Não fiquei impressionado quando Sive foi nomeado Comandante Geral da PRM. Não porque duvide da sua capacidade, mas porque já vi este filme antes. Celebramos a queda de Bernardino Rafael como celebramos a de Khalau no passado. Como se mudar um nome fosse suficiente para mudar um sistema. Como se uma nova assinatura num documentos resolvesse problemas que levam décadas para se entranhar no tecido de uma instituição.
Este é um erro recorrente em Moçambique: acreditamos que mudanças individuais trazem transformações estruturais. Mas a história nos ensina o contrário. As estruturas não apenas resistem às pessoas, elas as moldam, as limitam e, frequentemente, as fazem fracassar. Trocar um comandante sem reformar o sistema é como pintar uma casa condenada e esperar que ela não desabe.
Sive já foi baptizado com alguns raptos. Figuras da oposição continuam a ser assassinadas. Ele não criou essa realidade. Ele herdou uma polícia que normalizou os raptos e uma estrutura de segurança moldada pela repressão. Mas a pergunta essencial não é apenas o que Sive pretende fazer, mas com que instrumentos ele vai trabalhar.
Com as mesmas enxadas de cabo curto?
Não se pode esperar uma polícia diferente a operar com os mesmos métodos, os mesmos incentivos e a mesma cultura institucional. Não vamos colher 100 toneladas de milho num determinado número de hectares se a única ferramenta disponível for uma enxada de cabo curto. É humanamente impossível. Da mesma forma, não se pode exigir que a polícia proteja os cidadãos se a sua estrutura de trabalho continuar a ser a mesma de sempre.
Para entender como chegamos aqui, basta olhar para a polícia do dia-a-dia, a que se encontra nas esquadras e nas ruas.
Tenho um amigo que aluga carros. Um dia, um cliente seu penhorou uma das suas viaturas para um jovem como garantia de uma dívida. Como não conseguiu pagar, decidiu entregar o carro à polícia. E o mais impressionante? A polícia aceitou o carro como “penhor” sem questionar a propriedade do veículo. Nenhum agente pediu provas de que o carro pertencia àquele jovem.
Quando o verdadeiro dono apareceu com os documentos que provavam que o carro era dele, começou o verdadeiro pesadelo. A polícia, ao invés de simplesmente verificar a matrícula nos serviços de registo automóvel, disse-lhe que levariam muito tempo para confirmar a propriedade. Como se houvesse mistério num simples cruzamento de dados. Enquanto o processo se arrastava, o carro ficou no parque da esquadra. E quando finalmente foi liberado, pasme-se: faltavam peças e itens do interior tinham sido roubados.
Outro caso: um jovem estava sentado dentro de um carro estacionado. Dois polícias aproximaram-se e, sem motivo, levaram-no à esquadra, alegando que estava a conduzir sem carta. Para ser solto, ele precisou de ajuda externa. O verdadeiro motivo da detenção? Queriam dinheiro.
A polícia moçambicana há anos que opera assim: extorquindo o cidadão das mais variadas formas. Esse processo não começou hoje. É um hábito institucionalizado, refinado ao longo do tempo, tornando-se parte da engrenagem que sustenta a corporação. Hoje em dia a polícia já não recupera telefones roubados. Aliás, recupera-os, mas para si e no processo aproveita-se para extorquir os legítimos proprietários.
Diante dessa realidade, o que acontece quando apenas mudamos o comandante? Ele se adapta ao sistema ou é esmagado por ele.
A polícia serve para proteger ou para reprimir?
O que acontece na polícia moçambicana é um reflexo do país. O comandante muda, mas a lógica permanece. O uso desproporcional da força para reprimir manifestações não começou com Bernardino Rafael e não terminará com Sive. O problema não é a pessoa no comando, é o modelo policial baseado na coerção.
No modelo actual, um polícia sai de casa e, ao invés de pensar em proteger a comunidade, sabe que terá de arranjar formas de “ganhar algo” no dia. Não porque quer ser corrupto, mas porque o próprio sistema incentiva esse comportamento. Como esperar que um agente da polícia actue diferente se o seu treinamento, os seus superiores e as suas condições de trabalho o empurram para esse caminho?
E mais: como se espera que a polícia actue sem violência se as únicas ferramentas disponíveis são armas de guerra? É como mandar um dentista extrair um dente, mas só lhe dar chaves de fenda e martelos. O resultado não será um tratamento, mas uma amputação.
