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quinta-feira, 13 fevereiro 2025 10:24

O mito da mudança

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Não fiquei impressionado quando Sive foi nomeado Comandante Geral da PRM. Não porque duvide da sua capacidade, mas porque já vi este filme antes. Celebramos a queda de Bernardino Rafael como celebramos a de Khalau no passado. Como se mudar um nome fosse suficiente para mudar um sistema. Como se uma nova assinatura num documentos resolvesse problemas que levam décadas para se entranhar no tecido de uma instituição.

 

Este é um erro recorrente em Moçambique: acreditamos que mudanças individuais trazem transformações estruturais. Mas a história nos ensina o contrário. As estruturas não apenas resistem às pessoas, elas as moldam, as limitam e, frequentemente, as fazem fracassar. Trocar um comandante sem reformar o sistema é como pintar uma casa condenada e esperar que ela não desabe.

 

Sive já foi baptizado com alguns raptos. Figuras da oposição continuam a ser assassinadas. Ele não criou essa realidade. Ele herdou uma polícia que normalizou os raptos e uma estrutura de segurança moldada pela repressão. Mas a pergunta essencial não é apenas o que Sive pretende fazer, mas com que instrumentos ele vai trabalhar.

 

Com as mesmas enxadas de cabo curto?

 

Não se pode esperar uma polícia diferente a operar com os mesmos métodos, os mesmos incentivos e a mesma cultura institucional. Não vamos colher 100 toneladas de milho num determinado número de hectares se a única ferramenta disponível for uma enxada de cabo curto. É humanamente impossível. Da mesma forma, não se pode exigir que a polícia proteja os cidadãos se a sua estrutura de trabalho continuar a ser a mesma de sempre.

 

Para entender como chegamos aqui, basta olhar para a polícia do dia-a-dia, a que se encontra nas esquadras e nas ruas.

 

Tenho um amigo que aluga carros. Um dia, um cliente seu penhorou uma das suas viaturas para um jovem como garantia de uma dívida. Como não conseguiu pagar, decidiu entregar o carro à polícia. E o mais impressionante? A polícia aceitou o carro como “penhor” sem questionar a propriedade do veículo. Nenhum agente pediu provas de que o carro pertencia àquele jovem.

 

Quando o verdadeiro dono apareceu com os documentos que provavam que o carro era dele, começou o verdadeiro pesadelo. A polícia, ao invés de simplesmente verificar a matrícula nos serviços de registo automóvel, disse-lhe que levariam muito tempo para confirmar a propriedade. Como se houvesse mistério num simples cruzamento de dados. Enquanto o processo se arrastava, o carro ficou no parque da esquadra. E quando finalmente foi liberado, pasme-se: faltavam peças e itens do interior tinham sido roubados.

 

Outro caso: um jovem estava sentado dentro de um carro estacionado. Dois polícias aproximaram-se e, sem motivo, levaram-no à esquadra, alegando que estava a conduzir sem carta. Para ser solto, ele precisou de ajuda externa. O verdadeiro motivo da detenção? Queriam dinheiro.

 

A polícia moçambicana há anos que opera assim: extorquindo o cidadão das mais variadas formas. Esse processo não começou hoje. É um hábito institucionalizado, refinado ao longo do tempo, tornando-se parte da engrenagem que sustenta a corporação. Hoje em dia a polícia já não recupera telefones roubados. Aliás, recupera-os, mas para si e no processo aproveita-se para extorquir os legítimos proprietários.

 

Diante dessa realidade, o que acontece quando apenas mudamos o comandante? Ele se adapta ao sistema ou é esmagado por ele.

 

A polícia serve para proteger ou para reprimir?

 

O que acontece na polícia moçambicana é um reflexo do país. O comandante muda, mas a lógica permanece. O uso desproporcional da força para reprimir manifestações não começou com Bernardino Rafael e não terminará com Sive. O problema não é a pessoa no comando, é o modelo policial baseado na coerção.

 

No modelo actual, um polícia sai de casa e, ao invés de pensar em proteger a comunidade, sabe que terá de arranjar formas de “ganhar algo” no dia. Não porque quer ser corrupto, mas porque o próprio sistema incentiva esse comportamento. Como esperar que um agente da polícia actue diferente se o seu treinamento, os seus superiores e as suas condições de trabalho o empurram para esse caminho?

 

E mais: como se espera que a polícia actue sem violência se as únicas ferramentas disponíveis são armas de guerra? É como mandar um dentista extrair um dente, mas só lhe dar chaves de fenda e martelos. O resultado não será um tratamento, mas uma amputação.

 

A polícia moçambicana não investe no policiamento comunitário, em treinamento adequado, em técnicas de desescalada de conflitos. E sem essas mudanças, a substituição de comandantes será apenas um ritual burocrático.

 

Então, antes que qualquer comandante fale em combater o crime, há três questões que ele precisa responder:

 

  1. A polícia está preparada para deixar de ser um instrumento de repressão política?
  2. Há garantias reais para uma reforma estrutural da polícia?
  3. A lógica do “inimigo interno” continuará a definir a segurança pública?

 

Se Sive não puder responder a essas perguntas, então seu discurso de tomada de posse —falando sobre restaurar a confiança da população, garantir a ordem pública e combater os raptos — será apenas palavras ao vento.

 

Porque se a estrutura não muda, o ciclo continua: comandante novo, métodos antigos, mesma brutalidade, mesmo fracasso.

 

A cada nomeação, surge um optimismo artificial: “Desta vez será diferente!” Mas quantas vezes já ouvimos isso? Quantas vezes já nos iludimos com a troca de rostos, enquanto os mecanismos de repressão seguem intactos?

 

O problema nunca foi Khalau. Nunca foi Bernardino Rafael. O problema não será Sive. O problema é o sistema que os cria e os torna irrelevantes.

 

A confiança da população na polícia não virá de discursos ou de novos nomes no comando. Ela será o reflexo de mudanças estruturais reais. Enquanto essas mudanças não acontecerem, continuaremos a ver o mesmo filme.

 

A única dúvida que resta é: até quando vamos confundir mudança de rostos com mudança de rumos? Para terminar, se Sive tiver respostas para aquelas três questões acima talvez podemos falar de alguma réstia de luz no fundo do túnel, mas se a ideia central do seu trabalho for atacar os sintomas então será mais do mesmo.

 

* Jornalista e Director Executivo na empresa Mídia Lab

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