu, rigorosamente, apurar o valor actual da remuneração dos Ministros e Vice-Ministros e respectivas regalias e/ou subsídios devido à deficiente disponibilização do interesse público no País.

 

De acordo com o n.º 1 do artigo 96 da Constituição da República: “A Política económica do Estado é dirigida à construção das bases fundamentais do desenvolvimento, à melhoria das condições de vida do povo, ao reforço da soberania do Estado e à consolidação da unidade nacional, através da participação dos cidadãos, bem como da utilização eficiente dos recursos humanos e materiais.” Na mesma sequência, determina o n.º 2 do mesmo artigo constitucional que: “Sem prejuízo do desenvolvimento equilibrado, o Estado garante a distribuição da riqueza nacional, reconhecendo e valorizando o papel das zonas produtoras.”

 

Ora, os Vice-Ministros constituem, pois, cargos cosméticos, senão parasitas, de inaceitável elevado custo nas contas do Estado, o que contraria a promoção da justiça social e realização dos direitos humanos, representando mais uma evidência de má distribuição da riqueza entre os cidadãos e o cada vez mais empobrecimento dos pobres que com muito sacrifício pagam impostos para, de entre outras coisas, sustentar os salários e regalias dos Vice-Ministros. 

 

  1. Notas conclusivas

 

Nos termos em que foi concebida e aprovada a função do Vice-Ministro, mais do que promover um Estado despesista e consumista para uma certa classe elitista, promove a discriminação, a desigualdade e injustiça social entre os cidadãos, principalmente entre os funcionários e/ou servidores públicos, com tarefas bastante significativas, quando comparados com os Vice-Ministros.

 

Portanto, os custos suportados pelo Estado com os cargos dos Vice-Ministros contribuem anualmente para a denegação da materialização do direito ao desenvolvimento dos cidadãos no que à distribuição da riqueza para o bem-estar das populações diz respeito, uma vez que parte significativa dos fundos públicos que deviam ser canalizados para a satisfação do interesse público com impacto directo na melhoria das condições de vida dos cidadãos são alocados para alimentar cargos irrelevantes para os objectivos da Administração Pública, conforme é o caso dos Vice-Ministros, cuja eliminação se mostra urgente.

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

  1. A PROBLEMÁTICA

 

O nº 1 do artigo 58 do Decreto n.º 5/2018, de 26 de Fevereiro – Aprova o Regulamento do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado - determina o seguinte: “Ao funcionário de nomeação definitiva pode ser concedida licença registada até 6 meses prorrogáveis até 1 ano, invocando motivo justificado e ponderoso.”

 

Na sequência e relativamente às implicações da concessão da licença determina a alínea c) do n.º 5 do artigo supra mencionado o seguinte: “Que durante o seu gozo, o funcionário não pode exercer qualquer actividade na função pública, nem exercer ou invocar direitos fundados na situação anterior.”

 

Por sua vez, o n.º 1 do artigo 59 do Regulamento do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado estabelece que: “A licença ilimitada é concedida por tempo indeterminado a pedido do funcionário de nomeação definitiva.” De entre outras implicações desta norma predispõe a alínea b) do n.º 1 do artigo em referência que: “Durante o gozo da licença, o funcionário não pode apresentar-se a concurso, ser promovido ou exercer qualquer actividade na função pública, nem exercer ou invocar direitos fundamentados na situação anterior.”

 

A Licença registada e ilimitada está prevista nos n.ºs 10 e 13, respectivamente do artigo 75 da Lei n.º 10/2017, de 1 de Agosto, que aprova o Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado (EGFAE).

 

Ora, por via de um despacho administrativo datado de 30 de Setembro de 2021, o Secretário Permanente do Ministério da Saúde, sob o parecer do Ministério da Administração Estatal e Função Pública decidiu pela interdição de contratação pelos parceiros de cooperação, de recursos humanos do Estado que se encontrem em gozo de licença registada ou ilimitada para exercerem funções no Ministério da Saúde (MISAU). Curiosa e estranhamente, a decisão do MISAU teve por base o disposto na alínea c) do n.º 5 do artigo 58 e na alínea b) do n.º 1 do artigo 59, ambos do Regulamento do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado e pretende, forçosamente, reter os quadros ou os recursos humanos do MISAU por via administrativa como se de uma ditadura se tratasse.