A polícia moçambicana não investe no policiamento comunitário, em treinamento adequado, em técnicas de desescalada de conflitos. E sem essas mudanças, a substituição de comandantes será apenas um ritual burocrático.
Então, antes que qualquer comandante fale em combater o crime, há três questões que ele precisa responder:
Se Sive não puder responder a essas perguntas, então seu discurso de tomada de posse —falando sobre restaurar a confiança da população, garantir a ordem pública e combater os raptos — será apenas palavras ao vento.
Porque se a estrutura não muda, o ciclo continua: comandante novo, métodos antigos, mesma brutalidade, mesmo fracasso.
A cada nomeação, surge um optimismo artificial: “Desta vez será diferente!” Mas quantas vezes já ouvimos isso? Quantas vezes já nos iludimos com a troca de rostos, enquanto os mecanismos de repressão seguem intactos?
O problema nunca foi Khalau. Nunca foi Bernardino Rafael. O problema não será Sive. O problema é o sistema que os cria e os torna irrelevantes.
A confiança da população na polícia não virá de discursos ou de novos nomes no comando. Ela será o reflexo de mudanças estruturais reais. Enquanto essas mudanças não acontecerem, continuaremos a ver o mesmo filme.
A única dúvida que resta é: até quando vamos confundir mudança de rostos com mudança de rumos? Para terminar, se Sive tiver respostas para aquelas três questões acima talvez podemos falar de alguma réstia de luz no fundo do túnel, mas se a ideia central do seu trabalho for atacar os sintomas então será mais do mesmo.
* Jornalista e Director Executivo na empresa Mídia Lab
Inspirado no filme Roman J. Israel, Esq., interpretado pelo grande Denzel Washington, no qual um advogado se vê forçado a processar a si mesmo, este documento serve como minha própria acusação, para que os meus algozes depositem aqui todas as suas indignações. Assim, nos meus textos futuros, poderemos discutir ideias sem ataques pessoais.
Acusado: Rui Lamarques
Crime: Pensar, escrever e questionar sem autorização
Juiz: Opinião Pública Enviesada
Procuradores: Os Verdadeiros e Únicos Guardiões da Verdade
Acusações
O réu é acusado de perder tempo a debater temas que não têm a aprovação do Ministério das Prioridades Populares. A denúncia exige que ele aborde exclusivamente tópicos de extrema gravidade, sob pena de ser considerado cúmplice do sistema.
O réu teve a audácia de escrever um texto sem antes submeter a sua opinião à validação dos verdadeiros representantes da indignação nacional.
Ao invés de atacar os alvos correctos indicados pelo Ministério da Indignação Se(Co)lectiva, o réu desviou a sua atenção para questões secundárias, o que demonstra uma perigosa falta de alinhamento com a cartilha oficial da revolta.
“Criminoso é o autor deste post. No Facebook, o Unay Cambuna é um criminoso de longa data. Haver um jornalista que vem apoiá-lo é duplamente criminoso.”
O réu cometeu o grave erro de exigir tratamento digno a um moçambicano. Tal atitude o torna-o automaticamente cúmplice dos supostos crimes cometidos por essa pessoa.
“Quando as pessoas vêem o mundo apenas pelos seus olhos (privilegiados), jamais irão perceber a atitude dos outros (os tais diferentes).”
O réu foi formalmente acusado de ter nascido num contexto que não sofreu dificuldades o suficiente para opinar sobre o comportamento de outras pessoas. Para sanar esse erro, recomenda-se que ele abdique de seu pensamento crítico e aceite que o comportamento inadequado é sempre culpa da sociedade, e nunca do indivíduo.
“O caos que se vive hoje em Moçambique é para estabelecer uma nova ordem no país!!!”
O réu incorreu no erro de apontar a desordem em situações triviais, ignorando que o verdadeiro colapso do país já está em curso e tem objectivos superiores. Sendo assim, está proibido de discutir qualquer tipo de problema social ou urbano sem antes reconhecer formalmente a existência da Grande Anarquia.
“Se queremos ter cidadãos que sabem se comportar, temos de garantir primeiro a qualidade de educação, sim, educação!”
Ao sugerir que comportamento e civilidade dependem de educação e não apenas de contexto socioeconómico, o réu cometeu um acto de opressão epistemológica. A sua visão elitista desconsidera que comportamento é apenas um reflexo da marginalização social e nunca uma escolha individual.
“A anarquia que a mim assusta, é ver um indivíduo a ser empossado como ministro da justiça por ter ajudado de forma fraudulenta um cidadão a ascender ao cargo de Presidente da República.”
O réu é acusado de debater temas variados, quando todos sabem que o único problema digno de atenção é o processo eleitoral. Qualquer iniciativa de discutir outros problemas sociais é vista como uma tentativa de desviar o foco da luta principal.
O réu errou! E se errou uma vez, deve ser para sempre desacreditado. Uma das grandes acusações contra o réu é a de ter cometido o grave pecado da falibilidade. Ele já interpretou sinais de maneira equivocada, já previu cenários que não se concretizaram e, como qualquer ser humano, já formulou hipóteses que o tempo desmontou. Quando os primeiros indícios de uma possível manobra para um terceiro mandato surgiram, o réu foi dos que suspeitaram. Parecia-lhe plausível, dados os discursos de figuras próximas ao poder e a forma como certos eventos políticos se desenrolavam. Mas os desdobramentos provaram outra coisa. Ele estava errado.
Pedido do Ministério Público Popular:
Diante de tais crimes, solicita-se que o réu aceite humildemente sua condenação e se submeta à penitência digital, que pode incluir:
Defesa do Réu:
O réu declara-se culpado de ter opinião própria, mas nega as acusações de má-fé. Argumenta que questionar faz parte da essência do pensamento crítico e que, se pensar for crime, a prisão do conformismo será o destino de todos.
Diante disso, submete-se ao julgamento popular e aguarda sua sentença nos comentários.
Em suma: O réu enfrenta a peculiar maldição de ser compreendido, ao mesmo tempo, como um traidor da pátria e um inimigo da revolução, um defensor do status quo e um subversivo perigoso. Os seus algozes variam conforme o vento das conveniências, atacando-o de um lado num dia e do lado oposto no dia seguinte. Essa inconsistência levanta a suspeita de que a verdadeira ofensa do réu não está no que ele diz, mas no simples facto de não pertencer cegamente a nenhuma cartilha. Curiosamente, os mesmos que hoje o atacam por essa leitura equivocada em várias situações são os que, se tal cenário tivesse se concretizado, o acusariam de não ter alertado a tempo. Ou seja, o verdadeiro problema não é o erro, mas o facto de o réu pensar por conta própria, sem esperar que a verdade lhe seja servida em bandeja oficial ou militante.
* Jornalista e Director Executivo na empresa Mídia Lab
Vi uma peça na STV, que também foi veiculado pelo Diário da Zambézia, que me deixou estarrecido, na qual colaboradores do BCI, que não foram flagrados com a mão na massa, foram transportados aos montes no Mahindra como ladrões de créditos e reputação firmada.Inclusive, o acto, lembrou-me um episódio no qual um jovem foi assaltado num carro e disse, aos polícias, que o acto tinha sido cometido por alguém com uma camiseta vermelha.
Alguns metros depois um jovem, que vinha do seu trabalho, foi cercado, recolhido, encarcerado é espancado. Motivo: tinha uma camiseta vermelha. Recolhido aos calabouços, mesmo com a vítima afirmando que não tinha sido aquele jovem a pessoa que lhe tirou o telefone, ele ficou detido, mesmo com testemunhos de pessoas que tinham estado com ele naquele dia ele permaneceu detido até que teve de ser libertado por uma procuradora.
Portanto, é regra da nossa polícia é deter sempre, pois qualquer pessoa acusada por eles é naturalmente culpada. Voltando ao assunto do BCI e a forma como os seus colaboradores foram recolhidos diz mais do banco do que da polícia. Ainda que todos jovens ali estejam envolvidos no crime, aquela forma indigna de transportá-los, diz muito dos valores do BCI enquanto empresa.
Há algo que se chama dignidade e o BCI deveria ter criado meios para garantir isso aos seus trabalhadores. É importante também que os jornalistas não se limitem a reproduzir o que a polícia diz? Não se pode transformar a suspeita na culpa de forma alguma. Nenhum colaborador ali foi surpreendido com dinheiro fruto do roubo, foram simplesmente recolhidos por serem trabalhadores do BCI e por terem estado na agência na hora em que deviam trabalhar. Ou seja, aquele era o único lugar onde deveriam estar naquele momento, suspeito seria estarem em outro lugar sem justificação.
O pior é que até prova em contrário são inocentes e, por regra, há grandes probabilidades de que sequer tenham antecedentes criminais. Se todos ali forem culpados a polícia falhou, o BCI falhou e o jornalismo perdeu a oportunidade de questionar os métodos da polícia e os valores que o banco preza no que diz respeito aos seus colaboradores. Devia ser regra, quando se faz jornalismo, avaliar se as pessoas que são classificadas como supostas criminosas são tratadas com dignidade ou não. Isso sequer é um valor do jornalismo, mas um princípio que nos devia acompanhar enquanto humanos.
Matilde trabalha na cidade como empregada doméstica, vive num bairro de expansão que responde pelo nome Santa Isabel. Quando chega ao Zimpeto, às 19h37, não encontra transporte, salvo uma carrinha de caixa aberta denominada _my love_ que deixa-lhe no local onde a terra batida beija o asfalto da circular. Matilde caminha, apesar de saber que é perigoso durante a noite, mas não tem escolhas. Leva consigo fé em Deus e meia lata de leite para o filho de dois meses, cujo pai baldou-se para outro bairro e não quis assumir. Dois quilómetros a caminhar colocam-lhe olhos nos olhos com um grupo de delinquentes, que para lhe tiraram o celular, ofertado pela patroa, espetam-lhe uma faca gelada no pescoço. Incapaz de soltar um pio viu todos homens apossarem-se do seu corpo. Curiosamente, no local onde morreu Matilde, minutos antes de violada, a polícia trocou a detenção dos criminosos por 500 meticais. Matilde poderia ter sido salva se o centro de saúde, avaliado em 0,000000000000001% do valor correspondente à quantia partilhada nas dívidas ocultas, tivesse sido construído como prometido. Enquanto Matilde se esvaía em sangue tinha lugar uma festa onde se distribuíam ranges rovers, motas top de gama, casas incríveis e por aí em diante. No outro lado de Maputo um rapaz banha-se no rio, mas a sua pele começa a arder sem motivo aparente. Inocente Reginaldo não percebia que era vítima dos químicos duma fábrica de alumínio por conta do seu bay pass. A multinacional jamais se responsabilizou pelos danos. Os responsáveis pela fiscalização fizeram ouvidos moucos ao clamor popular. Eles criavam campanhas de responsabilidade social em grandes órgãos de mídia e nos jornais escrevia-se: um rapaz morreu afogado por entrar no rio ébrio. Somos um país incrivelmente despraparado para pobres e dói, imenso, quando um golpe lixa tudo. Não que o dinheiro fosse tornar a nossa vida menos miserável do que já era. Neste caso tornou as coisas bem piores. Antes das dívidas 100 dólares eram 3000 meticais. Hoje são 6000. Ficávamos duas vezes mais pobres e por essa razão é impossível ser imparcial no que diz respeito à responsabilização dos estrategas da nossa penúria. Por Matilde e Reginaldo e por todos que se abraçam no _my love_ com essa chuva que se lixem.
Persistir no escrutínio da acção do CIP, nas suas “falhas”, no seu procedimento, não passa duma técnica para desactivá-lo e proteger os verdadeiros inimigos dos 28 milhões de habitantes deste país. Devemos fortalecer as nossas instituições. Isso é mais do que óbvio, mas tal não invalida a perspectiva do CIP e nem do grosso dos moçambicanos que julgam que a justiça só poderá ser feita doutra forma. Só que a questão sequer é essa quando se analisa o papel do CIP, mas sim a manipulação turva de sempre. Convém falar do CIP e de Borges Nhamirre para desviar a atenção dos verdadeiros malvados desta história macabra, cujas acções fizeram disparar o dólar para valores insustentáveis. Antes disto andávamos na casa dos 30 e e chegámos aos 83 meticais por dólar. Com essa dívida ficamos duas vezes mais pobres e assistimos, nesse hiato, duas guerras na zona centro e agora estamos com mais uma no Norte do país. Nem segurança e nem dinheiro obtivemos dessa empreitada. Portanto, a questão não é, de forma alguma, a posição do CIP, mas sim que enquanto se fala de Borges Nhamirre e do Elísio ninguém fala dos responsáveis. Esse é o verdadeiro e único perigo. Esquecer-mo-nos do tempo e do estrago que a dívida causou. Estrago esse que perdura até aos dias de hoje e que vai encontrar prolongamento na nossa inclinação para discutir perspectivas, agendas e quejandos. Dia pós dia, a realidade sublinha o acerto desse silogismo implacável.
