A recente subida da tarifa de transporte público urbano de passageiros da área metropolitana de Maputo trouxe ao debate público corrente a problemática deste serviço. Um dos “assuntos quentes” é o encurtamento de rotas cuja ocorrência considero como se fosse um serviço (informal) complementar, carecendo apenas de ser estudado e regrado. Volto a esta posição mais adiante.
Para quem não esteja familiarizado com o encurtamento de rotas, referir que este termo é usado para classificar o comportamento do transportador, particularmente da tripulação (motorista e cobrador) de viaturas de operadores privados, e de menor capacidade (16 lugares), quando este reparte, em duas ou mais secções, a rota completa (licenciada).
O encurtamento pode ser contínuo ou descontínuo. É contínuo quando o utente paga as secções encurtadas sem que saia da viatura. É descontínuo quando o utente tenha que sair para tomar uma outra viatura, e a que se fazia transportar toma um outro rumo, quer o do regresso ao ponto de origem/partida quer o de uma outra rota (desvio de rota) ou mesmo o de recolha ao parque.
Entre os principais intervenientes da actividade, os utentes consideram que o encurtamento eleva os custos de transporte. As autoridades, que em linha com as associações/cooperativas dos transportadores (proprietários), classificam-no de ilegal e têm, amiúde, responsabilizado a tripulação e apelado para que se denuncie a sua ocorrência. Por sua vez, a tripulação alega que a recorre por razões económicas (incremento da receita), na medida em que tem que pagar ao proprietário a receita diária obrigatória e ainda sobrar os próprios dividendos.
É também de considerar que este fenómeno encontra condições favoráveis na expansão da cidade, pois algumas terminais foram deslocadas para pontos mais distantes, prejudicando assim o acesso de utentes das terminais descontinuadas, agora simples paragens intermédias e de grande demanda.
Salvo o encurtamento imposto, o próprio utente, em algum momento, e para fazer face a escassez, enchentes, celeridade ou por uma outra razão, opta pelo “auto-encurtamento” que consiste, no lugar da rota de destino (rota completa), na tomada de uma outra rota (completa ou encurtada), e que esteja menos pressionada, até que desembarque na paragem em que possa tomar a que o leve ao destino.
Posto isto e quanto a posição de “não combater, mas estudar e regrar”, ela decorre da observação de potenciais vantagens do encurtamento no acesso ao transporte. Entre as vantagens, o facto das rotas encurtadas serem relativamente mais cómodas (menos enchente) e rápidas e ainda a de poder concorrer na redução da pressão sobre as rotas completas por acolherem, quer involuntariamente (encurtamento imposto) quer voluntariamente (auto-encurtamento), parte dos seus utentes.
Uma outra vantagem deste “serviço” (encurtamento/rotas curtas) prende-se com a certeza que o utente tem da sua ocorrência, sobretudo em horas de ponta e no período nocturno, o que lhe permite planificar financeiramente a deslocação e ainda de poder alargar o acesso ao transporte público a utentes que se encontram em paragens intermédias, particularmente nas de grande demanda, e que são prejudicados pelas enchentes das rotas completas/mais longas.
Nestes termos, e na base de uma apreciação empírica, a defesa de que no lugar de combater o encurtamento é fundamental que se estude e regre a sua integração formal e sistemática no sistema global de transporte público urbano de passageiros na área metropolitana de Maputo.
(Parte II e Conclusão)
Patrício Langa* & Jorge Ferrão**
A decisão pelo estabelecimento do ensino superior, nas colónias Portuguesas de Angola e Moçambique, foi, por um lado, tomada com muita hesitação e sob pressão interna dos colonos nessas províncias do ultramar colonial, e, por outro lado, externa, particularmente, pelas Nações Unidas, devido ao intensificar dos movimentos reivindicativos das independências dos povos Africanos que já tinham na independência do Gana em 1957, sob liderança do carismático Kwame Nkrumah, uma fonte de inspiração.