  1. VERGONHOSA FRAUDE À LEI PARA A RETENÇÃO DE QUADROS NA FUNÇÃO PÚBLICA

 

Quando um funcionário ou agente do Estado é contratado pelos parceiros de cooperação para exercer funções nas instituições do Estado, no caso em apreço, no MISAU, tal não significa que esse funcionário ou agente do Estado está, por essa via, a ser recontratado na função pública ou que esteja a estabelecer um novo vínculo de trabalho com o Estado, de tal sorte que a sua vinculação é de natureza privada com o parceiro de cooperação que o contratou.

 

Aliás, o funcionário ou agente do Estado que se beneficiar do regime da licença registada e ilimitada previsto nos artigos supra indicados do Regulamento do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado fica numa situação de perda de várias obrigações e direitos essenciais, incluindo a remuneração. Essa licença registada e ilimitada constitui, também, uma autorização legal para celebrar contratos de trabalho com as entidades privadas, no quadro da legislação laboral aplicável nas relações laborais do Direito Privado. Trata-se, pois, do âmbito da liberdade contratual e de escolha do funcionário ou agente do Estado que não deve ser limitado por despacho sem cobertura legal, conforme é o caso em apreço, quando o mesmo está sob licença registada e/ou ilimitada.

 

Importa aqui esclarecer que a alínea c) do n.º 5 do artigo 58 e na alínea b) do n.º 1 do artigo 59, ambos do Regulamento do EGFAE proíbem que o funcionário e agente do Estado estabeleçam novos vínculos na função pública, o que não é extensível à actividade privada, ao contrário do que pretende dar a entender o supra referido despacho do Secretário Permanente do MISAU. Este órgão está, indubitavelmente, a fazer um exercício hermenêutico falacioso daquelas normas do Regulamento do EGFAE, inesperadamente com a chancela do Ministério da Administração Estatal e Função Pública.

 

A mensagem que se pretende transmitir no despacho do Secretário Permanente do MISAU aqui em análise é clara, no sentido de que visa reter os quadros do MISAU a todo o custo por via de uma ordem traduzida em acto administrativo que não só é contra legem como, acima de tudo, viola a Constituição da República de Moçambique (CRM), no que à liberdade de escolha e direito ao trabalho diz respeito. Não é, pois, com esse tipo de prática, quais sinais ditatoriais que roçam o Estado de Direito Democrático e a justiça social que caracteriza Moçambique, que se vai conseguir a retenção dos recursos humanos no MISAU em concreto e na função pública, em geral, caso a pretensão vertida no despacho em análise seja objecto de efeito multiplicador para outros sectores públicos.

 

A retenção dos recursos humanos na função pública deve ser feita através de adopção e materialização de políticas e estratégias públicas de incentivos que sejam transparentes, justos e atractivos, sem discriminação e num contexto real de inclusão ou de efectiva participação pública dos visados na sua definição.

 

Mais do que isso, é que não compete ao MISAU ou à Administração Pública decidir quem os parceiros de cooperação devem contratar e onde devem trabalhar os seus contratados, desde que esses parceiros não violem a lei.

 

  • CONCLUINDO

 

O despacho do Secretário Permanente do MISAU ofende a CRM, o EGFAE e o respectivo Regulamento, bem como os princípios internacionais sobre a actuação da Administração Pública de que Moçambique é parte, mormente, a Carta Africana sobre os Valores e Princípios da Função e Administração Pública ratificada pelo Estado Moçambicano através a Resolução n.º 67/2012, de 28 de Dezembro.

 

O despacho do Secretário Permanente do MISAU descredibiliza a Administração Pública no que à gestão dos recursos humanos da função pública diz respeito, pela forma como viola a lei. Trata-se, assim, de um acto administrativo que enferma do vício de nulidade, senão de inexistência, sem qualquer efeito jurídico, pelo que não deve prevalecer.