Nesta situação, falar do Borges, persistindo no asfixiante escrutínio do papel do CIP, dos “problemas” de língua, nada mais é do que, repito, uma técnica para desacreditar a instituição, para proteger não somente os verdadeiros inimigos da sua causa, mas sim de todos lesados pelo golpe. Enquanto todos focos apontam para Borges e o CIP, os exploradores da nossa desgraça colectiva, os larápios do erário e os vampiros do nosso sangue continuarão vencendo a guerra da exploração do nosso já tão tênue pescoço.
Duas notícias impressionam, mas por motivos distintos. A primeira é um reconhecimento de incapacidade financeira, mas não se compreende sem analisar a segunda. A missa, assim de forma resumida, indica que o Conselho Autárquico da Cidade de Maputo não tem dinheiro para reparar as secções da protecção costeira da marginal de Maputo. A confissão é do actual edil, Eneas Comiche. Contudo, uma empresa cujo nome não foi revelado será responsável por reparar a barreira de protecção danificada. Parece, para olhos desatentos, algo normal, mas está muito longe disso. Trata-se dum custo que será imputado ao preço que nos será cobrado nas portagens a serem instaladas na circular de Maputo, mas essa nem é sequer a parte mais grave da coisa: há 22,5 milhões de dólares por pagar e uma obra que passou por cima do decreto n 5/2016, que aprova o Regulamento de Contratação de Empreitadas de Obras Públicas, Fornecimento de Bens e Prestação de Serviços ao Estado.
Efectivamente, a obra previa: (i) fixação do paredão de protecção, (ii) colocação de sete esporões de até 200 metros de cumprimento e (iii) reforço do revestimento com mangais a partir do quilómetro dez, na zona do Restaurante Costa do Sol, até à zona dos Pescadores.
Duas, das três coisas previstas, foram aparentemente realizadas, mas ficou por fazer a reposição do mangal numa extensão de dez quilómetros. Um passeio pela circular, exactamente depois da ponte do Costa do Sol ilustra de forma clara a redução do mangal. Importa, agora, perguntar qual foi o papel da fiscalização durante a execução da obra? O que levou, depois de despender 22,5 milhões de dólares a ignorar garantias ou estabelecer prazos de validade.
Podemos assumir que obra foi perfeitamente executada, mas a derrocada do paredão, volvidos cinco anos, prova exactamente contrário. É um pepino no colo da actual gestão do Conselho Autárquico que arranjou um ardil para resolver o problema sem olhar para a gestão anterior, 100% responsável pelo sucedido.
No entanto, assumir a responsabilidade e resolver o problema não pode significar fechar os olhos. Já em 2011, quando se designava município, falava-se em suspensão da atribuição de licenças para o desenvolvimento de actividades na zona costeira, uma medida para evitar o desaparecimento do mangal da Costa do Sol, já num estado (naquela altura) avançado de degradação. É provável que a razão da derrocada não se encontre no local onde a mesma ocorreu, mas no pipocar de edificios onde antes reinava o mangal. A desculpa, em 2011, do vereador municipal para o Planeamento Urbano e Meio Ambiente, Luís Nhaca, assinalava que o surgimento de assentamentos informais no Triunfo e zonas adjacentes resultava da fraca capacidade de fiscalização da edilidade.
Boa parte dos edifícios erguidos no Triunfo estarão submersos futuramente. Diante desta realidade incontornável ficámos de definir os limites do mangal da Costa do Sol e colocar postos de fiscalização. Porém, ao longo da circular é quase impossível visualizar o mangal. Surgem um pouco por todo lado mansões atrás de mansões enquanto o espaço onde a água devia repousar para promoção da biodiversidade mingua. Vamos, mais uma vez, repor o paredão e criar no lado oposto a situação ideal para a sua destruição. Ainda há tempo para remediar, mas depende de vontade política e do respeito pelas gerações vindouras. Tudo aquilo que acontece, numa parte da circular, ilustra o nosso descaso em relação ao meio que nos rodeia.
