A efectiva garantia pelo respeito e protecção dos direitos humanos, da ordem e segurança pública, bem como da cultura de paz na República de Moçambique depende, não só de um quadro constitucional fundado no Estado de Direito Democrático e de justiça social, baseado no respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, conforme determinam os artigos 1 e 3 da Constituição da República, mas grandemente da adopção de uma política pública criminal abrangente e eficaz que sirva de instrumento orientador tanto para a feitura das leis de combate ao crime, garantia da ordem e tranquilidade públicas, como para a capacitação institucional de toda a estrutura funcional da administração da justiça. Dúvidas não restam de que o Estado moçambicano carece ainda de uma política criminal devidamente concebida e que responda aos problemas aqui levantados ainda que resumidamente.
O slogan ou a ideia do combate ao crime, em suas várias dimensões e actualmente com destaque para a chamada criminalidade organizada, sempre constituiu um dos apanágios teóricos da agenda pública nacional de governação, entanto que uma prioridade. Porém, com uma prática quase que insignificante ao ponto de permitir cada vez mais espaço para o recrudescimento da criminalidade, com a fácil introdução de novas formas e/ou tipos de conduta criminal que são praticados ou concebidos a partir dos próprios agentes ou funcionários públicos, cuja função primordial se traduz no combate ao crime, senão vejamos:
Há várias evidências assustadoras de que a Polícia da República de Moçambique - PRM e as Forças de Defesa e Segurança (FDS) - enxergam o cidadão e o Estado como uma fonte para o saque e enriquecimento ilícito. Um facto digno de realce da conduta criminal das FDS, na sua vertente de Serviço de Informação e Segurança do Estado (SISE), é que hoje, em certa medida grave, estão em julgamento no famigerado processo das dívidas ocultas e têm sido conotadas como autores de vários crimes em Cabo Delgado, incluindo no desaparecimento de jornalistas e violação da liberdade de imprensa. Ora, esta conduta institucionalmente criminal é extensível à Polícia Municipal (PM), ao Serviço Nacional Penitenciário (SERNAP), a Autoridade Tributária que faz vista grossa ao sistema de fiscalização, sobretudo no tráfego fronteiriço com vista a alimentar o contrabando de diversa ordem.
Por sua vez, a Assembleia da República de Moçambique (AR) adopta e aprova leis criminais que não reflectem a realidade do crime em Moçambique sem qualquer orientação consistente e clara de uma política criminal para o efeito. Foi assim que se aprovou por duas vezes, em 2014 e 2019, o Código Penal desestruturado e confuso, bem como um Código de Processo Penal aprovado através da Lei n.º 25/2019, de 26 de Dezembro, o qual se revela deveras incompreensível e de difícil aplicação.
Igualmente, a AR provou a Lei de Prevenção e Combate às Uniões Prematuras, a lei contra a violência doméstica, legislação contra a corrupção, o branqueamento de capitais e conexos como é o caso da Lei sobre as vítimas, denunciantes, testemunhas, declarantes ou peritos em processo penal que são, em boa verdade, problemáticas e que não combatem a problemática da conduta criminal de forma eficaz, provavelmente por falta de uma política criminal com os devidos preceitos orientadores.
No mesmo sentido, as reformas das instituições relevantes para o combate ao crime são feitas de forma atabalhoada, com métodos duvidosos e com fraca participação pública das entidades ou pessoas com a devida experiência nas áreas em causa. Foi nestes termos que se transformou a Polícia de Investigação Criminal (PIC) para o Serviço Nacional de Investigação Criminal (SERNIC), de forma dissimulada, de tal maneira que o modus operandi da PIC e do SERNIC é o mesmo, senão pior agora. Curiosamente, o Gabinete Central de Combate à Corrupção é testemunha da tendência crescente da corrupção em Moçambique e, infelizmente, não da sua significativa redução como resultado das suas actividades.
Hoje, a questão dos raptos é o pão de cada dia dos moçambicanos e são praticados até pelos agentes da PRM, com destaque para o SERNIC. Mais do que isso, é que foram instituídos, pelo menos do ponto de vista prático, grupos operacionais, dos quais um se designa “Esquadrões da Morte” e que integram agentes da PRM, tanto é que os polícias do Grupo de Operações Especiais (GOE), da Força de Intervenção Rápida (FIR), unidade antimotim da PRM, já foram flagrados em actos de execução sumária, entanto que “Esquadrões da Morte.”
Os critérios de recrutamento ou de selecção dos agentes da PRM são críticos e há muito que se denuncia a prática da corrupção para o ingresso na PRM. Esta corporação está de tal maneira descredibilizada que quem quer ser agente da PRM é aquele que quase não encontrou outra forma de sobrevivência e que vivia da má conduta. Com muita preocupação da sociedade, as vagas na PRM são vistas como uma licença legal para a prática do crime com recurso aos símbolos e instrumentos do Estado.
Um outro exemplo traduz-se na excessiva impunidade pela prática de crimes, o que está praticamente institucionalizado e não se vislumbra um mecanismo orientador claro, prático e eficaz para acabar com a impunidade que alimenta cada vez mais a criminalidade, sobretudo a grande corrupção que envolve os dirigentes do Estado ao mais alto nível.
Portanto, para garantir a protecção pelos direitos humanos, a lei e ordem, a salvaguarda da segurança de pessoas e bens, a cultura de paz, a tranquilidade pública, o respeito pelo Estado de Direito Democrático e a observância estrita dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, é preciso colocar o dedo na ferida no sentido de adoptar e implementar uma política pública criminal profundamente moderna, séria, transversal e interdisciplinar focada no respeito pela dignidade humana e defesa da soberania do Estado.
João Nhampossa
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos