Escrever é uma das mais belas e nobres formas de expressão de ideias e sentimentos. Assim como os músicos o fazem cantando e tocando, os artistas o fazem dançando, pintando e usando outras formas de manifestação folclórica, eu o faço com a minha escrita. Quando escrevo, me permito experimentar momentos de abstração, de reflexão, de crítica. Me permito também viajar para lugares (des) conhecidos, lugares de um mundo as vezes real e outras vezes imaginário – mundo este que um dia sonhei mudar.
Na altura em que celebramos mais um aniversario da conquista da tão almejada independência, parei para pensar no meu país; país que me viu nascer e crescer. Parei para escrever sobre o passado, o presente, e futuro deste belo Moçambique. Sobre os sonhos que sonhamos e não realizamos enquanto nação.
(In) dependência vista de uma forma geral como o culminar de um longo processo de luta pela conquista da autodeterminação, das liberdades e do direito de sermos uma nação e um país no verdadeiro sentido. Processo este que a história consagrou como um momento em que os moçambicanos decidiram colocar fim a um longo período de dominação e subjugação colonial, e que já pesava as costas de quem sentiu na pele os horrores do colonialismo, dos maus tratos, humilhação e desumanização perpetrada pelas mãos do colono durante largas décadas. Os moçambicanos tomaram o poder e abriram uma nova página na sua ainda incipiente história.
O mítico estádio da Machava, encheu-se de alma para vivenciar um dos momentos mais marcantes da história de Moçambique – A proclamação da independência nacional. Um momento em que milhões de moçambicanos inauguraram uma nova fase. Fase esta que se adivinhava difícil e perniciosa, mas que os filhos da terra saberiam gerir.
A ideia de independência pressupunha um manancial de ideias e teorias que aos poucos foram se esbarrando com a dura realidade. A ideia de liberdade, progresso, desenvolvimento, segurança, soberania, sedimentação da democracia, construção das bases para a prosperidade da nação eram basilares para a construção de um estado-nação. Todavia, muitas dessas ideias não foram devidamente cozinhadas, e não tiveram o desfecho desejado. Na ressaca do inverno de Junho 1975 a atmosfera era essa – de muita esperança, de muita expectativa e de uma sagacidade jamais vista.
Com a conquista da independência, emergiram novos problemas - alguns típicos de nações recém-independentes e livres; e de algum modo previsíveis em maior ou menor escala; outros foram resultado da natureza humana avida em ter poder, e da ganância de alguns governantes, muitos deles inexperientes e ciosos em sentar-se ao lado do famoso banquete.
O despreparo, a ganância e a permeabilidade às investidas do neocolonialismo, semearam paulatinamente o divisionismo, a desconfiança e a traição entre as mesmas pessoas que outrora uniram-se para libertar o país. As constantes incursões das potencias imperialistas, a famosa mão externa disfarçada de ajuda, foram se cristalizando na sua mais antiga e bem-sucedida fórmula do divide et impera (dividir para reinar).
Os nossos libertadores, os nossos heróis e os nossos referenciais de luta e verticalidade foram se transfigurando ao sabor do vento, e alguns deles viraram, nossos opressores. Nasceram elites negras, que se esqueceram dos ideais da revolução e se preocuparam em vestir a máscara de ovelha em corpo de lobo. Os nossos libertadores, tornaram-se obcecados pelo poder e pela posição de destaque no banquete pós-independência. Recriamos e personificamos a aquilo aque Frantz Fanon designou de “Pele Negra e Mascaras Brancas”, onde pretos oprimem outros pretos e se acham legítimos eleitos para o fazer em virtude do tempo emprestado durante a mocidade e juventude para que fossemos hoje o país livre que somos. Será que somos?
