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segunda-feira, 28 setembro 2020 06:50

Os cães do acampamento

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Se há uma coisa que eu presto muita atenção quando chego num estaleiro de obra são os cães que andam por ali. Normalmente, são cães vadios que abundam as lixeiras da estalagem. São cães que engordam sorvendo do bom e do melhor que a lixeira pode dar. É regra: onde há obra em construção há acampamento, onde há acampamento há gente, onde há gente há comida, onde há comida há resto, onde há resto há lixeira e onde há lixeira há cão... cães, na verdade.
 
 
Entre os cães que abundam às lixeiras dos acampamentos há os que lhes cai a sorte de serem adotados por um dos operários e passa a viver lá dentro. É lhe atribuído um nome qualquer e vive lá dentro a comer lixo de luxo. Passa a comer lixo de primeira antes de ser deitado na lixeira pública. E digo-vos: esse tipo de cão é muito bravo. É muito mau. Quer morder todos que por ali passam. Quer mostrar serviço. Quer mostrar que a sua adopção foi uma ideia bastante acertada. Ladra muito, e quando não há motivo para ladrar, inventa. Quando não há inimigos, os cria. Morde de qualquer maneira. Vira o expoente máximo do excesso de zelo. Um cão muito perigoso. Raiva é com ele.
 
 
Mas a parte mais triste do filme do cão do acampamento é o seu futuro. É um futuro mais infeliz que o seu passado de vira-lata. Tem um fim triste e ele sabe disso. Ele sabe que a sua vida de cachorro chique tem dias contados, acaba com o fim da obra. O seu cronômetro é o decurso da obra. O seu calendário está escrito em letras garrafais 'prazo da obra' e pendurado na entrada do estaleiro. 
 
 
A verdade é que ninguém leva um cão do acampamento para casa ou para outro acampamento. Cada acampamento com os seus cães, assim como - só por simples analogia - cada governo com os seus puxa-sacos, se é que me faço entender. A um cão que se voluntariou para ser cão ninguém quer dar comida do seu bolso. No acampamento a comida é da empresa e no governo é do Estado. Por isso, com dinheiro alheio, qualquer um pode criar um 'dogui'. Não dói. 
 
 
Quando a obra termina e o estaleiro pré-moldado é removido, o cão volta à sua vida verdadeiramente de cão. E como as oportunidades não se avizinham, o cão 'fazido' vai morrer sem comer mais lixo de luxo de um acampamento de obra. Nunca mais. O mais triste é o fim daqueles cães das grandes empreitadas onde os estaleiros passam de um empreiteiro para o outro. As vezes os próximos inquilinos são predadores.
 
 
Quando eu trabalhava em Tete, houve um caso terrível. Estávamos a construir a primeira fase da mina de carvão da multinacional brasileira. Havia um estaleiro duma empresa sul-africana cuja lixeira era o maior restaurante canino da obra e que mais tarde passou para uma empresa filipina, e os cães viraram iguarias, sumiram. Foram saborosamente comidos. É assim mesmo: há inquilinos que comem cães dos inquilinos anteriores, assim como - mais uma vez só para exemplificar - há governos que matrecam lambe-botas dos governos anteriores sem dó nem piedade. Ser cão do acampamento não é brinquedo. Pois é, é caso para dizer 'se a obra anda, os cães não entram de férias'.
 
 
- Co'licença!

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