A Assembleia da República é o mais alto órgão legislativo na República de Moçambique ao qual cabe determinar as normas que regem o funcionamento do Estado e a vida económica, social e política através das leis e deliberações de carácter genérico conforme resulta do disposto no artigo 168 e do artigo 178, ambos da Constituição da República de Moçambique (CRM).
Ora, para efeitos de reforma ou revisão legislativa, têm iniciativa de lei: os deputados, as bancadas parlamentares, as comissões da Assembleia da República, o Presidente da República e o Governo, conforme dispõe o n.º 1 do artigo 182 da CRM.
Para além dos actos legislativos da Assembleia da República, o processo de reforma legal pode operar-se através dos actos normativos do Conselho de Ministros que revestem a forma de decreto-lei e de decreto. Aqui importa lembrar que os decretos-leis do Conselho de Ministro carecem de autorização legislativa da Assembleia da República, conforme se depreende do artigo 179 da CRM.
Em Moçambique, o processo de reforma legal tem sido contínuo, seja por falta de lei e demais actos normativos específicos que regem determinadas matérias ou aspectos da vida social, económica, política e cultural do País, seja porque alguma legislação em vigor está desajustada da realidade ou porque apresenta várias lacunas.
Existia no País um organismo que se designava Unidade Técnica da Reforma Legal (UTREL) que tinha várias funções específicas em reforma legal e, fundamentalmente, com os objectivos de assegurar a planificação integrada, a coordenação, a articulação, a execução e o acompanhamento dos programas e projectos de reforma legal. No entanto, a UTREL foi extinta sem que tivesse sido substituída por uma entidade com competências similares ou especializada em matéria de reforma legislativa com atribuições e/ou competências próprias para o efeito.
Desde então, o processo de reforma legal em Moçambique é feito de maneira um tanto quanto atabalhoada, baseado em critérios de duvidosa transparência, em que são contratados diferentes consultores para o efeito de reforma ou elaboração de determinada legislação a ser aprovada pela Assembleia da República ou pelo Conselho de Ministros, dependendo na natureza ou tipo de actos normativos (Leis, Decreto-leis, Decreto, etc).
Casos há em que os consultores contratados não têm domínio bastante para levar a cabo o trabalho de reforma da legislação em causa, de tal gravidade que chegam a elaborar e submeter documentos que não respeitam a estrutura de uma lei e que revelam se tratar de um trabalho maioritariamente de “copy & past” de outros ordenamentos jurídicos, com destaque para Portugal e Brasil, quais autênticos plágios que não respondem aos problemas da realidade moçambicana.
Para além disso, em determinadas situações, sem apresentação de razão plausível, não são lançados concursos públicos para a contratação de consultores para a reforma legal e, nos casos de adjudicação directa, também não estão claros os critérios da mesma. Na verdade, a contratação de consultores para a materialização da reforma ou revisão legal tornou-se um negócio maculado, em que o que fala mais alto é a distribuição dos elevados honorários e comissões entre os envolvidos no processo e não o conhecimento e a capacidade técnica.
Outrossim, o processo de reforma ou revisão legal em Moçambique raramente é acompanhado da devida participação pública, a qual é feita à velocidade da luz, sem tempo razoável para análise e oferecimento de contribuições consistentes e coerentes, para além de que há significativa exclusão de actores chave da área cuja reforma se opera, como é o caso das organizações da sociedade civil, da Ordem dos Advogados de Moçambique e da academia que não se resume apenas na Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane.
Os processos de revisão da CRM, a lei mãe, em particular a de 2004 e sobretudo a de 2018, aprovada pela Lei n.º 1/2018 de 12 de Junho, foram altamente caracterizados por deficiente participação pública. Nesta última revisão constitucional, devido à importância e profundidade das alterações constitucionais introduzidas houve quem defendesse a necessidade de referendo, considerando a adopção da descentralização político-administrativa agora em vigor e a alteração do direito de sufrágio universal e de participação política no que às autarquias locais diz respeito. Porém, a obrigatoriedade de realização do referendo foi completamente ignorada.
