Circula nas redes sociais uma carta supostamente da autoria do deputado da bancada parlamentar do partido FRELIMO, Edmundo Galiza Matos Júnior, falando do diploma de honra atribuído pela FRELIMO ao pseudo-profeta Joe Williams. Na suposta missiva o deputado Galiza escreve ao Secretário-Geral da FRELIMO, Roque Santeiro... digo Silva, um "Pedido de revogação de diploma ao Sr. Joe Williams" porque "o cidadão em causa, Joe Williams, não gozar de uma postura pública que se funde nos ideias do Partido de que somos membros (...)". Os argumentos do deputado Galiza Matos Júnior alicerçam-se nos Estatutos do partido.
A indignação do deputado Galiza é legítima. Todos nós estamos indignados com este reconhecimento do cinquentenário a este eclesiástico "swegga". Mas, se, de facto, a carta que circula nas redes sociais é do punho do digníssimo deputado, então estamos perante um populismo de proporções titânicas.
UM: em primeiro lugar, o deputado Galiza devia se indignar com o seu próprio partido FRELIMO por ter aceite o apoio de um cidadão com uma postura pública indecente. Isso é o mais importante. O digníssimo deputado não deve ficar enfurecido pelo diploma de honra. Um diploma é um reconhecimento. E se houve reconhecimento é porque houve um préstimo, um favor. E, quanto a mim, é o favor que devia estar em causa. É que, se o partido FRELIMO não tivesse aceite os préstimos do pouco-posturado-profeta, não haveria motivos para diplomas de honra. Então, o problema não está no diploma em si, mas - sim - na falta de pudor do partido FRELIMO.
Pela lógica, o deputado Galiza devia repudiar os apoios que o seu partido tem estado a receber.
DOIS: o que é pior: Manuel Chang ou Joe Williams; as dívidas ocultas ou o diploma de honra? É que não vimos a mesma indignação aquando da descoberta das dívidas ocultas. Não vimos nem ouvimos a indignação do deputado Edmundo Galiza Matos Júnior enquanto membro e porta-voz da bancada parlamentar da FRELIMO na Assembleia da República. Não vimos! Muito pelo contrário, assistimos a argumentos de defesa acérrimos às dívidas e ao seu camarada deputado Manuel Chang.
É muito populismo barato. É muita indignação por conveniência. O deputado e porta-voz Galiza apoiou a aprovação da inclusão das dívidas ocultas no Orçamento do Estado feita apenas pela sua bancada. Tem estado a assistir as demarches de apoio e resgate do "Chopstick" feita pelo seu partido. Tem estado a aplaudir os insultos protagonizados pelos seus pares.
Então, digníssimo camarada deputado, conta outra! Eu não caiu nessa! O seu partido aceitou a oferta do Joe Williams durante a campanha. O seu partido reconheceu os préstimos do Joe Williams durante a campanha. Se é para nos indignarmos, comecemos então do princípio. Comecemos pelas dívidas e pelo "Chopstick". Fora isso, é puro populismo mascarado. Só que nós estamos atentos. Nos conhecemos quem é quem.
Se a carta e a conta do "feici" não forem suas (e espero que não sejam mesmo), peço, antecipadamente, as minhas sinceras desculpas.
- Co'licença!
Não sei vocês, mas eu "pessoalmente" estou a gostar dessa nova revisão do Código Penal promulgada pelo Presidente da República esta semana. Acho que vai dar alguma adrenalina nessa cena de publicar imagens ou informações escondidas. Para falar a verdade, gravar ou publicar informação oculta não tinha piada. Faltava um Código Penal para dar uma apimentadinha. Faltava uma lei para aferir se o conteúdo publicado doeu ou não.