O ano de 1960 e subsequentes viram mais de 13 colônias africanas a ascenderem à independência. O ambiente interno, na colônia, como o externo, não era favorável ao status quo. Assim, o regime foi forçado a adoptar medidas de reforma do Estado, incluindo no sector da educação. No seu âmago, as reformas não visavam alterar o carácter colonial do regime, mas mistificá-lo ideologicamente com um rosto mais humanista, particularmente em relação ao tratamento oferecido às populações nativas não brancas.
As ideias do luso-tropicalismo, isto é, da celebração da miscigenação racial e cultural atribuída pelo Antropólogo Brasileiro, Gilberto Freyre, ao carácter idiossincrático do colonialismo Português, foram inicialmente rejeitadas por Portugal, nos anos 30 e 40 do Estado Novo. No entanto, o luso-tropicalismo passou a ser ideologia do Estado colonial implementada nos anos 60, particularmente, através de reformas propostas por Adriano Moreira, ministro Português do ultramar, como forma de mitigar a crescente contestação ao regime colonial fascista e ao status quo.
A pergunta fundamental sobre o estatuto e o papel do ensino superior na sociedade mostra-se aqui relevante. Numa altura em que Portugal ainda sonhava com água para a manutenção do status quo, é legítimo questionarmo-nos sobre para que projecto de sociedade a nova universidade estava a ser criada? Que função social a nova universidade iria cumprir? Seria a nova universidade o laboratório, por excelência, do experimento luso-tropicalista, no contexto das colônias africanas? A quem, então, o regime Salazarista iria confiar a gestão das novas instituições de ensino superior em Angola e Moçambique, sabendo do potencial que as universidades podiam representar para o despertar da consciência nacionalista e da necessidade de transformação profunda da sociedade? Parte das respostas a estas questões encontram-se nas lideranças que Portugal identificou para conduzir os desígnios das novas universidades em Angola e Moçambique.
Os Primeiros Reitores da EGUM e ULM 1962-1970/6
José Veiga Simão (JVS) foi o primeiro de três reitores coloniais, e aquele que mais tempo permaneceu no posto, quase oito anos, entre 21 Agosto 1962 e 15 de Janeiro de 1970. A sua saída da reitoria foi por via de uma promoção à Ministro da Educação Nacional. Simão foi um exímio equilibrista entre a academia e a política, granjeando simpatia em ambos os campus. Nascido em Portugal, em 1929, veio a falecer em Lisboa em 2014. Cedo formou-se em ciências físico-químicas na Universidade de Coimbra (UC), em 1951, com uma licenciatura e, depois, seguiu para o doutoramento em física nuclear na prestigiada Universidade de Cambridge, na Inglaterra.
De reitor da Universidade de Lourenço Marques (ULM), passou ao cargo de Ministro da Educação Nacional até à altura da Revolução dos Cravos que destronou o regime fascista em Portugal. Entre 1974 e 1975, foi embaixador de Portugal nas Nações Unidas e, mais tarde (1983-1985), deputado da Assembleia da República Portuguesa pelo Partido Socialista. Recebeu vários Doutoramentos Honoris Causa, incluindo um pela actual Universidade Eduardo Mondlane (UEM) que, quanto a nós, só pode ter sido resultado da amnésia histórica dos proponentes em relação ao papel de Simão na perpetuação mistificada e demagógica do status quo do regime fascista e colonial.
Os cerca de oito anos do mandato de Simão, definiram o carácter colonial da ULM, mas sempre envolto num discurso demagógico reformista. Simão foi sucedido em 1970 e, ao que tudo indica, por seu delfim escolhido a dedo, Vitor Pereira Crespo (1932-2014), cujo reitorado foi apenas de dois anos, até Janeiro de 1972. Crespo viria, mais uma vez, a tomar o lugar de Simão, desta vez, como Ministro da Educação Nacional.