Rui Lamarques
Rita senta-se ao meu lado - à minha esquerda, para ser mais preciso. Não, não é um sonho, apesar de ela o ser. Esse pedaço de mulher está instalado por trás de uma mesa redonda com três homens que lhe satisfazem as vontades e os caprichos. É mais magra e mais alta do que aparenta sentada. O cabelo postiço oriundo da Índia, esticado num cabeleireiro no coração do populoso Maxaquene, e o baton vermelho compõem o visual desta sobrevivente da noite maputense, que guarda uma distância sem ser distante e que é difícil de situar entre o reservado, o tímido ou o longínquo. Enverga um curtíssimo vestido azul, justo na cintura, a evidenciar-lhe as partes intimas, em relação às quais os homens de Maputo largam esposas e filhos.
"Eu nunca trabalhei", diz para os homens que lhe cercam feito hienas. Rita detesta a ideia de uma vida formatada, cheia de regras e de coletes de forças. "Na verdade até trabalho, mas para dar prazer aos que me permitem viver folgadamente. Não pertenço à homem algum. Eu sou da noite", afirma.
Não só é da noite como é uma mulher sobre quem se pode dizer, sem faltar à verdade, que ganha mais do que três deputados juntos. Conhece, como ninguém, a fraqueza masculina. "Todos querem uma mulher com cérebro para salvaguardar o futuro da descendência, mas nenhum abdica de uns seios hirtos e uma bunda empinada quando o sol se esconde. É aí que eu saio para ser 'caçada'", diz ironicamente porque, na verdade, quem caça é ela.
Cerca de 120 milhões de raparigas em todo o mundo - mais de uma em cada dez - sofreram violência sexual ao longo da sua vida, segundo dados da UNICEF. Em Moçambique, quatro de cada dez mulheres já foi vítima de violência sexual desde os 15 anos; seis em cada 20 revelou já ter sido violada. A nível mundial, uma de cada 14 já sofreu algum tipo de agressão sexual - abusos com e sem penetração, por exemplo - por parte de alguém que não é seu parceiro, como aponta um estudo da OMS, o maior informe global feito até agora.
Um fogão de três pernas. Um lençol encardido no quarto. Uma capulana no assento de uma cadeira plástica. Um prato com sobras de arroz e um cabeça de carapau 17. Duas revistas pornográficas. Quatro vibradores. Uma candeeiro de petróleo e duas velas. Um espelho com a marca de um beijo roxo. Uma fotografia da filha querida que ficou na província. Cartas da mãe de Teresa que ficou a cuidar da criança de Beatriz em Anchilo. O solo negro de restos de cinza. A porta aberta para que os clientes não tenham de bater. O corpo inerte de Beatriz. Os vestígios do que sobrou da menina que veio para cidade grande para ser "gente" e acabou se prostituindo para ter o que comer. Uma entre milhares de estudantes que se entregam à vida nocturna da baixa de Maputo.
Beatriz* era uma jovem vulnerável de 21 anos. Vivia só numa casa de caniço à beira da portagem que separa Maputo da Matola. Foi assassinada de madrugada sem a mínima possibilidade de se defender. Beatriz não era conhecida pelos vizinhos: de dia entregava-se aos livros e de noite à profissão mais antiga do mundo. Era uma vizinha anónima. Invisível. Quase um fantasma.
Morreu por uma paragem cardíaca. Assim revelam os resultados da autópsia, que se conheceram 15 dias depois que foi encontrada sem vida. A autópsia conclui que a rapariga sofreu uma paragem por conta da perfuração de um objecto pontiagudo no ventrículo esquerdo. "Com toda probabilidades, sofreu tonturas por falta de oxigénio", lê-se no documento que foi entregue, na impossibilidade da mãe fazer-se presente, aos colegas da faculdade.
A vida da jovem era feita literalmente entre quatro paredes. Golpeada pela precariedade, vivia alheia ao dinamismo das ruas normais de Maputo, a maior cidade do país.
A polícia afasta qualquer hipótese de investigar a situação. Em voz baixa dizem que Beatriz teve o que mereceu e que a sua condição de prostituta retira-lhe o direito de ser cidadã.
Viveu anónima e morreu anónima. Numa vala comum e sem cumprir a promessa de dar o que não teve a pequena Júlia. A filha que teve com Manuel.