Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI

Blog

quarta-feira, 20 maio 2020 09:07

Abaixo o colonialismo!

Chama-se Lundunu, um maconde aportado em Inhambane nos finais de 1974, logo depois da assinatura dos Acordos de Lusaka, aos quais seguiu-se a independência de Moçambique no dia 25 de Junho de 1975. Já não ostenta a marca da tatuagem incrustada no rosto, desenhada a frio com recurso a incisão por objectos cortantes, e se calhar é a idade que foi apagando esses sinais da crueldade. Mesmo assim, ainda há resquícios numa face violada para sempre, porque a navalha penetrou de tal maneira que o seu rasto será indelével.

 

Nunca saíu daqui, desde que chegou com uma AKM à tiracolo, gritando, abaixo o colonialismo! Nesse tempo, Lundunu era um homem engajado, pronto a dar tudo, incluindo a juventude que ainda lhe sobrava, depois da longa noite nas matas. Tinha imensas dificuldades de articular a língua portuguesa, mas isso não era importante. O que contava era a euforia, o fascínio de estar na cidade sob o brilho do néon, contrariamente às florestas, onde a luz era emanada pelos pirilampos, e pelo encandescender das balas.

 

Mora na periferia da urbe, numa casa que não mereceria a um combatente da libertação de um povo que não é feliz. Mesmo que eu tivesse uma mansão, diz Lundunu, não sentiria prazer, pois, o mote da minha luta é a felicidade de todos. Será um absurdo e inútil todo o sacrifício que fizemos, se no lugar de provermos pão à mesa de todos, buscámo-lo para o nosso egoismo e ganância. Então não valeu nada a nossa epopeia!

 

Lundunu é um homem frustrado, no sentido de que agora percebe que tudo o que fizeram, e tudo o que disseram nos comícios, diluiu-se. Ele próprio considera-se escória, levado num camião basculante e entregue aos catadores de lixo, depois de ter feito parte da tripulação, durante anos e anos. Não tem nada que lhe dê o orgulho de ter erguido a plataforma da liberdade, juntamente com os mesmos camaradas que hoje lhe olham com desdém, a não ser o manancial de histórias de nunca acabar, que conta com rigozijo nas bebedeiras sem fim.

 

No fundo, Lundunu já não espera nada. É uma pessoa resignada, que se entristece pela mentira dos seus camaradas, pela falsidade de dizerem uma coisa à luz do dia, e fazerem outra coisa no escuro. Nós não lutamos para isto, di-lo desesperado enquanto puxa sofregadamente o charuto de tabaco puro trazido de Murrombene. O que me dói ainda mais é que somos indignos dos nossos filhos, não são eles que aprendem a roubar, somos nós que os ensinamos. Somos nós que os mostramos o caminho da desonestidade. Abaixo o colonialismo!

 

O colonialismo a que Lundunu se refere não é o ora português. Esse já foi desmantelado. Lundunu chora lágrimas profundas ao dizer que estamos a nos colonizar entre nós, sem vergonha de nos apresentarmos perante os que se riem da nossa incapacidade de construir um Moçambique próspero para todos. Lundunu diz mais, estamos a nos ridicularizar aos olhos do Mundo. E enquanto os jovens, que já estão embebedados pela necessidade desenfreda de amealhar dinheiro sujo, não mudarem o seu próprio rumo, então ninguém sabe para onde vamos.

quarta-feira, 20 maio 2020 05:31

O Museu dos Algozes

Anteontem, no Dia Mundial dos Museus, pensei sugerir aqui uma ideia para marcar a data, uma ideia “museulógica” mas, atarefado, perdi a engrenagem. Contudo, a ideia ainda me atravessa a garganta. Duvido, no entanto, do seu consenso. Trata-se de um museu nacional do agreste, no sentido bucólico do termo.

 

Uma coisa para documentar os aspectos mais negros da nossa história recente. Temos a preguiçosa mania de escrever pouco, em livro, sobre o presente. No Brasil, a lava-jato deu dezenas de livros. Imagino agora a matéria-prima bolsonara. Na RAS, o Guptagate encheu as prateleiras da Exclusive Books.

 

Aqui, as Dívidas Ocultas ainda não fizeram um livro, mesmo pejadas de personagens romanescas como os Nhangumeles, o meu ndriyango. De modo que um museu faria sentido. Caberia lá tudo de pária que domina nossa sociedade. O crime organizado. Os raptos. A corrupção desenfreada. As próprias dúvidas ocultas.

 

Exporíamos os raptores usando os bichos recorrentes do Idasse Tembe. Dos algozes do Carlos Cardoso existem imagens à catadupa. Da dívida sinistra tão muita. Seria um museu de imagens e memórias negras das vítimas, do povo sofrido. A ideia é que nossa sociedade se textura entre enredos negros, tenebrosos. O sangue dos nhongos a centro, adiando vidas. E o horror fétido a norte, que nos despedaça como nação. Um museu não serve também para estas coisas?

 

Um Museu dos Algozes? (Marcelo Mosse)

O empresário Juneid Lalgy mostrou que não é um paraquedista no futebol. Ele não está para se servir do futebol; está servindo o futebol. Desde Fernando Gomes, do Nova Aliança da Maxixe, que eu não via um verdadeiro empresário devotado ao desporto-rei, abnegado, sem interesses obscuros. Um carola como havia antigamente.

Juneid levou o Chibuto ao "Moçambola". Imaginem! Agora quer fazer história com o ABB (Associação Black Bulls), da Matola. Deve ter percebido que estar no grande Maputo é um trampolim para voos mais altos. Sua academia de formação é das melhores do país. Ninguém apostou tanto na formação como ele. E ontem apresentou um cheirinho do Estádio de Futebol que está a erguer, um complexo desportivo.

 

Quem é o empresário que fez igual em Moçambique, depois da independência, construindo um campo de raiz? Nem o Estado! Zimpeto foi uma boleia chinoca. Aliás, ao longo dos anos, ao invés de construir, destruímos nosso parque desportivo, algum vendido ao desbarato e depois queremos o futebol em lugares que não merecemos.

 

Empresários de verdade como Juneid Lalgy são necessários no nosso desporto. E devem ser acarinhados. Este texto é minha maneira de tirar o chapéu diante de uma obra ainda em curso, mas que dá conta, sem batota, da presença de um homem erguendo uma história de sucesso no nosso futebol.

segunda-feira, 18 maio 2020 09:10

O repto ao silêncio

Era uma daquelas terríveis noites dos quaren (tena) ta e dois graus Celcius. Baltazar Delgado dedica parte do seu tempo à tela empoeirada da “TV corcunda”, de apenas 12 polegadas, que há anos reivindica o eterno descanso. Ao seu lado, Ndole, uma das herdeiras daquelas paredes cruzadas por teias de arranha, de 13 anitos de idade, disputa o comando do maltratado aparelho para seleccionar o canal apetecível. É de loucos – murmura avó Ndali, a sempre prestativa secretária familiar, ante aquele “puxa-puxa” que quase fazia rolar terra abaixo uma das pilhas do “espatifado” comando. Enquanto a pequena insiste em percorrer a lista de opções de entretenimento, Delgado teima em permanecer num dos canais informativos nacionais. Afinal o debate, que mal começara, prometia. Aquela estrela do filme “laundering” estava à solta lá, do outro lado do hemisfério, e era preciso discutir as suas implicações na macroeconomia doméstica. Mal os painelistas, tradicionalmente críticos, desenvolvem seus raciocínios, a pequenota solta-se: Vão-te m*tar!

 

O tom, carregado de ar sabichão de quem tem ainda muita “poeira por comer” nestas estradas da vida, deixa claro que a mensagem direciona-se ao titios do debate. Silêncio e perplexidade invadem a alma de Baltazar. Aquilo era demais para uma criança! E como que para aclarar as suas razões, ei-la (Ndali) embrulhada num manto de justificativas baseadas em factos acidentalmente vistos em noticiários televisivos. Segundos depois, Delgado entretém-se a exorcizar aquela ideia que insinuava a existência, na terra das tulipas, de caminhos cobertos, não de rosas como se podia esperar, mas de cacos herdados dos seus ancestrais. Irredutível, Ndole socorre-se de uma data de “sortes” daqueles que ousaram “dizer das suas” para alimentar a sua ingénua posição. Enfim, o curto diálogo gera, teimosamente, uma espécie de auto coibição da lucidez opinativa. Afinal, os factos não davam mesmo azo a qualquer argumento.