 

O legislador definiu clara e expressamente em que medida pode, dentro do quadro constitucional em vigor, haver restrições dos direitos, liberdades e garantias fundamentais.

 

É preciso garantir melhores condições de trabalho aos funcionários e agentes do Estado se a função pública não quer perder os seus quadros para as entidades privadas.

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

CONTEXTUALIZAÇÃO

 

As dívidas ocultas, cujo julgamento está a ser realizado na famigerada Tenda da BO, pela 6ª Secção do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo, foram declaradas nulas pelo Conselho Constitucional da República de Moçambique.

 

Numa primeira fase, este órgão de soberania especializada em matérias de natureza jurídico-constitucional declarou a nulidade dos actos inerentes ao empréstimo contraído pela EMATUM,SA, e a respectiva garantia soberana conferida pelo Governo, em 2013, com todas as consequências legais. Assim decidiu através do Acórdão n° 5/CC/2019 de 3 de Junho referente ao Processo nº 6/CC/2017, incorporado no Processo nº 8/CC/2017 sobre fiscalização sucessiva abstracta de constitucionalidade.

 

Numa segunda fase, o mesmo Conselho Constitucional declarou a nulidade dos actos relativos aos empréstimos contraídos pelas empresas Proíndicos, SA, e Mozambique Asset Management (MAM, SA) e das garantias conferidas pelo Governo, em 2013 e 2014, respectivamente, com todas as consequências legais. O que fê-lo por via da emanação do Acórdão n.º 7/CC/2020, de 8 de Maio de 2020, referente ao Processo n.º 05/CC/2019.

 

No entanto, os dois acórdãos em referência do Conselho Constitucional não resolveram na totalidade os problemas relacionados com as dívidas ocultas não obstante ter fixado jurisprudência que determina a nulidade das mesmas, deixando muitas zonas cinzentas, sobretudo, para questões de responsabilização dos que causaram as dívidas ocultas.

 

O PROBLEMA

 

Os dois Acórdãos em análise de modo algum chamam directamente à responsabilidade quem quer que seja que esteve envolvido com o processo de contratação das dívidas ocultas, nem de quem se beneficiou das mesmas. Curiosamente, o Conselho Constitucional não faz uma descrição clara e específica de cada acto relativo aos empréstimos contraídos pelas empresas EMATUM,SA, Proíndicos, SA, e Mozambique Asset Management (MAM, SA) e das garantias conferidas pelo Governo, em 2013 e 2014, que declarou nulo. No mesmo sentido, não diz expressa e inequivocamente quais as consequências legais da declaração da nulidade das dívidas ocultas que proferiu, deixando essa interpretação ao critério do intérprete ou da sociedade interessada.

 

Uma análise mais atenta permite perceber que esses actos e garantias conferidas pelo governo, ora declarados nulos, foram praticados por diferentes agentes, órgão, entidades e instituições públicas e privadas de diversa natureza e categoria, mas que não estão identificados nos Acórdãos supra referidos. Aqui, fica a questão jurídica de saber se o Conselho Constitucional tinha ou não a obrigação de fazer referência aos actos que declarou nulos! Afinal, são actos que de per si não tem vontade própria, alguém os praticou sem obedecer os procedimentos legais essenciais para o efeito! Ora, quem são essas pessoas e em que qualidade manifestaram a vontade efectiva de praticar actos nulos que levaram ao endividamento do Estado Moçambicano naquilo que hoje se considera o maior escândalo de corrupção da história de Moçambique?

 

Na verdade, o Conselho Constitucional alegrou, em parte, a sociedade civil, mas, em bom rigor, sacudiu o capote transferindo o problema para os outros órgãos da administração da justiça, incluindo o Ministério Público, que devem investigar esses actos de modo a identificar os seus autores para a competente responsabilização dependendo da natureza da infracção cometida, se criminal, administrativa, financeira ou outra, com a consequente reparação dos danos causados ao povo moçambicano. É isto que interessa ao povo e a justiça na intervenção do Tribunal que julga as dívidas ocultas e não decisões problemáticas.