A pobreza, a guerra, as desigualdades, a corrupção, a deficiente cobertura da rede sanitária, educacional e nutricional são alguns dos elementos que devem ser reflectidos por todos e por cada um de nós, ao celebramos a conquista da independência. O maior presente que podemos oferecer aos moçambicanos é pensar o país de forma integrada e holística. É atacar aquilo que julgamos ser nefasto ao nosso desenvolvimento como país . É oferecer, não discursos vazios e populista, mas programas concretos, inclusivos e conferir mais dignidade para o nosso povo. E isso só se consegue se recuperarmos a mística que nos guiou até ao mítico momento em que gritamos na Machava que somos um país independente.
Nesta curta reflexão, o meu pedido carrega a dor e frustração do nacionalista que muito lutou por este país, mas que parece agora vencido pelo cansaço. Um nacionalista que se frustrara com o estágio do seu país amado – por sinal esse é Moçambique. Carrega também o desejo inconfesso de um grupo comprometido com os ideais da revolução, mas que se sentiu traído e abandonado no tempo, no espaço e pior ainda, na consciência patriótica de um amanhã em que o sol de Junho brilharia pelos quatro pontos cardinais do país; a mensagem do homem novo que nunca chegou a ser visto senão no próprio projecto. Carrega por fim, ainda que sem mandato, uma juventude que vê mutilada e adiada a possibilidade de participar de forma activa no desenvolvimento do país 47 anos após a sua independência.
A fórmula “Umuntu Ngumuntu Ngabantu”, que significa nós somos e nos tormanos mais pessoas quando reconhecemos e valorizamos a existência do outro faz-se cada vez mais actual no momento em que caminhamos para o jubileu da independência em 2030. Esta fórmula da alteridade é um convite transgeracional para todas as forças construtivas e ciosas em edificar um Moçambique livre da pobreza, da guerra e das desigualdades sociais - um lugar onde todas as crianças possam sonhar, acreditar e tornar os seus sonhos uma realidade viva e vivificadora. Onde todos moçambicanos e todas moçambicanas possam viver o verdadeiro significado, enxergar o brilho e, sentir o calor do Sol de Junho.
Não se esqueçam de voltar. Não se esqueçam do vosso país. Não nos deixem perder a esperança; não permitam que as nossas crianças cresçam sem sonhos. O Homem Novo ainda tem espaço e nós estamos dispostos a refundar a nossa ideia de moçambicanidade – este é um convite a ilustração.
Por: Hélio Guiliche (Filósofo)
A PGR fez mal em ir a Londres e batalhar para que as “dívidas ocultas” fossem judicialmente declaradas ilegais? Não!
A PGR agiu correctamente. Toda a sociedade civil se indignou com a descoberta do endividamento corruptivo e suportou a posição segundo a qual os moçambicanos não devem pagar dívidas que se revelaram num calote e beneficia meia dúzia de agentes do colarinho branco a soldo de uma máfia franco-libanesa.
A PGR ir a Londres foi um acto de bravura do advogado do Estado. As acções judiciais no estrangeiro tiveram um tremendo significado político. Moçambique ergueu-se para defender sua soberania (mesmo no caso do processo da extradição de Manuel Chang para Maputo), distanciando-se de uma dívida perversa e fazendo com que, em última análise, e depois de alguns anos em banho-maria, o Fundo Monetário Internacional (FMI) reiniciasse seu programa de empréstimos a Moçambique, com financiamento directo ao orçamento, arrastando, paulatinamente, outros doadores que tinham virado costas ao país e àquela modalidade de ajuda.
Por outras palavras, o custo político de uma inacção da PGR no estrangeiro seria grave. E, eventualmente, o diálogo com e o apoio dos doadores permaneceria no limbo. Aliás, o Conselho Constitucional também declarou a dívida como inconstitucional. De modo que ir a Londres foi também uma atitude de alinhamento com essa declaração de inconstitucionalidade.
E se a PGR ganhar o principal processo (Estado moçambicano contra o CS, Privinvest e outros – Declaração de ilegalidade das garantias e responsabilização civil dos que participaram na contracção das dívidas – High Court of Justice, Business and Property Courts of England and Wales Commercial Court)? No caso dessa hipótese ainda em aberto se verificar, será a cereja no topo do bolo. Moçambique recuperaria boa parte dos milhões roubados. E se perdemos, uma nova tragédia orçamental.