Tal como Simão, Crespo tinha formação de base em ciências físico-químicas, tendo feito o doutoramento em Química na Universidade de Berkeley, Califórnia em 1962. Para além da gestão universitária, foi Director Geral do Ensino Superior no Ministério de Educação Nacional (1972-1973) e, posteriormente, Ministro, Crespo, foi deputado e Presidente da Assembleia da República (1987-1991), pelo Partido Social Democrata (PSD).
Entre Janeiro de 1972 e 25 de Abril de 1974, altura do golpe de estado em Portugal, que colocou fim ao regime fascista de Salazar, José Alberto da Gama Fernandes de Carvalho assumiu o leme da ULM. O derradeiro reitor da ULM foi o terceiro de nome José, desta vez, José Marques Correia Neves entre 25 de Abril de 1974 e Janeiro de 1976. Geólogo de formação, rumou para o Brasil onde fez carreira na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), após abandonar Moçambique com o advento da independência.
Neves assistiu à génese da EGUM e a sua elevação ao estatuto de universidade em 1968, passando a designar-se ULM. A confiança do leme de uma instituição de ensino superior nova na colónia, num contexto volátil, de crescente contestação ao regime fascista de Salazar, tinha que recair sobre figuras que inspiraram alguma tranquilidade ao regime. Com efeito, o pecado original da submissão dos reitores das IES públicas, mesmo quando a retórica sugere o contrário, tem origens coloniais, com a tentativa de mistificação da inclusão social e democrática.
Cada reitor tornou-se e manteve-se em função da habilidade de servir ao regime e à liderança política. Apenas em sistemas democráticos, nos quais a governação universitária se emancipou das pressões políticas modernas, como nos Estados Unidos da América e na Europa, vemos líderes de IES públicas sucederem-se sem um lobby directo com o regime político do dia.
O presidente dos EUA, seja este republicano ou democrata, exerce quase nenhuma influência na nomeação ou demissão de reitores das universidades americanas. Com isto não queremos sugerir que o acto de nomeação seja meramente académico e não político. O Estado vê na autonomia efectiva do sistema universitário uma das condições da sua própria existência e credibilidade. Não quer isto significar que as políticas públicas do sector e a gestão das instituições, particularmente as públicas, não estejam sujeitas ao beneplácito das autoridades do Governo. Todavia, no caso da ULM, a nomeação do reitor tinha a mão directa do Ministro do Ultramar e do Governador da Província, sendo o reitor membro do Governo colonial.
A Universidade de Coimbra (UC) granjeou respeito ao nível da Europa como um centro de conhecimento com alguma autonomia académica e intelectual. Era na Universidade de Coimbra e na Universidade Técnica de Lisboa (UTL) que o governo recorria para buscar quadros para gestão e implementação das suas políticas coloniais, incluindo as relativas ao ensino superior. Entretanto, era também para a universidade onde se refugiavam os desavindos, por alguma razão, com as políticas do status quo.
Marcelo Caetano, por exemplo, considerado um dos políticos reformistas do regime fascista e colonial de Salazar, fracassadas as tentativas de convencer o regime a ser mais condescendente, dialogante e menos beligerante no assunto da independência das colónias, após fracassada a tentativa de convencer Eduardo Chivambo Mondlane a integrar o governo de Salazar, retomou a sua cátedra na universidade de Coimbra. Portanto, a Universidade de Coimbra teve sempre uma relação ambivalente com o regime fornecendo os quadros para a manutenção do mesmo, mas também servindo de refúgio da actividade política directa.
O regime colonial procurou encontrar quadros e intelectuais, com habilidade de mistificar a continuidade da Portugalidade nas colónias, projectando um discurso de inclusão e alargamento das oportunidades educativas para os colonos e para os nativos, desde que assimilados à cultura Portuguesa.