 

Com efeito, importa questionar para saber até que ponto as instituições do Estado relevantes para o caso estão a fazer esse exercício de investigação de modo a se operacionalizar os Acórdãos do Conselho Constitucional que aqui se discute a sua relevância. Aliás, é mister questionar a relevância dos mesmos nos processos em cursos relacionados com as dívidas ocultas, seja o Processo n.º 18/2018-C, com termos na 6ª Secção do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo, (julgamento na Tenda da BO), seja os chamados processos autónomos, cuja informação sobre os seus termos é escassa, apesar de se tratar de matéria de grande interesse público. Com esta posição não se pretende ignorar o respeito pelas questões de segredo de justiça ou de matéria classificada, nos termos da lei aplicável.

 

CONCLUSÃO

 

Os acórdãos do Conselho Constitucional sobre as dívidas ocultas são muito simplistas para a dimensão ou complexidade do problema que apreciou e decidiu, deixando muitos espaços de penumbra para a compreensão da causa e resolução do conflito em causa de forma eficaz.

 

Trata-se, pois, de decisões proferidas pelo Conselho Constitucional de forma tímida no que respeita a abertura de caminhos inequívocos para a responsabilização dos autores das dívidas ocultas.

 

O Conselho Constitucional devia indicar, pelo menos, os actos cruciais e os seus actores que permitiram a contratação das dívidas ocultas, demonstrando os procedimentos essenciais violados pelos mesmos, o que ia contribuir para acabar ou reduzir os espaços de impunidade dos visados, os lesa pátria.

 

Os Acórdãos do Conselho Constitucional devem ser mais exaustivos, pedagógicos, integrando uma jurisprudência de qualidade como se de uma escola jurídico-social e de ética pública se tratasse e que chama à responsabilidade para o respeito aos princípios que norteiam a Constituição da República de Moçambique. É, pois, por isso que o n.º 1 do artigo 240 da Constituição define o Conselho Constitucional como o órgão de soberania, ao qual compete especialmente administrar a justiça, em matérias de natureza jurídico-constitucional.

 

João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

O Conselho Constitucional da República de Moçambique proferiu o Acórdão n° 5/CC/2019 de 3 de Junho referente ao Processo nº 6/CC/2017, incorporado no Processo nº 8/CC/2017 sobre fiscalização sucessiva abstracta de constitucionalidade, através do qual declarou a nulidade dos actos inerentes ao empréstimo contraído pela EMATUM,SA, e a respectiva garantia soberana conferida pelo Governo, em 2013, com todas as consequências legais. Outrossim, o Conselho Constitucional, através do Acórdão n.º 7/CC/2020, de 8 de Maio de 2020, referente ao Processo n.º 05/CC/2019 declarou a nulidade dos actos relativos aos empréstimos contraídos pelas empresas Proíndicos, SA, e Mozambique Asset Management (MAM, SA) e das garantias conferidas pelo Governo, em 2013 e 2014, respectivamente, com todas as consequências legais.

 

Nos termos conjugados do artigo 247 da Constituição da República de Moçambique (CRM) e do artigo 4 da Lei n.º 6/2006, de 2 de Agosto, com alterações introduzidas pela Lei n.º 5/2008, de 09 de Julho, Lei Orgânica do Conselho Constitucional (LOCC) resulta inequívoco que: “Os acórdãos do Conselho Constitucional são de cumprimento obrigatório para todos os cidadãos, instituições e demais pessoas jurídicas, não são passíveis de recurso e prevalecem sobre outras decisões.” Do n.º 2 dos ambos artigos supra referidos, está consagrado que: “Em caso de incumprimento dos acórdãos (…), o infractor incorre no cometimento de crime de desobediência, se crime mais grave não couber.” Adicionalmente, o artigo 214 da CRM estabelece que: “As decisões dos tribunais são de cumprimento obrigatório para todos os cidadãos e demais pessoas jurídicas e prevalecem sobre as de outras autoridades.” O que significa que a lei é clara sobre o valor, natureza e eficácia jurídica dos acórdãos do Conselho Constitucional.