Nos nossos tempos de moleque roubavamos mangas, laranjas, goiabas, bananas e cana-doces de vizinhos. Os cotas ficavam "putos da vida" connosco e nós gramavamos maningue. E íamos roubar frutas daqueles cotas mais nervosos e temidos do bairro. Se tivesse cães maus em casa, melhor ainda. Era mais apetitoso. Ser mau e guarnecido era um bom chamariz. Era convidativo. Não havia nada mais relaxante do que ouvir a vizinha a insultar todo o bairro por causa de goiabas que você comeu sozinho a noite. Possas! A vizinha a disparar para tudo quanto é canto e você ali a ouvir numa "relex".
Vocês não fazem ideia de quão excitado estava o camarada que gravou o audio "eu não conheço o Nhangumele" na sessão do Comité Central. O néctar daquele audio é saber que foi feito e publicado à revelia. É saber que, se Guebas encontrasse o gajo, iria lhe dar umas boas sovas. Ou seja, se aquele audio tivesse sido gravado e publicado pelos canais oficiais do partido, não teria tido a piada que teve.
Confesso que estou muito excitado com essa tal promulgação. Esse tipo de coisas são "naicis". É como bolar uma "beibi": quanto mais difícil, melhor. A gente morre aí mesmo. A "drena" é outra. Se tiver irmãos que "djimam", é outra pontuação. Se o pai for polícia ou militar, yuuu "não-vala-pena".
O proibido é apetitoso. Nessa cena de áudios, vídeos, textos e afins só faltava mesmo uma lei que atrapalha para a coisa ter mais sal. Há uns anos inventaram uma lei de audiovisual e cinema que diziam que iria combater à pirataria. Hoje, feitas as contas, os estúdios do gueto aumentaram drasticamente. Aliás, hoje até vende-se disco pirata na esquadra.
Agora vai ter alguma piada gravar alguém escondido. Ter o prazer de ver um gajo a procurar advogados, com papelada do tribunal para cima e para baixo, tentado processar o gajo que lhe vazou o audio e você ali numa "relex" a palitar um atum imginario. Vai valer a pena o esforço. Não vou esconder, eu gosto de adrenalina.
- Co'licença!
Moçambique está eufórico pela vitória do Clube Ferroviário de Maputo à Taça de Clubes Campeões africanos de basquetebol em seniores femininos. Moçambique está em festa. Estamos em festa sem distinção de clube, raça, religião, gênero, altura, etnia, tamanho do pé, cabelo, escolaridade, etecetera. O Ferroviário uniu-nos. Hoje somos um só Moçambique. Somos todos moçambicanos.
Este Moçambique é nosso, e todos nós o queremos bem. Isto a propósito daqueles que acham que quando se exige que o bom nome de Moçambique seja cada vez mais lapidado e promovido é sinónimo de rebeldia. Aqueles compatriotas que pensam que o nome de Moçambique pode ser chamuscado, vulgarizado e qualquerizado sob o olhar impávido e sereno do seu povo. Aqueles concidadãos que pensam que a má fama de Moçambique além fronteiras deve nos agradar. Aqueles moçambicanos que não se indignam com a calhordice, com a canalhice, com a infâmia, com a humilhação, com a baixeza, com a mesquinhez, com a sordidez, com a sacanagem.
Este Moçambique é nosso. Não estamos contra Moçambique nem contra os moçambicanos. Não somos inimigos da nossa própria pátria. Não conspiramos contra nós próprios. A nossa luta pela transparência e pela justiça social é por patriotismo. Não somos apóstolos da desgraça, mas também não queremos celebrar desgraça. Não queremos puxar saco de ninguém.
Quando exigimos que os Mambas vençam, não estamos contra a Federação Moçambicana de Futebol nem contra os dirigentes. Não estamos contra a ministra nem contra o seleciona-a-dor. Queremos apenas que a nossa seleção nos dignifique. Queremos estar entre os bem-falados. Queremos estar no pódio também. Tudo ao nosso nível, sem sonhar alto, sem marcar um passo maior que a perna. Queremos sonhar um sonho sonhável.