A universidade criada e gerida em Moçambique pelos seus primeiros quatro reitores era uma universidade branca na sua composição demográfica e colonial na sua ideologia. Portugal, sob pressão das Nações Unidas e dos seus aliados, particularmente os Estados Unidos da América, insistia na integridade territorial e política entre a metrópole e os territórios do ultramar. Os documentos oficiais insistiam na ideologia de construção de uma sociedade multirracial, e pluricultural. Este discurso, no entanto, também era articulado pelas lideranças da ULM, mas não correspondia à realidade, como iremos abordar mais adiante ao falar da composição do corpo discente, docente e técnico administrativo.
O Currículo colonial
Um ano após da criação da EGUM, através do Decreto-Lei 45180, de 5 de Agosto de 1963, os “Ministérios do Ultramar e da Educação Nacional - Direcção-Geral do Ensino Superior e das Belas-Artes” promulgam o regime de funcionamento da nova IES. O artigo 8 do decreto indicava os cursos a serem ministrados, nomeadamente: a) Curso de Ciências Pedagógicas; b) Curso Médico-Cirúrgico; c) Curso de Engenharia Civil; d) Curso de Engenharia de Minas; e) Curso de Engenharia Mecânica; f) Curso de Engenharia Electrotécnica; g) Curso de Engenharia Químico-Industrial; h) Curso Superior de Agronomia; i) Curso Superior de Silvicultura; j) Curso de Medicina Veterinária. Os cursos de medicina e de veterinária teriam uma parte leccionada na colónia e uma outra parte na metrópole.
Com excepção das ciências pedagógicas, que visavam formar professores, nenhum curso visava formar pensadores críticos. Ironicamente, os cursos promovidos pelo regime colonial, na altura, actualmente são misticamente designados na sigla inglesa – STEM (Science, Technology, Engineering and Mathematics) – e promovidos pelo governo como prioritários para o desenvolvimento do país. Como se pode depreender pelos cursos aprovados, a universidade teria mais um carácter politécnico que propriamente universitário.
A universidade não foi criada para ser um lugar para promoção do pensamento crítico, típico de uma sociedade aberta e democrática. A universidade colonial era um instrumento, um veículo operativo para massagear e mistificar a continuidade de uma sociedade colonial cuja distribuição de oportunidades (incluindo as educacionais) era em função da origem social. O currículo e as áreas de estudo permitidas resumiam-se a aqueles que, na percepção do regime, permitiriam formar quadros úteis para o projecto colonial.
O Corpo Discente, Docente e Técnico Administrativo
O corpo discente da EGUM e, mais tarde, da ULM era, fundamentalmente, constituído por estudantes brancos. Imagens fotográficas de antigos estudantes e membros da Associação Académica de Moçambique são bastante ilustrativas do tipo de composição demográfica da universidade colonial. Se o corpo discente era quase que na generalidade branco, não se podia esperar diferente do corpo docente e do Corpo Técnico e Administrativo (CTA).
A nossa hipótese de trabalho para dar conta da ausência de uma população (negra) nativa na nova universidade segue a linha de pensamento do politólogo ugandês Mahmood Mamdani sobre a constituição de minorias pelos Estados coloniais. Com efeito, segundo Mamdani, o projeto colonial e imperial tinha um substrato ideológico de uma missão civilizadora. Dois mecanismos principais permitiam o processo civilizatório pelo Estado colonial, por um lado, a introdução de um quadro regulatório (leis do Estado) e códigos de conduta sobre como ser cidadão civilizado (neste caso Português) e, por outro lado, um sistema educacional de matriz colonial para educar os membros da sociedade.
Através destes processos, igualmente, descritos por Eduardo Mondlane, em Lutar por Moçambique, cria-se uma minoria de cidadãos colonos e nativos assimilados, educados e civilizados no padrão cultural colonial. Estes nativos assimilados, como diria Franz Fanon, de Peles Negras e Máscaras Brancas, que julgam pensar, agir e sentir como o próprio colono branco, servem de intermediários entre a metrópole e a colónia, na administração da colónia. A universidade serve assim de instrumento de reprodução da estrutura e estratificação social da sociedade colonial.