 

Atónito, Delgado mergulha, por instantes, num monólogo inusitado, a matutar, a juntar as peças daquela afirmação, para depois concluir: “Bom…o alerta em si não deve ser chocante. Mas a idade de quem o profere, sim. Não gostaria que estes petizes aprendessem que o preço para esquivar-se da cólera de quem resiste ao debate informado seja esta ensurdecedora mordaça. Mas os estribados martírios envolvendo os “homens da pena”, algures em Cabo, não deixam dúvidas de que este parece ser o caminho escolhido por uns e outros, cujas atrocidades são premiadas com astronómicos saltos ao cume do monte real. Se a moda pega, não tardam, tal como as tendências sugerem, a reproduzir-se nichos de adeptos do “corta-mato” ávidos em chegar-se ao mel, sem jamais sujeitar-se às picadas das abelhas. E o receio de que esta seja a semente desse paganismo democrático, do prenúncio de uma sociedade do “salve-se quem poder”, interrompe o monólogo. Num gesto de rendição, termina pensando: Este repto ao silêncio parece preste a dar os seus frutos – a propagação de gerações mergulhadas na hipnose dessa visão letal e obcecada pelo desfalque da tão propalada democracia.  

 

Urge, então, mudar o estado das coisas, não no silêncio, pois e tal como já dizia o famoso pedagogo Paulo Freire, não é por aí (silêncio) que os Homens se fazem. Mas na palavra, no trabalho, na acção-reflexão”, conclui Delgado, mal recomposto da soneca à cesta que o mergulhou naquele sonho, interrompido pelo canto de Frederico, seu galo de estimação.

segunda-feira, 18 maio 2020 08:07

Recomendações para Boris Johnson

O acto de cumprir uma recomendação e o de abrir uma encomenda são da alçada do destinatário. Este é livre de decidir se cumpre ou não uma recomendação e se abre ou não uma encomenda. Por conta disto e quando se trate de entidades públicas é aconselhável o resguardo de expectativas quanto ao cumprimento de recomendações de relatórios oficiais. Um exemplo: o relatório geral das contas públicas nacionais, adiante laudo médico, sempre prescreve recomendações e o executivo continuamente estupra-as. Um vício que preocupa a sociedade e é também par(a)lamentar.

 

Foi assim na semana passada. O laudo médico foi levado à polícia par(a)lamentar. Da perícia, depreende-se de que houve, mais uma vez, um delito. Desta vez, fora as escoriações de anteriores estupros e por sarar, o corpo apresentava queimaduras de nível 4. E a propósito, um reformado par(a)lamentar foi chamado a tecer algumas observações sobre a contínua e abominável violação. Este, fazendo jus da sua experiência, disse aos prantos de que já não se estava perante a figura de “espontânea vontade” mas a de “deliberada vontade”. Ainda disse que o assunto “fora grave é desagradável” e que o autor carregava nas costas outros delitos similares, levando-o a concluir que tal comportamento é compatível com a “delinquência por tendência”. 

 

Do enredo as recomendações para Boris Johnson, Primeiro-Ministro (PM) inglês. Por ser inglês e PM, preenche convenientemente o lugar da famosa expressão “Para inglês ver” que significa algo feito apenas para preservar as aparências. Não seria também o caso das recomendações do relatório das contas públicas? Também, por estes dias e por mais que o Boris Johnson quisesse ver, não lhe sobraria tempo por estar em recuperação da recente enfermidade viral que lhe apoquentara e ainda andar ocupadíssimo na gestão pública da pandémica Covid-19, a responsável da moléstia do PM inglês.

