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sexta-feira, 07 agosto 2020 13:12

COVID-19 em Moçambique: para uma visão holística de Saúde em época de pandemia

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O conceito de Saúde

 

Saúde é o bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença. Qualquer estratégia de acção em saúde publica não se pode, em tempo de pandemia ou não, restringir a qualquer uma componente isoladamente sob pena de se estar a cometer um erro de elevado impacto. Controvérsias à parte, a actual epidemia do coronavírus coloca uma pressão sobre os órgãos de decisão que excede os limites da normalidade. Entre os perigos da contaminação generalizada e os efeitos nefastos das medidas que se tomem está o grande desafio das autoridades públicas. Um desafio que será tanto mais vitorioso quanto mais se tiver em atenção o conceito de Saúde no seu todo. Em termos objectivos, trata se de tomar medidas que mitiguem ao máximo possível a doença mas preservem  a saúde no seu todo.

 

Apanhados no desconhecido e levados por um pânico à escala global, vimo-nos na contingência de  medidas radicais de contenção do vírus que a quase todos pareceram inevitáveis. Fecho de fronteiras, encerramento de escolas, igrejas, ginásios, bares e casas de espectáculos, trabalho rotativo e proibição de ajuntamento.  Por outro lado, iniciou se uma intensa campanha de “ficar em casa”, lavar as mãos, usar máscara e manter o distanciamento social. Todas estas medidas, inicialmente previstas no nosso imaginário por serem de curta duração, foram acompanhadas de um avassalador bombardeamento de informações que variaram entre as que anunciavam o perigo, a catástrofe e até mesmo o apocalipse. Os meses correram e o anunciado, pelo menos ainda, não aconteceu em Moçambique. O País tem flutuações semanais no número de infecções detectadas, e poucos casos hospitalares. Os dados dos estudos serológicos em Nampula e Pemba sugerem a existência de um elevado número de pessoas que já tiveram contacto com o vírus mas muito poucos a requerem cuidados hospitalares. Um cenário que surpreende e cujas causas são por enquanto do domínio das hipóteses e especulações.

 

Alguns enunciados que vaticinaram uma baixa taxa de complicações clínicas apostavam em vários tipos de explicações lógico-cientificas, nomeadamente em indicadores que relativamente aos países com taxas de morbilidade e mortalidade elevada nos colocavam em vantagem. Entre outros destacam-se a baixa média etária, a menor densidade populacional, a alimentação natural, os resultados indirectos de uma medicina preventiva histórica e o facto de os nossos mais velhos  serem poucos e, na ausência de cuidados médicos avançados,  se constituírem por uma população de  sobreviventes, e por isso mais resistentes. Mais do que arriscar explicações sobre a relativa baixa taxa de doença (não de infecções porque essas já são elevadas), importa reflectir sobre o efeito das medidas num contexto de um conceito abrangente de Saúde, ou seja, no bem-estar físico, mental e social além da ausência de doença.

 

Os factores que afectam o estado de saúde são múltiplos e complexos. Importa, no contexto da pandemia actual, verificar como as medidas tomadas podem conduzir a uma protecção à contaminação por coronavírus sem provocar uma ruptura com o estado geral de Saúde. Para o efeito, seleccionámos alguns dos que são simultaneamente determinantes no estado de saúde e podem ser afectados pelas medidas relativas à contenção da pandemia, nomeadamente, a ansiedade, a actividade física, a nutrição e a utilização dos serviços de saúde. Todos eles, de diversas formas, são directamente dependentes de um quinto factor, o do rendimento familiar. Procuraremos analisar em que medida cada uma das medidas, e no seu conjunto, afectaram os “factores determinantes de saúde”.

 

Ansiedade

 

A ansiedade é reconhecida inequivocamente como tendo um elevado impacto na saúde e bem-estar. A prática do culto religioso e a cerimónia em forma de “festa” constituem elementos essenciais dos hábitos culturais. Casamentos, baptizados, festas de aniversário e outros tipos de rituais fazem parte do quotidiano e cumprem um papel de equilíbrio individual e social de elevada importância. Uma boa parte do stress dos cidadãos é também “tratado” no convívio das discotecas, bares e barracas, nos espectáculos, na música dos restaurantes, nos ginásios, clubes desportivos e pratica desportiva informal nas escolas e bairros. O encerramento de todas estas actividades não pode deixar de contribuir para a elevação dos níveis de ansiedade, fonte das mais variadas sensações mal-estar, insónia, hipertensão, dores de cabeça, irritação entre outras. A perseguição policial a crianças e jovens que jogam futebol é aceite pelo pânico criado em torno do COVID19, mas tem efeitos catastróficos na saúde, bem-estar e tem um impacto comprovadamente nefasto no seu desenvolvimento harmonioso.

 

Particular lugar de realce na elevação da ansiedade está a propagação do medo. Propositado ou não, assiste se um permanente ecoar de notícias que colocam as pessoas em pânico. A utilização de números estatísticos das mais diferentes formas quase que 24 horas por dia para “consciencializar” as pessoas e induzi-las a cumprir as regras elevam os níveis de ansiedade. A imagem da catástrofe tem sido preferencial sobre a sensibilização, justificada habitualmente pela ausência de cumprimento voluntário das medidas. Em síntese, tudo concorre para uma elevada taxa de ansiedade que, porque se torna um estado permanente, tem incidência na nossa sensação de bem-estar e consequentemente agravam a dimensão das doenças crónicas.