Mas...
Mas a PGR, como entidade do Estado, tem o dever de ser transparente, ela própria. A PGR tem o dever de prestar contas à sociedade. A PGR deve explicar qual foi o critério usado para contratar cada uma das firmas de advocacia estrangeira, as quais prestam serviço a Moçambique enquanto autor de acção judicial e as que nos defendem de acções e contra-atacam, seja em tribunais criminais como em fóruns de arbitragem.
A PGR tem o dever de explicar quem paga as suas despesas no estrangeiro. Se é o Governo, via orçamento do Estado, ou se são outras fontes...deve explicar-nos se os custos dessa toda assessoria não ultrapassam os limites orçamentais aprovados pela AR. Deve, em suma, vir a público explicar porque contratou esta firma e não aquela outra. É isto que pedimos!
“Carta” não está contra a PGR ter ido a Londres disputar a legalidade do endividamento oculto. O que pretendemos é que a Procuradoria Geral da República preste contas relativas às suas acções, sobretudo quando isso não acontece em sede da Assembleia da República.
A PGR não deve ser uma ilha isolada num arquipélago onde todas as outras ilhas devem actuar com probidade. Ela deve ser o exemplo cimeiro da transparência. É isso que exigimos! (Marcelo Mosse)
No distante ano de 1990, os nossos “Bons Rapazes” lançaram uma fabulosa música com o título Akuhanha, a seguir à greve dos professores que se registou nessas alturas na capital do país. Inspiraram-se no levantamento dos docentes e escreveram a belíssima música que é aquela faixa até aos dias de hoje.
Fabulosa, porque na verdade a música é maravilhosa, autêntica delícia, própria dos nossos Ghorwane! Mas também porque, em termos de letra, eles tentaram cantar o que a seus olhos era a sociedade moçambicana na altura. E, diga-se, uma leitura muito crítica, avassaladora: muito ousada até para a democracia que ainda não tínhamos em Moçambique nesse período histórico. Lembre-se que só foi em Novembro de 1990 que adoptamos a constituição que preconiza a democracia multipartidária que vivemos hoje.
Na letra cáustica da Akuhanha, a nossa era uma sociedade às avessas, de pernas para o ar, sem racionalidade, com muitos paradoxos, em delírio total! Diziam os “Bons Rapazes” nos seus versos que, na nossa sociedade moçambicana de então, "designavamos mafurreira de escola” (o estudo ao relento, debaixo de árvores - que infelizmente ainda continua) / “os estudantes fugiam dos livros” / “os professores abandonavam as salas de aulas e se passeavam nas ruas” / “os nossos hospitais estavam sem medicamentos” / “os médicos fugiam dos doentes” / “dependentes de muletas abandonando-as” / “roupas sem ninguém para vestir” / “comida sem ninguém para comprar e comer” / “peixe sem pescador para o pescar!” … e por aí fora. Ao longo da música, repetiam“swa tika, swa tika” (é pesado/violento)!
1990 foi daqueles anos verdadeiramente difíceis para a nossa “pátria amada”. A guerra dilacerante tinha atingido o auge da destruição; o país estava completamente parado ou em regressão, a economia quase toda ela paralisada. Não andava nada, ou não se passava absolutamente nada!
Hoje, passados mais de 30 anos, não podemos obviamente dizer que a sociedade é ainda aquela desses tempos, às avessas, em regressão, completamente destruída. Não. Há muitíssimas coisas que mudaram e para o melhor. Hoje, dizemos que Moçambique já não é mais o país de que se fala, mas o país com que se fala!
No entanto, a despeito de imensas coisas boas que por cá acontecem, há outras tantas aí que continuam um autêntico delírio!
Uma definição rápida do Google diz que delírio é um estado de alteração mental que faz com que um indivíduo apresente uma visão distorcida da realidade, sendo que isso pode ser demonstrado de diferentes formas, por meio de uma confusão mental, de uma redução da consciência e até mesmo de alucinações.