 

O PROBLEMA

 

Nos dois Acórdãos em referência, os quais foram esperados com muita expectativa pela sociedade civil, o Conselho Constitucional fundamentou a sua decisão esgrimindo que praticados para contrair as dívidas ocultas são actos inválidos, actos administrativos nulos, por força das disposições combinadas do n.º 2, do artigo 35 da lei n.º 7/2014, de 28 de Fevereiro, e da alínea a) do n.º 2, do artigo 129 da Lei n.º 14/2011, de 10 de Agosto, com consequência jurídica nas Resoluções da Assembleia da República que pretenderam “legalizar” as dívidas ocultas em questão.

 

Ora, não obstante a obrigatoriedade e a irrecorribilidade das decisões do Conselho Constitucional, o Governo não se mostra cumpridor dos supra mencionados acórdãos, tanto é que avançou com a reestruturação e/ou renegociação das dívidas ocultas em causa para o seu efectivo pagamento aos seus credores, supostamente porque esses acórdãos não são válidos no plano internacional. Mas o Governo, ao contrair as dívidas ocultas, tinha de seguir procedimentos legais essenciais do ordenamento jurídico moçambicano para que as mesmas fossem válidas não só no plano nacional, mas também no plano internacional. Por isso, a seguinte inquietação: Que valor e eficácia jurídica os acórdãos em referência têm relativamente ao pagamento ou não das dívidas ocultas? O Governo está ou não em situação de violação do artigo 247 CRM e do artigo 4 da LOCC? Este artigo não responde cabalmente a estas questões, porém, procura demonstrar a quem cabe responder e por que razão.

 

Por um lado, o Ministério Público, na qualidade de garante da legalidade e com poderes para o exercício da acção penal devia se pronunciar sobre a problemática da violação dos acórdãos do Conselho Constitucional supra indicados, no sentido de esclarecer a sociedade em que medida esses acórdãos estão ou não a ser violados pelo Governo. A acção pela violação dos acórdãos do Conselho Constitucional cabe, em primeira linha, ao Ministério Público que também não se está a pronunciar devidamente sobre a (i)legalidade da reestruturação da dívida e seu pagamento pelo Governo no contexto dos referidos acórdãos que anulam os actos que deram lugar às dívidas ocultas.

 

Por outro lado, o Conselho Constitucional, entanto que “órgão de soberania, ao qual compete especialmente administrar a justiça, em matéria de natureza jurídico-constitucional,” em conformidade com o nº 1 do artigo 240 da CRM e considerando, sobretudo, a sua função educacional estipulada no artigo 212 da CRM nos seguintes termos: “Os Tribunais educam os cidadãos e a administração pública no cumprimento voluntário e consciente das leis, estabelecendo uma justa e harmoniosa convivência social”; é mister que o Conselho Constitucional venha a público, revestido da sua função pedagógica, não no sentido de dar parecer, mas explicar a sociedade o valor, eficácia jurídica, sentido e alcance das suas decisões, sobretudo quando são muito problemáticas em termos de compreensão da eficácia das mesmas à semelhança dos acórdãos que proferiu sobre as dívidas ocultas, objecto deste artigo.

 

Em bom rigor, não faz sentido estes acórdãos não serem percebidos do ponto de vista do valor jurídico prático quando versam sobre um problema de interesse público de grande dimensão, tendo em conta ainda que declara nulos os actos que permitiram o endividamento dos moçambicanos. Mas a nulidade de tais actos, na prática, é também “nula e de nenhum efeito”, na medida em que o avançar no pagamento das dívidas ocultas pelo Governo esvazia completamente o conteúdo dos acórdãos em questão de tal modo que se torna indiferente a existência dos mesmos.

 

Importa aqui referir que é difícil perceber os acórdãos do Conselho Constitucional em análise de forma isolada sem relacionar com os outros processos judiciais existentes sobre a mesma matéria no que respeita à gestão das expectativas da sociedade relativamente ao comportamento, força e integridade do judiciário como é o caso do famigerado julgamento das dívidas ocultas que se avizinha no quadro do Processo n.º 18/2019-C, com termos na 6ª Secção do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo.