Quando exigimos justiça sobre as dívidas ocultas, não estamos contra o Presidente da República, nem contra a Procuradoria-Geral da República. Quando exigimos que os gatunos sejam exemplarmente punidos, não estamos com inveja de quem-quer-que-seja. Antes desses gajos serem gatunos a vida deles nunca foi do nosso interesse. Nem os conhecíamos. Nunca estiveram na nossa agenda.
Quando exigimos que Moçambique esteja melhor posicionado nos índices internacionais, é porque gostamos deste país. É porque queremos o melhor para nós. É porque queremos sair da cauda de tudo quanto é tabela classificativa. Não queremos a fama de um país "nhangumelizado". Não queremos ser conhecidos como o país que luta para resgatar "Chopsticks" da vida. Se tivermos que lutar contra a África do Sul ou contra os Estados Unidos que não seja por causa de um ladrão.
Este país é nosso. É verdade que temos as nossas diferenças, mas quando Moçambique está no pódio unimo-nos, porque é esse o nosso desejo como povo. E é isso que cria (digo, devia criar) o belo em nós. É assim que uma dúzia de cores fazem o arco íris. É assim que as cinco cores fazem a nossa bandeira.
É assim que o Clube Ferroviário de Maputo faz connosco. Hoje o Ferroviário é o clube de todos nós. E é isso que queremos. Este Moçambique é nosso... muito nosso. Se nós não lutarmos por ele, ninguém o fará por nós. É por amor. Não estamos contra ninguém. Queremos apenas arrumar a casa e nesse processo as vezes temos de sacudir a poeira. E como diz o pai de Boustani, há muita poeira.
Parabéns ao Clube Ferroviário de Maputo pela vitória. Meninas, não é apenas a vossa vitória que nos orgulha, é, acima de tudo, a vossa luta, a vossa persistência e a vossa abnegação em levar o nome de Moçambique ao topo. O que nos orgulha é a vossa negação à qualquerização. É a vossa briga pela NOSSA honra que nos enche de amor-próprio.
Obrigado por nos fazerem uma nação! Num momento conturbado como este a UNIÃO faz-nos muita falta.
- Co'licença!
A primeira coisa que fiz, ao entrar no pequeno autocarro que vai-nos levar a Massinga, foi olhar para o condutor no sentido de tentar avaliar a sua compostura global. Estou sentado no banco da frente, lado a lado com o dito cujo, do qual ainda não tirei nenhuma ilação. Ele tem a cadeira reclinada, com os dois braços a servirem de almofada, mas logo que se apercebeu da minha presença, mudou de posição. Endireitou o encosto, levando de seguida as mãos ao voltante de uma viatura que está inerte, à espera de completar a lotação.
Virou-se para mim e saudou-me cordialmente, transmitindo a imagem de uma pessoa educada. É um velhote que já deve ter passado, de algum modo, a fasquia dos sessenta, porém nota-se ainda nele, a robustez física de alguém com capacidade para enfrentar o asfalto e seus perigos. Mas essa é apenas a minha impressão, aliás, ainda nem sequer estamos em movimento, para aferir se tudo aquilo que sinto deste personagem, vai entrar em consonância com a realidade, quando estivermos por sobre as pedras do caminho.
Estamos na Terminal da Maxixe, um lugar de bulício como toda esta urbe em alucinante crescimento. Lá fora não faltam os vendedores ambulantes que não páram de bater à nossa janela propondo-nos qualquer coisa para comprar. A canção dos cobradores, vulgo “mangueme” em bitonga, não tem pausa enquanto as pequenas viaturas não estiverem lotadas. É uma linda canção cantada por várias vozes joviais, que estão ali na luta pela vida: Massingaaaaa! Vilankulooooooo! Inhassoroooooo! Chicuqueeeeee! Morrumbeneeeeee! E a imagem dos veículos perfilados, também é bela. Parece a arrumação dos versos que vão compor uma quadra para Rosa Chicuachula, de Amin Nordin.