Que podemos dizer daquele agente de polícia que tentou perseguir para prender uma canoa na água a andar e depois a nadar, algures na costa da cidade da Beira?
Conta a reportagem que, numa das zonas costeiras da cidade da Beira, onde os pescadores concentram as suas canoas e de lá partem para a pesca, ou quando voltam ali as estacionam, dois polícias andavam por ali. Um do sexo masculino e o outro feminino. A passagem deles por ali coincidiu com o regresso de uma jornada de um dos pescadores na sua canoa. Consta que os pescadores usam uma técnica que a lei proíbe. Os polícias estavam seguros que aquele pescador estava a usar tal técnica. E o pescador sabia que teria problemas com eles caso lhe deitassem a mão! Vendo-se em apuros, o pescador vira a canoa de volta para o alto mar. E o polícia, tinha a arma a tiracolo, tira-a e a entrega à colega e corre de encontro à canoa!... Começou por correr, mas depois, pôs-se a nadar… ou a tentar nadar… Contaram testemunhas ao Balanço Geral que, às tantas, foi para baixo das águas, depois sobressaiu e… foi de vez! Dias depois, seu corpo seria encontrado sem vida!
Não é delírio isso? Que andaria na cabeça desse agente para perseguir uma canoa a nado?
ME Mabunda
Recentemente, a Assembleia da República aprovou a Proposta de Revisão da Lei n.º 14/2013, de 12 de Agosto, atinente à Prevenção e Combate ao Branqueamento de Capitais e Financiamento ao Terrorismo, elaborada e submetida à apreciação da AR pelo Conselho de Ministros.
A realidade e os relatórios de monitoria da implementação da Lei n.º 14/2013, de 12 de Agosto, atinente à Prevenção e Combate ao Branqueamento de Capitais e Financiamento ao Terrorismo, incluindo o Relatório de Avaliação Nacional dos Riscos de Branqueamento de Capitais e de Financiamento ao Terrorismo e o Relatório da Avaliação Mútua de Moçambique sobre Medidas de Combate ao Branqueamento de Capitais e Financiamento ao Terrorismo, demonstram que há um problema profundo concernente à implementação da lei em questão, bem como tendência crescente de espaço fértil para a prática de actos de branqueamento de capitais, num contexto de fraca responsabilização e prevalência da impunidade.
A Proposta da Revisão da Lei n.º 14/2013, de 12 de Agosto, aqui em análise, prevê expressamente a responsabilização e sanções das instituições financeiras e das entidades não financeiras pelas violações das normas previstas na mesma Proposta de Revisão, as quais são aplicadas pelas autoridades de supervisão competentes que detectem violações das obrigações previstas no mesmo diploma legal, uma vez em vigor.
Conforme o artigo 54 da referida aprovada Proposta de Revisão pela Assembleia da República, a supervisão das instituições financeiras e das entidades não financeiras no âmbito da prevenção e combate ao branqueamento de capitais, financiamento do terrorismo e financiamento da proliferação de armas de destruição em massa é exercida pelas seguintes autoridades:
Os deveres das supra mencionadas autoridades de supervisão estão previstos, essencialmente, nos artigos 55 e 56 da mesma Proposta de Revisão. No entanto, esta Proposta da Revisão é omissa relativamente à responsabilização ou sanções pela violação dos deveres ou fraca implementação da lei em questão por parte das autoridades de supervisão.
Nessa sequência, a questão de fundo que se coloca é: O que acontece ou que responsabilização para as autoridades de supervisão quando não cumprem com os seus deveres? Que responsabilização e/ou sanções para as autoridades de supervisão quando permitem por qualquer forma a prática de actos de branqueamento de capitais, financiamento ao terrorismo e crimes conexos ou precedentes como é o caso da corrupção?
A previsão de acções de responsabilização das autoridades de supervisão é importante para o sucesso dos objectivos pretendidos com a legislação sobre a Prevenção e Combate ao Branqueamento de Capitais e Financiamento ao Terrorismo. Aliás, a determinação de normas sobre deveres das autoridades de supervisão sem as correspondentes sanções enfraquece a própria função de supervisão, tratando-se de uma espécie de “norma morta.”