 

Actividade Física e Nutrição

 

É sabido que inactividade e a má nutrição constituem factores de impacto negativo na saúde em particular nos factores de risco de doença cardiovascular como sejam a obesidade, hipertensão ou diabetes. Num estudo sobre os efeitos do estado de emergência feito em Maputo e Matola ao fim de um mês de estado de emergência, a redução na prática de actividade física era já de 30% e da ingestão de vegetais e frutas de 27 e 11%,respectivamente. Embora não existam dados empíricos é de estimar que o impacto negativo na saúde metabólica ao final de 4 meses seja relevante. Para nos protegermos do coronavírus aumentamos o risco de muitas outras doenças que são potencializadas pela inactividade física e má nutrição. As coisas ficam ainda mais preocupantes quando existem dados já publicados que mostram que a sobrevivência em pessoas internadas nos cuidados intensivos por COVID-19 é várias vezes menor em pessoas obesas que em indivíduos com peso normal. O prolongar das limitações à actividade física e a uma boa nutrição trará consigo, adivinha-se, um resultado pouco favorecedor no capítulo das doenças crónicas não transmissíveis.

 

 Rendimento familiar

 

No estudo realizado em Maputo e Matola que referimos anteriormente, mais de metade das pessoas inquiridas já tinham visto seu rendimento familiar afectado. Perca de emprego, redução de salários, suspensão das actividades de que sobrevivem e diminuição de clientes estavam entre as razões principais. Outros estudos em vários pontos do país têm demonstrado o mesmo efeito. Não é preciso fazer se nenhuma investigação para se aceitar que a redução do rendimento familiar, que muitas vezes se faz ao nível da sobrevivência, terá um enorme impacto na saúde das pessoas. Em nome da protecção ao coronavírus estamos a aumentar os níveis de pobreza que só podem afectar o bem estar seja físico, mental ou social. Se a situação da nossa segurança alimentar se apresenta, mesmo sem pandemia, numa condição preocupante, não é difícil estimar se um agravamento considerável com consequências, essas sim, catastróficas.

 

Utilização dos serviços de saúde

 

Parece consensual que a existência de um Serviço Nacional de Saúde público e gratuito tem sido fundamental na prevenção e tratamento de múltiplas doenças. Ao longo de várias décadas foram realizadas várias campanhas para que as pessoas recorram aos serviços de saúde, incluindo a programas preventivos de vacinação, consultas pré-natais e tratamento de doenças endémicas. Paradoxalmente, logo no inicio da pandemia, entidades e pessoal dos serviços de saúde fizeram um apelo generalizado para que as pessoas não recorram aos serviços de saúde sem ser por motivos extremos. Criou se também a ideia generalizada que estas unidades são um foco de transmissão do coronavírus pelo que muitas pessoas desenvolveram medo de recorrer aos serviços de sáude. Não há dados objectivos sobre o impacto deste fenómeno, mas é expectável que os cuidados preventivos e curativos necessários para um grande número de doenças tenham reduzido, o que não pode com certeza ter um impacto positivo no nosso estado de saúde. Esquecer o quadro geral dos nossos cuidados de saúde porque estamos com pânico de uma doença especifica pode ser mais arriscado que a doença em si. 

 

O encerramento das escolas

 

Cabe, finalmente, uma nota particular sobre o encerramento das escolas por mais de 4 meses, até ao momento, decisão que justificada pela pandemia e assunto que muito tem sido debatido a todos os níveis. A colocação do assunto em termos de perca de ano afasta a temática do que é a essência do processo educativo. Atrasar ou não atrasar um ano pouco efeito terá no processo. Mas ficar sem socializar, brincar, jogar, trocar ideias e enfrentar as dificuldades do relacionamento social pode criar traumas físicos, mentais e socais (ou seja de saúde) irrecuperáveis quando se tratam de seres em processos de desenvolvimento. A educação de uma criança não se adia, ela é um processo constante esteja ela onde estiver. A suspensão das aulas terá um preço irreparável tanto quanto mais longo for o período. Mesmo que aceitemos que a proibição das crianças brincarem seja protector dum vírus, que nem sequer lhes é letal, tem como consequência a suspensão do processo de desenvolvimento que não se recupera mais á frente. O acto de sair à rua, jogar e socializar faz parte da essência sócio biológica infantil e juvenil. Até ao que se sabe nos dias de hoje, o trauma de proibir essa camada populacional de socializar e jogar parece ser muito maior que os riscos de se infectar por coronavírus.

 

Conclusão

 

O pânico irracional e a exacerbação do medo não podem ser as soluções para um assunto tão sério como uma pandemia. A ausência de uma visão global (a que chama holística) do ser humano e da sociedade no seu todo pode nos levar a enveredar por caminhos que causarão mais problemas. Impõe-se uma atitude balanceada que de facto proteja a Saúde e o bem-estar da população. O quadro da pandemia tem nos sido relativamente favorável até agora, mas temos incerteza sobre o que nos espera nos próximos meses. Provavelmente o alivio de algumas medidas possam aumentar o numero de casos que tem de ser monitorados não tanto em função de pessoas infectadas mas dos efeitos maléficos que possam provocar. Por isso, temos de ter cuidados que, no entanto,  não podem ser desequilibrados e provocar outras pandemias provocadas pela ansiedade, inactividade, má alimentação, falta de cuidados médicos e pobreza, essa outra pandemia que se arrasta por séculos e não parece ter muita atenção. Temos de nos proteger do Coronavírus e preservar a Saúde. Mas Saúde é o bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de COVID-19.

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