Já estamos a partir, como uma aeronave que rola lentamente até ao fim da pista, para de lá convocar a força máxima dos motores. Dentro do carro há um silêncio, e se esta manifestação não se chama silêncio, então é um agradável sussurro. Parece o murmúrio do próprio mar que se estende aqui à nossa frente, com a cidade de Inhambane do outro lado. Isto é uma levitação.
O condutor apela-me ao aperto do cinto de segurança, e já livre do frenesim, próprio das cidades moçambicanas onde todos vendem e todos querem comprar, eis que liga o aparelho de música, que não vai, mesmo assim, perturbar o silêncio que reina aqui dentro. É Gimo Remane que canta para uma plateia em movimento, levada por um velhote sereno, como tudo o que está a sua volta. A música de Gimo não abalroa, quanto mais não fosse, ela sai de um volume quase imperceptível, como as próprias vozes dos utentes deste pequeno autocarro que desliza suave. Ou seja, há três silêncios audíveis neste interior, o do motor do carro, dos passageiros, e de Samukhela, a música desse makhuwa que nos embala.
Naquele ambiente as palavras serão supérfluas. Para quê as palavras, se elas estão completas nesta música! Para quê as palavras, se o silêncio já nos chega, como o próprio amor, que não se faz com palavras, mas com o silêncio e o doce gemido! O resto foi uma viagem leve, que terminou com a nossa chegada ao lugar mais efervescente da província de Inhambane, ouvindo Sibongile Khumalo, no seu retumbante Mountain shade.
O Estado moçambicano terceirizou a defesa do território nacional aos mercenários russos do Grupo Wagner. Podia ter sido aos americanos da Blackwater ou aos sul-africanos da Hawks, mas o governo quedou-se no Grupo Wagner.
Por que o Grupo Wagner? Apenas podemos especular a razão. Há alguns candidatos mas os favoritos de muitos são o preço; a ligação histórica militar entre Moçambique e Rússia; e a necessidade de se ter um actor militar não vindo de um país Ocidental.
Analistas apontam ao facto de que geralmente os russos cobram entre $360.000 a $940.000 por mês para 200 soldados de fortuna. Mas há que se considerar que o preço está mais próximo dos $360.000 porque há mais ex-militares rasos do que oficiais.
Do outro lado da escala, os Black Hawks cobram aos governos entre $750.000 a $1.250.000 por mês para 50 ex-soldados. Mesmo assim a factura deve se aproximar ao primeiro valor por conta do facto de que há mais soldados rasos que oficiais, que estão no topo da escala.
Um outro factor sobre o que poderá ter pesado para que Moçambique se decidisse sobre a escolha de mercenários russos é um passado histórico militar e económico comum no auge da Guerra Fria. Esse passado envolveu uma dívida militar à Rússia (então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) que rondou os $2.4 milhões em termos nominais. Essa dívida só foi parcialmente cancelada com a entrada da Rússia no Clube de Páris, no âmbito dos Países Pobres Altamente Endividados (HIPC).
O relacionamento entre Moçambique e Rússia ficou em banho-maria durante 32 anos até à visita do Presidente Filipe Nyusi à Moscovo, em Agosto, onde manteve conversações com o seu homólogo russo, Vladmir Putin. Provavelmente o impulsionador do reatamento do relacionamento é o facto de Nyusi ter se se licenciado em Engenharia Mecánica na antiga Checoslováquia.
Seguiu-se uma interacção entre os ministros dos negócios estrangeiros moçambicano e russo em 2018, em Maputo, que abriu caminho para uma maior cooperação na segurança e contra-terrorismo, bem como a assinatura de vários acordos de cooperação económica. E finalmente, Nyusi retornou à Rússia em finais de Agosto, tendo assinado uma série de acordos de energia e segurança – entretanto, poucos viram os textos desses acordos, sendo que, não se sabe o que cada parte deu a outra.