Importa aqui referir que em alguma participação pública que é levada a cabo em vários casos de reforma legal, ainda que de forma deficiente, as contribuições quase que são ignoradas no documento final aprovado. Trata-se, pois, de uma participação pública forçada, senão forjada, com o intuito principal de legitimar o processo em questão. Algumas organizações são chamadas para oferecer as suas contribuições em prazos extremamente curtos que não permitem a profunda e boa análise dos documentos normativos a aprovar.
Em bom rigor, o processo de reforma ou revisão legal está a ser penoso para o Estado do ponto de vista de tempo e dinheiro perdido, bem como da perda de credibilidade das instituições envolvidas neste processo aos olhos dos cidadãos, uma vez que é aprovada legislação de difícil compreensão e implementação.
Não faz sentido que a revisão do Código Penal tenha tido sido efectivada no ano de 2014 através da Lei n.º 35/2014, de 31 de Dezembro, para num período de cinco anos, já no ano de 2019, este Código Penal ter sido sujeito à nova revisão com a aprovação e entrada em vigor da Lei n.º 24/2019, de 24 de Dezembro, que aprova o novo Código Penal ora em vigor. Curiosamente, há sinais de que o mesmo é novamente objecto de um processo de revisão devido às várias incongruências estruturais e de conteúdo que apresenta para um bom exercício hermenêutico no interesse do Estado de direito democrático, de justiça social, baseado no respeito pelos direitos humanos.
Situação similar verifica-se relativamente ao processo de revisão do Código do Processo Penal que foi efectivado através da aprovação e entrada em vigor da Lei n.º 25/2019, de 26 de Dezembro, em que partes das suas normas são de duvidosa constitucionalidade de tal sorte que foram objecto de acção de inconstitucionalidade junto ao Conselho Constitucional ainda por decidir.
Um outro exemplo de obscuridade de reforma ou revisão legal que muito custa ao Estado prende-se com a legislação eleitoral que, obrigatoriamente, é reformada a cada ciclo eleitoral e não obedece a nenhuma orientação de política legislativa senão a vontade e interesses partidários dos principais partidos com assento na Assembleia da República.
Alguns regulamentos (decretos) do Conselho de Ministros e Posturas Municipais são elaborados e aprovados de forma problemática, com sérios encargos para o povo, sem que ao mesmo seja dada a oportunidade de participação pública transparente e compreensão das razões e objectivos da reforma ou adopção desses actos normativos, com grande impacto no bolso e condições de vida dos cidadãos.
No contexto da COVID-19, foi aprovada a Lei n.º 10/2020, de 24 de Agosto (Lei que estabelece o Regime Jurídico de Gestão e Redução do Risco de Desastres), cuja participação pública foi deficiente e os critérios de contratação de consultores para o efeito não transparente.
Actualmente, só para dar alguns exemplos correm processos de reforma ou revisão legal que abrangem áreas ou matéria de grande relevância e interesse público cuja transparência, participação efectiva e abrangente se requer, quais sejam:
- Proposta de lei que define as regras e os critérios para a fixação da remuneração dos servidores públicos e dos titulares ou membros de órgão público e aprova a tabela salarial única (TSU) a estes aplicáveis, bem como a das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (TSFA);
- Proposta de lei de revisão da lei do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado;
- Proposta de lei do Sistema da Segurança Social obrigatória dos Funcionários do Estado
Portanto, há uma propositada desorganização no processo de produção legislativa que permite com que este processo seja um negócio obscuro altamente lucrativo para determinadas entidades e que fere os princípios mais elementares do processo de produção legislativa, como a democracia e da transparência, tanto é que ultimamente a legislação aprovada é altamente deficiente e dificilmente reflecte a realidade moçambicana. Não há, pois, um verdadeiro debate público, sem discriminação no processo de produção legislativa.