A educação rudimentar para os nativos e todo um conjunto de barreiras educacionais fez com que, até finais da década de 1960, apenas uma porção insignificante de negros tivesse frequentado o ensino liceal ou técnico de modo a que reunisse os requisitos mínimos necessários para estarem aptos ao ingresso no ensino superior. Com efeito, o ingresso ao ensino superior era baseado em exames de aptidão feitos na universidade de Coimbra.
Portugal não tinha como, do nada, inventar negros qualificados para frequentar o ensino universitário, pois muitos destes eram, por desígnio do sistema, eliminados pela estratificação do próprio sistema educacional para brancos, assimilados e nativos que durante décadas criou barreiras para impedir a educação dos nativos. É, em parte, por estas razões, que apesar de uma retórica para reforma do sistema educacional, a nova universidade nasce e continua, fundamentalmente, branca e colonial até ao êxodo massivo dos colonos com o advento da independência em 1975. Os brancos e os poucos negros assimilados que decidiram permanecer no país após a independência, tornaram-se a elite académica e intelectual da universidade e do país com a missão de construir uma nova universidade para a servir ao desenvolvimento do país independente.
Conclusão
O primeiro decenário do ensino superior em Moçambique (1962-1972/5) foi da instalação sob pressão da primeira instituição de ensino superior, fundamentalmente, com o intuito de amainar a crescente contestação interna (dos colonos progressistas), dos nativos (independentistas) e a pressão externa das Nações Unidas e dos países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em particular, os Estados Unidos da América (EUA) sob o regime fascista e o Estado Novo de Salazar.
As sucessivas lideranças da ULM cumpriram o papel de assegurar o trabalho da mistificação ideológica, através de um discurso de integração dos territórios do ultramar com a visão de uma Portugalidade como nação multirracial e pluricultural. No entanto, na prática, esta retórica não se refletia na composição demográfica do corpo docente, discente e técnico administrativo da ULM, até 1976, um ano após a proclamação da independência de Moçambique por via de insurreição armada.
O currículo e as áreas de estudo da ULM eram estabelecidos por dispositivos normativos (decreto-lei, portarias), controlados pelas autoridades coloniais, a partir da metrópole. Com forte inclinação para cursos das ciências naturais e tecnológicas, a ideia da formação superior era a de preparar quadros para administração colonial dos territórios do ultramar e não para formar uma possível intelligentsia subversiva, dai a total ausência de cursos nas áreas das ciências sociais e humanas.
Com o acelerar da Guerra colonial, e o advento da Revolução dos Cravos, que colocou término ao regime fascista de António Salazar, a gestão da ULM foi praticamente de crise e transição. José Veigas Simão foi praticamente o único reitor que fez quase dois mandados de 4 anos entre 1962 e 1970, quando foi promovido a Ministro da Educação Nacional. Os sucessivos reitores tiveram reitorados relativamente curtos de cerca de dois anos, sendo Vitor Pereira Crespo (1970-1972), José Alberto da Gama Fernandes de Carvalho (1972-1974) e José Marques Correia Neves (1974-1976).
Todos reitores coloniais estavam, de uma ou de outra forma, relacionados a figura de JVS e, provavelmente, tenham sido por este sugeridos como seus sucessores. Quase todos tinham alguma relação de afiliação com a Universidade de Coimbra ou com a comissão Técnica de criação da ULM, cujos quadros também provinham da Universidade Técnica de Lisboa.
Em suma, a universidade colonial em Moçambique representou o início titubeante do ensino superior, mas, acima de tudo, também representou um esforço das autoridades coloniais de manutenção ideológica do status quo. A independência de Moçambique do colonialismo Português, em Junho de 1975, veio encerrar o primeiro decénio e abrir espaço para uma nova realidade do ensino superior que iremos abordar no período de 1972/5- a 1982.