A fraca implementação da Lei n.º 14/2013, de 12 de Agosto, atinente à Prevenção e Combate ao Branqueamento de Capitais e Financiamento ao Terrorismo ainda em vigor está também ligada ao fraco exercício dos poderes de supervisão sobre a instituições financeiras e entidades não financeira no âmbito da mesma lei. Daí que não se percebe a razão pela qual a aprovada Proposta de Revisão desta lei ignorou fortificar as regras para a garantia do efectivo cumprimento rigoroso dos deveres das autoridades de supervisão.
Portanto, enquanto não houver mecanismos claros que forçam a implementação da lei atinente à Prevenção e Combate ao Branqueamento de Capitais e Financiamento ao Terrorismo e que eliminam os espaços de manobras para as autoridades de supervisão não levar a cabo as suas obrigações, os objectivos pretendidos com esta legislação não serão alcançados.
Por: João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos
Os meus amigos disseram-me isso, que sou uma mulher elegida. Ainda disseram mais, que a dança que sou, é um feitiço, então por onde eu passar, a própria terra vai dançar sob os meus pés, não só porque sou uma dança, mas porque dentro de mim há uma música repetida pelos pássaros voando no Cosmos, o que me torna o centro da vida, pois, segundo eles – os meus amigos – a vida será mais brilhante com a dança. Que sou.
Mas a culpa de todo este remexer que se cria por onde passo, é do meu pai, que olhou para mim no berço da maternidade e disse assim, a minha filha chama-se Niketche, e este será o erro mais belo dele, todos querem estar à minha volta, dançando a música que retumba dentro de mim, fazendo-me, ao mesmo tempo, uma música e uma dança. Sou o apogeo da vida, graças ao meu pai, e a sua loucura.
Quando vou ao mercado, ou quando caminho pelas ruas da cidade, ou ainda pelos becos do meu bairro e de outros conglomerados desta pequena terra, todos interrompem temporariamente os seus afazeres e começam a dançar. Homens e mulheres, crianças e velhos. Há muitos que nem sequer me vêem ao passar, mas ao verem os outros a dançar, dançam também, seguindo o ritmo produzido pelo meu nome e pelo meu corpo. Leve e profundo, segundo se diz.
Na verdade sou um feitiço. Se não fosse, não haveria este terramoto todo por onde passo em silêncio, sentido no meu interior as inexplicáveis vibrações dos meus antepassados. Até porque o meu próprio pai não sabe explicar a mutação do ritmo da vida das pessoas por onde passo, apesar de ter sido ele que olhou para mim no berço da maternidade e disse, a minha filha chama-se Niketche.
No dia em que eu via pela primeira vez a luz, embrulhada em confortáveis mantinhas, todas as parturientes dançaram, as parteiras também, e os visitantes e todos aqueles que estavam naquele momento. Meu pai chegou e começou a dançar também, uma dança que ele nunca tinha dançado antes e nem conhecia. Ele viu-me a dançar nos braços da minha mãe, como uma dança que se dança a si própria, e tudo isto só podia ser o resultado de uma premonição da qual não se apercebeu. Então, logo determinou, a minha filha chama-se Niketche.
“A África que o mundo necessita é um continente capaz de ficar de pé, de andar com seus próprios pés. É uma África consciente do seu próprio passado e capaz de continuar reinvestindo este passado no seu presente e seu futuro.”
Joseph Ki-Zerbo
Joseph Ki-Zerbo, que nasceu a 21 de Junho de 1922, em Toma, no Burkina Faso, há precisamente 100 anos, é, indubitavelmente, o mais importante autor da História de África e um dos mais proeminentes intelectuais africanos. Era lendária a sua verve, a sua transbordante retórica e as suas inesquecíveis alegorias. Mas isso não o afastava do rigor científico no seu mister. Antes pelo contrário. O seu empenhamento político não estorvava a cientificidade dos seus trabalhos, que são fundadores da historiografia africana. Foi um dos primeiros africanos de grande craveira a refutar a ideia de que o continente não tinha história nem cultura.