Mas possivelmente o que pode ter interessado mais a Moçambique foi evitar colocar todos os ovos na mesma cesta. É que os maiores actores nos projectos de petróleo e gás em Cabo Delgado são empresas ocidentais. E o país tem séries problemas em controlar a quantidade de recursos que saem para o exterior, dependendo dos números que recebe dos próprios investidores.
Sendo que, se quiser monitorar o que entra e sai, provavelmente faça mais sentido buscar ajuda de um antigo parceiro com interesses de também voltar a flexionar os seus músculos na arena internacional, em busca de um passado glorioso.
Um outro factor é o facto do país não ter ao momento dinheiro para fazer o pagamento de vários serviços, e muito menos ter mais espaço de manobra para solicitar empréstimos nos mercados financeiros, sabido é que a escandaleira do calote das dívidas ocultas dificulta a mobilização de recursos financeiros nos mercados financeiros internacionais, agravado ao facto de que os doadores têm condicionado as suas contribuições ao Orçamento do Estado. Sendo que, fazer um negócio em troca de futuros rendimentos ou exploração de recursos minerais ou energéticos parece ser mais apetecível a curto e médio prazos.
Todavia, independentemente do tipo de negócio que Moçambique fez com a Rússia, terceirizar a guerra contra os insurgentes custa uma pipa de massa. Daí que, se perguntar não ofende, quanto é que custa a nossa factura de segurança?
Mais: como é que vamos pagá-la? Se por via dos recursos, que recursos são esses? Petróleo? Gás? Diamantes? Pedras preciosas? Camarão? Atum? E quais são os termos de pagamento? Que implicações terá isso no nosso peso da dívida? Quando é que isso reflictir-se-á no Orçamento do Estado? Ou será que vai ser também uma dívida oculta?
Escrevi esta crónica em dezembro de 2018. Mês em que o filme RESGATE fez a sua correção de cor, em Lisboa. Sete meses antes de estrear. Vimos o filme nos estúdios da Tobis, no Lumiar, para quem entende de cinema percebe a simbologia deste momento. O que escrevi não pode continuar na gaveta.
Teria sido um ótimo spoiler. É o melhor que Moçambique levou ao Mundo em 2019. Podem acreditar. Já esteve em cinemas comerciais em Portugal, bateu o Rei Leão e foi presença assídua em festivais na Europa e em África. Agora lança o seu CD e streaming.
Uma produção independente e a força de querer, de um grupo de pessoas que não desiste de sonhar, num país em que os velhos insistem em não nos deixar assumir um lugar merecido, suado e especializado, e quem vem de fora só quer sugar. O RESGATE já bazou!
“Assim que entra a banda sonora dá um arrepio. Vêm memórias. Vem o presente. Vêm os dias quentes do nosso grande Maputo e a esperança que acompanha "Bruno" a caminho de casa. Ao sair da penitenciária ele quer resgatar a sua família e ser feliz.
Esta podia ser a crónica de um filme normal e de uma realidade perfeita que queremos ver retratada nas telas de cinema.
Histórias de amor e finais felizes. O RESGATE não é isso, é muito mais.
Tive a oportunidade de assistir a esta produção independente escrita por Mickey Fonseca e direção técnica de Pipas Forjaz.
É um ato de coragem de um grupo de pessoas que arriscou. Um filme pensado com os pés no chão e que conta a história da minha geração.
Uma geração que pertence a um dos países mais lindos do mundo que todos os dias se confunde com um ecossistema que nada tem a ver com a realidade do dia a dia de milhões de jovens que passam ao lado das "boas práticas" e da cooperação de Moçambique com o mundo.
Homens e mulheres que já são pais e são filhos de uma independência que os torna dependentes da necessidade. RESGATE vem confirmar que o cinema feito em Moçambique e por moçambicanos já não contempla apenas os passeios longos e bucólicos na marginal, nem a linguagem poética e pós-colonial que agrada a gregos e a troianos e atrai financiamento para contar histórias que já não nos pertencem.