 

CONCLUSÃO

 

Qual a ratio dos acórdãos do Conselho Constitucional sobre as dívidas ocultas senão decisões políticas com pele jurídica ou decisões jurídicas com conteúdo e valor político? Na verdade trata-se, pois, de uma espécie de norma jurídica “morta” e caso para dizer que “a montanha pariu um rato.” O carácter moribundo dos acórdãos em questão cria um certo cepticismo sobre a eficácia do julgamento das dívidas ocultas que inicia no dia 23 de Agosto corrente e sobre a esperança pela emanação de uma decisão justa e conscienciosa de cunho jurídico e não meramente de interesses políticos.

 

No que à geração vindoura de profissionais da justiça diz respeito, é complicado ensinar o valor e eficácia da jurisprudência do Conselho Constitucional com base nos acórdãos em alusão nas Escolas de Direito, senão numa vertente exclusivamente teórica.

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

INTRODUÇÃO

 

O judiciário em Moçambique, pelo menos ao nível dos diferentes tribunais e do Ministério Público, mostra-se sobrecarregada de processos, desde os mais simples aos mais complexos, incluindo os mediáticos, o chamados “processos quentes” pela natureza e dimensão do objecto dos mesmos, as vezes ligados à corrupção, desvio de fundos públicos ou má gestão da coisa pública, violação sexual, furto, roubo, violação de direitos humanos de diversa natureza, responsabilidade civil do Estado, matérias sensíveis de família, processos laborais, etc.

 

Ora, não obstante o reconhecimento público de que os magistrados judiciais e do Ministério Público estão assoberbados de trabalho, para além da problemática da escassez dos mesmos a nível nacional, tendo em conta a elevada demanda processual, ou seja, a cada vez mais intensa procura pela justiça pelos cidadãos; dúvidas não restam de que a tramitação dos processos nos tribunais e no Ministério público é excessiva e abusadamente morosa, com alguma cobertura legal e de certa maneira institucionalizada, entanto que uma prática reiterada sem nenhuma consequência do ponto de vista de responsabilização de quem pratica a morosidade processual.

 

Em bom rigor a lei define prazo para a prática de actos dos juízes, bem como prazo geral para as promoções ou pareceres do Ministério Público nos termos seguintes: “Na falta de disposição especial, os despachos que não sejam de mero expediente serão proferidos dentro do prazo de cinco dias. Os despachos de mero expediente serão proferidos no próprio dia, salvo o caso de manifesta impossibilidade.” (Cfr. n.º 2 do artigo 159 do Código do Processo Civil). “As promoções do Ministério Público são dadas dentro do prazo de três dias, salvo se outro for fixado por lei ou pelo juiz.” (Cfr. artigo 160 do Código do Processo Civil). Por sua vez, o artigo 658.º do Código em referência estabelece que: “Concluída a discussão do aspecto jurídico da causa, vai o processo concluso ao juiz, que proferirá sentença dentro de quinze dias.”

 

O PALCO DA MOROSIDADE PROCESSUAL

 

Há processos que duram por mais de cinco ou dez anos a serem tramitados e em muitos casos apenas aguardando a realização de julgamento ou da proferição da decisão final. Os tribunais comuns, cujo órgão superior da hierarquia é o Tribunal Supremo, e o Tribunal Administrativo revelam-se os campeões da morosidade processual. Estes tribunais constituem uma espécie de local onde os processos entram em estado de coma prolongado, ou seja, sine die, sobretudo quando se trata processos de interesse público de matérias de natureza económica/financeira, política ou que envolve altos dirigentes do Estado ou ainda processos que visam a protecção dos direitos humanos, incluindo processos relativos ao pagamento de indeminização, acesso à saúde, educação e ao emprego por parte dos cidadãos, só para dar alguns exemplos que relevam para o prejuízo da salvaguarda do efeito útil dos processo judiciais ou da justiça. Os processos no âmbito da proteção dos direitos das comunidades afectadas pelos grandes investimentos, com destaque para a indústria extractiva são evidências da morosidade processual propositada. O Tribunal Administrativo leva uma eternidade para decidir sobre determinado processo e muitas das vezes profere seus Acórdãos, excessivamente demorados, escudando-se em questões meramente formais que obstam ao conhecimento do mérito da causa, como é o caso da falta de constituição de advogado ou falta de indicação da parte contra-interessada no processo ou caducidade do direito de interposição do processo ou ainda incompetência do tribunal. Ora, não é compreensível durar com um processo cinco, dez ou mais anos para decidir com base em questões de mera formalidade, sem discutir o fundo da causa, quando apreciação processual das questões formais pode ser feita em poucos meses.