 

Por outra e para terminar: a expressão “Para inglês ver” remonta aos tempos da abolição da escravatura, sobretudo, em referência de esclavagistas que a fingiam cumprir, temendo sanções da Inglaterra que, na altura, era a principal potência (e polícia) mundial e quem financiava o grosso do comércio internacional. E em tempos de moderna democracia para quem se aparenta? Para os que financiam ou para os que definham? O laudo médico não diz, mas aparenta que a conta sobra para o último.

segunda-feira, 18 maio 2020 07:19

O absurdo de uma reintegração desintegrada

É assim: quando uma pessoa faz uma coisa repetidas vezes, a pessoa se acostuma a fazer essa coisa e, mais tarde, essa prática torna-se hábito. Quando o hábito faz bem ao praticante e a terceiros, chama-se virtude. Temos como exemplo: amar, respeitar regras, não levar bens alheios, devolver o emprestado, ajudar, solidarizar-se, e por aí além. Quando o hábito é mau, chama-se vício. É por isso que o hábito de roubar, matar, estuprar, fumar, beber álcool, consumir estupefacientes, e outros são considerados vícios. Por fim, quando o hábito não é bom nem mau, é mania. Assobiar ao trabalhar, ler jornal enquanto caga, cantar quando cozinha ou toma banho, rir a toa, etecetera. Num português simples e pouco escolástico diria que este é o princípio da filosofia da vida. Talvez o embrião da ética. 
 
Há virtudes que são muito benéficas ao convívio humano que a sociedade as transforma em leis. Há vícios considerados tão prejudiciais à sociedade que viram crimes. E como a vida é dinâmica, a sociedade vai observando que há também algumas manias que vão-se tornando prejudiciais a convivência que, em determinadas épocas da vida, a sociedade as classifica de vícios. É o caso do bullying que até pouco tempo era troça - uma simples mania de algumas crianças. 
 
Ora, sendo Moçambique um país pobre, onde o Estado não consegue prover as necessidades básicas da população, o excesso de regalias, mordomias e benefícios dos gestores públicos e governantes pode ser considerado um mau hábito, portanto, um vício. Está mais do que provado que esses excessos não são bons nem para os beneficiários e, muito menos, para o povo contribuinte e eleitor. 
 
Em primeiro lugar, quero dizer que a iniciativa de reintegração dos deputados e dos ministros é pertinente e oportuna, mas peca na génese, objetivo, modelo e estratégia. Quando há um toxicodependente na família, ela [a família] se reúne e decide interná-lo para a sua reabilitação e posterior reintegração à família e à sociedade. Portanto, não é o próprio drogado quem decide se internar por sua iniciativa. Então, não devia ser o próprio deputado e ministro a desenhar o formato da sua própria reintegração. Não faz sentido! Não é de estranhar que eles decidam se encher de dinheiro. 
 
Num país pobre como o nosso, dar dinheiro a um ex-deputado ou ex-ministro para se reintegrar na sociedade é o mesmo que dar dinheiro a um toxicodependente para deixar de consumir cocaína. Isso não existe! O mínimo que pode acontecer é, neste caso, o viciado ir comprar a própria machamba e passar a fazer xima de cocaína com caril de haxixe acompanhado com salada de suruma.
 
Então, se concluirmos que ser deputado e ministro é viciante, temos, então, de assumir que o processo de reabilitação é penoso e doloroso. A desintoxicação chega a ser mais dolorosa do que o próprio vício. Usam-se camisas de força. Para o nosso caso, quiçá, a melhor forma de reintegrar essa gente seria colocar os gajos nas filas de consulta dos hospitais, deixar os gajos no empurra-empurra das paragens de chapa no fim da tarde, transportar os gajos nos "mai-love" durante semanas, entregar aos gajos as facturas de energia e água, deixar os gajos encherem "full-tank" de gasosa, etecetera. Isso, sim, valeria a pena! Levar o ministro do Interior e da Defesa a viajar via terrestre na zona Centro e ligar para tio Nhongo atacar os gajos. Levar os gajos a viver umas semanas em Quissanga e Mocímboa. 
 
Se reconhecemos que o excesso de regalias, mordomias e benefícios é um fator de desintegração social, então, definitivamente, oferecer dinheiro a esse tipo de desintegrados, como forma de reintegrá-los socialmente, é dos maiores absurdos da vida. Se foi o dinheiro que os desintegrou da sociedade, como é que o mesmo dinheiro [acumulado ainda mais] vai reintegrá-los?! Como é que se dá um saco de suruma a um surumático para deixar de fumar?!
 
Como é possível se reintegrar alguém com muito dinheiro numa sociedade onde o normal é viver sem dinheiro?! Isso é o mesmo que devolver o pássaro ao seu habitat dentro de uma gaiola ou devolver o peixe ao mar dentro de um aquário. Qual é a lógica, afinal?! 
 
- Co'licença!