*Patrício Langa. Professor de Sociologia do Ensino Superior
**Jorge Ferrão. Reitor da Universidade Pedagógica de Maputo
Era bom que tivéssemos um pequeno ministério dos filhos do senhor presidente. Um ministério sério que dirigisse, planificasse, assegurasse e executasse a legislação e políticas da vida dos filhos do senhor presidente. Os filhos do senhor presidente merecem respeito e carinho. As suas viagens, as suas aventuras e passeios merecem estar em arquivos como os ministérios fazem.
Um ministério que se ocupasse pela construção e manutenção de avenidas exclusivas para os filhos do presidente, que importasse os últimos carros, que programasse expedições dos filhos do senhor presidente e contratasse empresas que fornecessem oxigénio importado e sapatos capazes de derrubar dez aldeias pelo preço. Um ministério com alcatifas francesas que se lavam na África do Sul e secam ao sol de Egipto.
Era bom que tivessem um ministério que determinasse os seus subsídios, salários, seguros de risco por serem filhos de presidentes e regalias quando chegassem ao estatuto de ex-filho do presidente. Coitados! Seus pais passam a vida inteira trabalhando para levantar o País e eles, na sua total inocência, vivendo pelo pouco que têm como mesada. Sofrem muito os filhos do senhor presidente. Não têm tempo para os estudos porque se dedicam aos negócios para sobreviver.
Um ministério que publicasse vagas no jornal, que tivesse um orçamento bem definido e aprovado pela assembleia para sustentar a vida dolorosa dos filhos do presidente. Claro que o ministério teria um porta-voz para sempre nos falar, pela televisão, das viagens dos filhos do presidente, dos convidados para seus aniversários e dos seus carros que vão entulhando-se nas garagens.
Meus senhores, um ministério como tantos outros; com fotografias dos filhos do senhor presidente presas nas paredes, com um relógio de parede com ponteiros de ouro e com uma secretaria à entrada caçando o auscultador do telefone e espetando as suas enormes unhas nas chamadas.
Falo dos filhos dos presidentes e não do lixo de filhos que acumulamos no Chamanculo, não falo dos órfãos da Munhava que esperam a campanha para ter uma camisa nova, não falo daquela carruagem de desempregados que inunda uma casa de madeira e zinco na Mafalala e chamam pai a uma criatura que a única coisa que tem é barba, meus senhores eu falo dos filhos do presidente.
Talvez esse ministério incluísse nos manuais escolares a vida triste dos filhos do senhor presidente. As suas noites mal passadas nos hotéis de Qatar, os seus relógios de ouro que nunca ditam a sua hora, os meses que passam longe do seu amado país e a dor de serem filhos abandonados por um pai que cuida de todos nós, do país inteiro.
Antes de começarmos com o hino, o guarda arrumava-nos em filas com a ponta fina do seu chamboco. Um colega nosso, albino, piscava os olhinhos sem parar, como luzes de natal, e batia-se contra árvores e degraus do pátio fugindo do guarda e atrapalhado em pendurar os óculos ao nariz. O nosso chefe de turma, um parvo que hoje é contabilista ali na 25 de Setembro, registava os presentes nas costas do seu caderno, bem ao lado da tabuada.
O director da escola, suspenso em suas muletas como um boneco pendurado no estendal, começava com o primeiro verso e no segundo verso todos apedrejávamos o hino com as nossas vozes. Um funcionário da secretaria resgatava a bandeira do topo de uma haste enferrujada por meio de uma corda como um velho puxando uma lata de um poço.
Recordo-me que nos refrões, o director da escola com os seus pezinhos empenados por uma paralisia infantil, suspensos ao ar por duas molas de muletas, levantava um bico nos lábios e soprava um som que parecia de um instrumento de sopro.
(Viva Moçambique!
Viva a Bandeira, símbolo Nacional!
Viva Moçambique!