A sua “Histoire de I´Afrique Noire” (Paris, Hatier, 1972) é um livro cardinal. Este livro, que foi sucessivamente actualizado, teria uma tradução em português em dois volumes: “História da África Negra”. Ki-Zerbo estudou inicialmente em Bamako, no Mali, onde ganhou uma bolsa para frequentar a universidade em Paris, tendo-se formado na Sorbonne com distinção. Nos anos 50 encontra-se de volta ao continente de nascimento, contudo instala-se em Dakar, no Senegal, onde cria o Movimento de Libertação Nacional. Este foi essencial para o apoio dos movimentos libertários da África Ocidental. Tem depois uma longa e brilhante trajectória, que se reparte entre a sua demanda política e a sua curial incursão intelectual.
África tem hoje poucos nomes deste quilate, com um porte intelectual desta envergadura e acuidade, no entanto não nos sabemos rever em figuras como Joseph Ki-Zerbo. Onde estão os nossos pontos cardeais? As nossas universidades parecem mais taludes para tirocínios políticos e menos centros de estudos e de investigação. Não são capazes de abordar cientificamente estes intelectuais ou o seu marcante trabalho. Por isso, não se fala, entre nós, de Joseph Ki-Zerbo. Não se aperceberam os pressurosos intendentes da nossa academia deste centenário? Subscrevemos o anátema da desmemória. Somos contumazes no esquecimento, no olvido, no descaso e no vazio.
No entanto, aqui está um dos esteios do pan-africanismo, um dos homens que conceptualizou primordialmente a independência de África e dos africanos com um modelo de pensamento que se confrontava acirradamente com os preceitos coloniais e colonialistas. A matriz do seu pensamento radicava na necessidade de se observarem os processos históricos (eu diria até ontológicos) endógenos na idealização do desenvolvimento africano. Este espantoso intelectual preceituava, ainda, ou sobretudo, a união dos países e dos povos africanos.
“História da África Negra” aborda a evolução do continente africano desde a pré-história ao século XX. África era até então vista como um continente sem história. Joseph Ki-Zerbo desmentiu essa ominosa lenda num trabalho ciclópico e notável, com rigor científico irrefutável, que nos revela períodos que vão desde o esplendor à decadência de reinos e impérios, aos primeiros contactos com os europeus e a influência destes no devir do continente. Por outro lado, o autor escalpeliza os eventos que ao longo dos séculos dominaram África: os séculos, os conflitos, a pilhagem a que foi exposta, o dissídio dos que não se conformavam com a situação, a emergência das suas grandes figuras emancipadoras, sobretudo os pan-africanistas, o despertar do continente, os movimentos independentistas e, posteriormente, as independências e o seu tempo ulterior.
Joseph Ki-Zerbo, que morreu em Ouagadougou, a 4 de Dezembro de 2006, foi também um animal político obstinado, mas a sua longa e virtuosa vida foi dedicada sobretudo à investigação, à história e à escrita. Também se lhe reconhece um papel decisivo na direcção da “História Geral de África” da UNESCO. Seria distinguido no continente e fora dele, agraciado com muitas láureas e merecedor de insígnias. Por aqui, a despeito do nome na nossa toponímia, ignoramo-lo com a nossa proverbial soberba: incapazes de o estudar, de meditar sobre o que pensou e escreveu - o que poderia ser importante para discernir o presente e prospectar o porvir. Mas nós acreditamos nos prodígios da insciência, tal a nossa presunção. Talvez não nos devamos queixar. Quanto a mim, reputo e exulto africanos como este. Pelo entendimento que estabeleceu, pelo pensamento que estruturou, pela lucidez da sua abordagem, pela sua eloquência, pelo discernimento de África e pelas referências que deixou, pela sua imensa sabedoria, pela erudição e pela ampla e ilustrada cultura, pela sua mestria libertadora. Pelo passado, mas sobretudo pelo presente e futuro de África.
KaMpfumo, 21 de Junho de 2022