 

Outrossim, o Ministério Público tem dificuldades em tramitar, com a necessária celeridade, os referidos processos quentes em que estão implicados altos dirigentes do Estado ou em que estão em causa os interesses políticos do Partido no poder ou ainda em que está em causa a responsabilidade do Estado por violação dos direitos humanos e liberdades fundamentais dos cidadãos.

 

As providências cautelares, que são processos de natureza urgente nos termos da lei, também são remetidas para as gavetas judiciais da morosidade processual e aqui o Tribunal Administrativo também se destaca pela negativa, na medida em que os Juízes Conselheiros do mesmo têm plena consciência de que não vão ser sujeitos a qualquer responsabilização por essa conduta ociosa em prejuízo da realização da justiça pelo cidadão. 

 

A lei não é clara quanto a responsabilização contra os magistrados pela prática da morosidade processual em prejuízo do acesso à justiça. O juiz pode ficar uma eternidade sem proferir sentença ou Acórdão e não é responsabilizado por isso. A lei não indica de forma expressa e inequívoca a sanção a aplicar aos magistrados judiciais por violação das normas sobre o prazo judicial para a práctica de actos pelos mesmos.

 

No mesmo sentido, a lei não especifica a sansão a aplicar os magistrados do Ministério Público por violação dos prazos processuais a que estão obrigados a cumprir nos termos da lei.

 

Na jurisdição laboral, os processos também tendem a ser objecto de excessiva morosidade para a realização de julgamento, uma vez praticados todos os actos processuais necessários para o efeito. Há cidadãos que aguardam a realização de julgamento dos seus casos há mais de dois anos. Nos casos de despedimento dos trabalhadores e que reivindicam indeminização no tribunal por despedimento sem justa causa é extremamente doloroso e injusto a longa espera, sobretudo quando devem pagar os elevados encargos judiciais enquanto estão na condição de desempregados e sobretudo quando são a parte vencida no processo.

 

Regar geral, do ponto de vista de normas internas da corporação, os magistrados judiciais são obrigados a cumprir metas em termos de números de processos julgados, o que releva para a avaliação do desempenho do magistrado e por vezes são distinguidos por atingir essas metas, uma espécie de premiação. Curiosamente, trata-se de uma avaliação quantitativa e não necessariamente qualitativa. Não interessa a qualidade das decisões, o tipo e a complexidade do processo em causa. Daí que, por exemplo, nos processos crimes, o juiz ou juíza que julga vários processos sumários-crime, que geralmente não são complexos, independentemente de julgar sem fundamentar devidamente as suas decisões, é percebida como tendo bom desempenho processual.

 

CONCLUINDO

 

São significativos os casos em que os cidadãos perdem interesse pelos seus processos judiciais devido a irrazoável morosidade chegando ao ponto dos tribunais julgarem extinto o processo por alegada falta de interesse do autor do mesmo. O pior é que com essa decisão o tribunal cobra coercivamente as custas do processo à vítima da morosidade processual. Curiosamente, nestes casos de cobrança do valor das custas judiciais os tribunais são altamente céleres e implacáveis.

 

Os tribunais hipotecam as vidas dos cidadãos que vivem reféns do desfecho dos seus casos numa difícil e penosa gestão de expectativas.

 

Pelo que, urge uma “task force” séria e eficaz que congregue advogados, magistrados judicias e do ministério público, Provedor de Justiça, Comissão Nacional dos Direitos Humanos, bem organizações da sociedade civil relevantes para esta matéria com vista a uma investigação e monitoria da morosidade processual, bem como para a reforma legal sobre a responsabilização dos magistrados pela morosidade dos processos. É, pois, preciso colocar fim a esta prática injusta, legalizada, institucionalizada e recorrente no judiciário.

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

Pág. 4 de 5