Que por ti o Povo lutará)
O guarda com o chamboco baloiçando na cintura, alinhava de quando em quando a mão direita na cabeça para consertar a continência que lhe escorregava pelo suor. Os colegas atrasados, fora do quintal da escola, acompanhavam o hino, as vendedeiras de pirulitos levantavam-se e os peões paravam assistindo a descida da bandeira.
E a professora de história, uma senhora gorda com falta de pescoço, pincelava, a todo instante, os lábios para nos falar, com a ajuda de uma vara, sobre as zonas libertadas, a produção nas aldeias comunais e as cooperativas. E ela sabia tudo de história, mas não se dava tempo para tirar um pescoço de qualquer morto da guerra e colocar-se a si mesma. Era incrível vê-la a respirar mesmo sem pescoço.
Todos em bichas, todos bem organizados parecíamos os nossos pais gastos de cansaço esperando por uma barra de sabão numa cantina do povo. Sobre a cantina do povo aprendi com a professora sem pescoço; coitada, soube que morreu ano passado vítima de malária; imagino o enterro dela, os filhos procurando a sua cabeça longe do corpo, nas gavetas, nas malas, pois nunca teve pescoço...
A bandeira ia descendo, as vozes vestidas de mau hálito da escola arrumavam-se debaixo das nossas línguas e o hino terminava. O director era o primeiro a remar os corredores com as suas muletas e de uma forma organizada íamos sendo engolidos pelas salas.
Para quem não acredita no provérbio segundo o qual a vida dá tantas voltas, eis aqui mais um exemplo, de tantos inacabáveis, das muitas voltas que, de facto, a vida dá. O que é de uma forma hoje, amanhã é outra totalmente diferente, senão, por ventura, o contrário. Verdade de hoje, não verdade ou mentira amanhã!
Vamos então. Em 1987, pelas mãos do então director administrativo da Escola de Jornalismo, o poeta Fernando Couto (pai de Mia Couto), e de Leite de Vasconcelos e Orlanda Mendes, na altura director-geral e directora de Informação da Rádio Moçambique, respectivamente, fui parar ao Sector dos Noticiários da nossa estação emissora mãe. A redacção central da Rádio Moçambique - o então coração de informação da estação emissora… hoje, já está desconcentrado, a partir de qualquer província, qualquer programa informativo é produzido e difundido. Na altura, tudo tinha que ir ao crivo da direcção central!
Entre as figuras de proa de informação da Rádio Moçambique que encontro na Secção dos Noticiários, dirigida por Tiago Viegas, estão noticiaristas colossos como Armindo Chunguane, Antonio Bernardo Cuna (ABC), Narciso Zandamela, Ramos Miguel, o Dava, a Amélia Muchanga, o Moisés Aide (já falecido, Deus o tenha) e… o Severino Sumbe! O Sumbe era o esteio do noticiário internacional da Rádio, era redactor e editor ao mesmo tempo daquele material informativo.
Nessas alturas, ao contrário de como é hoje em dia, as fontes das notícias internacionais eram… complicadas. Recebiam-se telexes a partir de certas agências noticiosas, Lusa, Reuter, Novost e Angop… e outras poucas mais que não me vêm à memória. Depois, havia uma secçãozinha de escutas de certas emissoras mundiais. Aqueles materiais todos, um grande maço de telexes e umas cassetes áudio iam parar às mãos e ouvidos do Severino Sumbe e ele procedia à selecção das notícias que achasse apropriadas e oportunas, depois editava e submetia ao chefe Tiago Viegas para ver e só depois disso é que iam para o ar.
Eu, jovem foca, recebia trabalho de todos ali na secção. Mas também do Tiago Viegas, Marcelino Alves e até da própria directora Orlanda Mendes; recebida directamente trabalho e nem tinha como reclamar; mas como um principiante reclamar? Havia ali turnos: o primeiro, das 6 horas até às 13; o segundo, das 13 às 19; e o último, das 19 horas até meia noite. Fazia-se escala rotativa, assim como dos respectivos chefes!