Volto a reiterar que é o dia a dia, a vida das ruas de muitos homens com quem nos cruzamos no Estrela (mercado) quando vamos às compras ou recuperar uma peça do carro que de manhã já não acordou nele.
É a vida daquela moça que nos vende cabelo e cruza a cidade de norte a sul para garantir a sua subsistência e a dos seus. É uma história de amor, também, onde duas almas se cruzam, se amam e acreditam num futuro melhor.
Sol de pouca dura já que, como contava há pouco, assim que "Bruno" se vê em liberdade começam as tentações. O seu olhar terno esconde uma já vida anterior e assim que consegue chegar a Marracuene para reencontrar a sua mulher e a sua filha, tudo volta. Nesta ficção vive-se o minuto, mas não aquele minuto à espera que acabe e sim o viver do que vem a seguir.
Filmado no grande Maputo e contemplando as zonas de Boane, Marracuene e Matola, RESGATE não é um filme da town e sim o epicentro de onde tudo se passa. Não é nos prédios altos do cimento que se luta pela sobrevivência, que se arranjam gones e que se perdem vidas. É numa periferia em crescimento que se sente o pulsar desta geração.
No decorrer da trama acredito que Mickey tenha olhado para esta realidade e prestado a justa homenagem à Matola, esta cidade a oeste de Maputo. Cidade onde cresceu e que conhece com os olhos fechados e que serve de pano de fundo para expelir memórias adaptadas aos nossos dias. Aos cinemas que ia na infância.
Depois de matar saudades da sua família, “Bruno” decide mudar de vida. O que ele não percebe é que não basta querer e é preciso poder. Refém do seu passado e com problemas que lhe atrasam o futuro o Mulato ou "Mullas" como lhe chamam os bradas regressa ao mundo do crime.
Mesmo apesar de ter tentado procurar trabalho, a emergência de querer resoluções volta a arrastá-lo para aquilo que hoje em dia chamamos de DNA. O que ele acha que sabe fazer e se sente confortável. Crime. Aquela que podia ser a sua a mais fácil tarefa torna-se no seu maior problema.
RESGATE aborda de forma nua e crua uma situação que parece não ter fim na vida real. Os raptos. Talvez por isso o crowdfunding para o filme tenha sido mais efetivo do que ser apoiado por marcas que não se querem associar ao maior tabu do país, mas que leva famílias de norte a sul ao desespero e são desembolsadas milionárias quantias em prol da liberdade! Antagónico, não é?
"Bruno", o protagonista e ator de primeira viagem revela-se um especialista em atividades criminosas. Com o seu ar contrariado, doce e perdido acaba por se tornar a peça principal dos raptos, o que contrasta com o speed do seu amigo de infância que o resgata para o seu novo ou velho presente.
Presente envenenado, já que a quadrilha que acompanha acaba por cometer erros de amador. À medida que a história se vai desenrolando na terra vermelha transporto-me para qualquer outra cidade europeia. Podia ser Paris e os seus arredores ou os Banlieues onde as oportunidades também são escassas e rapidamente a pressa pode ser fatal.
É o que me agarra ao filme. Mickey Fonseca mostrou o seu país, mas saiu dele. Não almeja o perfil hollywoodesco, mas é filme para salas de cinema em todo o mundo. A abordagem contemporânea e o slang/calão utilizado é local, mas o problema é global. Toca na ferida de uma globalização que não acompanha mentalidades.
Os diálogos e os momentos de humor fazem-nos relaxar no meio da tensão e a nós, moçambicanos, faz-nos sentir em casa. Posso arriscar que todos, um dia, conhecemos ou tivemos contato com uma das personagens deste filme e que já nos questionámos o porquê da escolha desse caminho.
A banda sonora pode ajudar a dar respostas, uma vez que foi produzida a dedo. Podemos chamar-lhe homemade. Detalhes que tornam RESGATE ainda mais especial. Juntam-se os temas de Azagaia, o rapper que coloca o Povo no Poder, pois é do Povo que se fala.”