Depois de três meses, fui posto também já a fazer turnos. E um dos chefes de turno era Severino Sumbe!... para além do seu trabalho sobre o noticiário internacional, ela coordenava aquele turno em que estivesse, corrigia e editava os textos do turno. E assim tive no Sumbe meu chefe de turno com todas as prerrogativas.
Trabalhamos sem stress durante aqueles seis meses! Sumbe era um grande redactor! Homem muito disciplinado, muito rigoroso em tudo, mas não arrogante, nem ditador. Zeloso na pontuação, na linha, no parágrafo, no ponto. Texto conciso, curto, directo, exigências próprias do jornalismo radiofónico. Ele próprio, como pessoa, era uma pessoa rigorosa consigo próprio. Sempre a tempo e horas, aprumado e homem de poucas falas e quase não ria. Muito dedicado ao trabalho.
Por razões pessoais, não fiz carreira na Rádio Moçambique. Após fazer o curso médio de jornalismo, em 1988, não voltei à RM, rumei para a Sociedade Notícias, SARL. Entrei pelo jornal Notícias, mas logo fui chegar ao semanário Domingo, onde estive até Fevereiro de 2001.
E eis que o Severino Sumbe, passado algum tempo após o meu estabelecimento, se muda da Rádio Moçambique para o semanário Domingo! Pouco depois de ele chegar, há alterações e eu… fico subchefe da Redacção! Chefe de Severino Sumbe, portanto!... o mesmo que tinha sido meu chefe na RM!
Confesso que o Sumbe não se importou nada com isso. Trabalhou normalmente, com a sua seriedade, disciplina, rigor e entrega total. Era o primeiro a chegar à Redacção e muitas vezes a entregar o seu texto. E depois, quando passo a chefe de redacção, ele fica adjunto! Nunca em nenhum momento tive problemas com o Chefe Sumbe, como passámos a chamá-lo na saudosa Redacção do jornal Domingo! O rigor e disciplina dele facilitaram bastante o nosso trabalho. Muito colaborativo, nunca deixou nada, mas absolutamente nada por fazer. Muitas vezes até deixava o que estava a fazer para fazer o mais urgente, ou fazia as duas coisas! Mas sempre disponível.
Homem de poucas falas, como se disse, nunca se metia em fofocas. Pouco falava nem sobre a sua vida, nem sobre a vida de outros.
Foi um grande prazer trabalhar com o Severino Sumbe, aliás, com o Chefe Sumbe! Até sempre, mais velho.
Parte do espólio histórico do património da Cidade de Maputo são alguns locais/edifícios (emblemáticos) que foram pertença de antigas (coloniais) comunidades forasteiras em Moçambique cuja funcionalidade era a interação social e cultural da respectiva comunidade e não só.
O “Palácio dos Casamentos” (Comunidade Grega), o Museu Nacional de Arte (Comunidade Goesa), o Sindicato Nacional dos Jornalistas (Comunidade Inglesa) e a antiga Escola Nacional de Artes Visuais (Comunidade Chinesa), constituem alguns desses edifícios. A par destes estão também outros edifícios de comunidades religiosas.
Com a independência de Moçambique em 1975, estes locais/edifícios foram nacionalizados e transformados em utilidades ditadas pela revolução moçambicana.
Depois dos anos 90, novas comunidades forasteiras se instalaram no país, casos de comunidades provenientes da África subsaariana como a ruandesa, nigeriana e burundesa.
Da presença destas novas comunidades, e em caso de reedição de um novo processo revolucionário em Moçambique (tudo é possível), que espólio ficará como marcas ou sinais da sua passagem ou presença no país?
Fiz a mesma pergunta a uns vizinhos que das várias respostas dadas, anotei, concordando, a seguinte: “Certamente os Bottle-Store”.