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Alexandre Chaúque

Alexandre Chaúque

terça-feira, 20 outubro 2020 06:26

Um buquê de flores à minha porta

Há uma semana que havia saído de casa, e como vivo sòzinho, a música dos pássaros vai ficar sem auditório. A diarista vinha, na escala combinada, e sentia falta de mim. Abria a porta do quintal e não tinha a quem dizer bom dia. Ela tem as chaves da casa. Conquistou a minha confiança e já não há limites, dentro dos limites que a boa convivência e respeito mútuo aconselham.

 

Chama-se Hambvu e gosto muito dela. Mesmo assim não sei como é que está aqui comigo este tempo todo. O meu carácter é irrecomendável. Fervo em pouca água e sou capaz de pegar no ouro que me deram com amor e atirá-lo na pocilga. Já fiz isso, aliás venho fazendo isso na minha vida inconsequente. É por isso que as pessoas aproximam-se de mim, e logo no dia seguinte vão-se embora. Decepcionadas.

 

Hambvu é ouro puro. Sinto medo dela, todos os dias, não sei porquê. Por vezes sou impelido a ajudar em qualquer coisa e ela diz assim, deixa, tio, eu vou fazer. É uma mulher transformada numa obra grandiosa de arte pela minha imaginação. Pelos meus sentimentos humanos. Não se toca num quadro belo pendurado na parede, e Hambvu é um quadro belo que se move na minha casa. Fazendo tudo para que eu me sinta bem.

 

Nunca fui pessoa apaixonada pela comida, mas a comida da Hambvu mudou o meu paladar. Ando limpo, com roupa bem lavada, e tudo isso deve-se a esta mulher delicada, que merece muito mais do que aquilo que lhe pago. Aliás, sempre que chega o fim do mês, sinto que é um insulto dar-lhe aquelas migalhas, mas não posso fazer mais porque eu também recebo migalhas, então divido as minhas migalhas com Hambvu.

 

No quinto dia após eu ter saído de casa ela ligou para mim e perguntou, tio quando é que volta? E eu repondi, no domingo.

 

Na verdade eu sentia saudade da minha casa. Da Hambvu. Queria voltar para onde o meu coração bate em liberdade. Onde nas noites, depois de acompanhar os noticiários, desligo tudo, e deixo o reflexo da luz da varanda gotejar no meu quarto. E será nesse momento que vou fazer o exame da minha consciência, e o resultado é que não fiz nada de extraordinário. Sou uma mbila desafinada.

 

Domingo é dia do meu aniversário, e eu vou comemorar sòzinho, sem champanhe e sem ninguém para me abraçar. Mas isso não importa, o que eu quero é voltar para casa, mesmo metido neste pequeno autocarro barulhento, com gente a beber e a ouvir música em volume alto, desrespeitando as recomendações sobre a Covid-19.

 

Cheguei à casa exausto, são vinte e trinta. E neste estado não quero mais nada a não ser um banho e uma soupa quente que Hambvu preparou e deixou na geleira. Mas antes de abrir a porta,  vejo um buquê de flores no chão. Fiquei assustado. Peguei no presente e reparei que não havia nenhuma mensagem a identificar a pessoa que me oferecia. Então o que me restava era guardar a surpresa esperar.

 

À noite, enquanto dormia, pensava em quem podia ser a pessoa que me trouxe as flores, mas não encontro a resposta até hoje, e já passam seis meses. A mulher mais recente que me visitava com alguma regularidade, morreu há dois anos, e de lá para cá nunca tive ninguém. Perguntei a Hambvu se tinha chegado alguém durante a minha ausência e ela respondeu assim, mas tio, aqui eu nunca vi nenhuma mulher, nem pegadas. Afinal o que é que se passa, tio?

quarta-feira, 07 outubro 2020 06:15

Mathxinguiribwa *

O aeroporto de Maputo tremeu, não porque aterrava uma gigantesca aeronave, mas porque Timbila ta Mhono ia voar, como as águias que dominam as montanhas de pedra. Na capital inglesa, onde tudo vai começar, as televisões vão dando sem se cansar, excertos das actuações dos moçambicanos, para publicitação daqueles que irão actuar no Estádio de Wembley. Não há nenhum jornal que não insere publicidade da já considerada a maior orquestra de timbila de todos os tempos. Os melhores jornalistas ressurgem, soberbos, com reportagens espectaculares antes de chegarem as “águias”. Muitos desses jornalistas que agora retomam os apontamentos, estiveram no estádio da Machava, na despedida, e descrevem tudo aquilo sem, no entanto, conseguirem dizer tudo, porque, segundo eles próprios, o Timbila ta Mhono é infinito. As rádios abrem as suas emissões com o som da timbila e deixam essa secular melodia devastar os corações dos ouvintes por horas sem fim, muitos ingleses e outros europeus que estão em Londres, são entrevistados para dizer qualquer coisa sobre este vulcão que se anuncia, e a única coisa que eles conseguem dizer é, isto é simplesmente incrível, é imperdível.

 

Falta um dia para a abertura das comportas e tornar o Wembley numa albufeira sagrada dos chopi, para onde os europeus serão chamados a mergulhar e de lá sairem purificados, Wembley vai se transformar, com a chegada do Timbila ta Mhono, em lago Betsaida, onde o anjo Gabriel chegou e agitou a água para que todos mergulhassem e se puruficassem, e esse anjo Gabriel é, na linguagem dos jornalistas mais afoitos e mais criativos, que faziam estas comparações todas nas suas reportagens, Mathxinguiribwa, que não vai carregar a banda às costas, mas vai à frente dela, como Jesus Cristo ia à frente dos seus discípulos. Estas parábolas citadas nos jornais, aumentam a ansiedade, e os locutores chamam à atenção dos seus compatriotas para controlarem as emoções e reprimirem a ansiedade porque, como repetiam, a ansiedade mata.

 

Em Londres os hoteis estão abarrotados de gente que foi de diversos cantos da terra de Sua Majestade para testemunhar aquilo que é apelidado, por aqui, de meteorito sagrado, eles também querem ser fustigados, querem ver de perto esse mito vivo. A Polícia e o exército e a Polícia secreta, foram mobilizados para controlar a situação, e já fazem isso há um mês, mas nesta noite que antecede ao espectáculo, a vigilância redobra-se, em todas as ruas há agentes da autoridade trabalhando discretamente, também notam-se agentes da cavalaria movendo ora a passo, ora a trote, os seus pujantes cavalos, sem entretanto incomodarem as pessoas. À volta do estádio há várias lareiras com labaredas vivas, circundadas por jovens que cantam e dançam e bebem e comem carne assada em espetos, à espera que amanheça e concrectizem o sonho anunciado, e nesta alegria inefável, há um jovem que manda calar à todos para recordar o velho ditado, não é por muito madrugares que o sol vai nascer mais depressa. Mas esse raciocínio dos sábios não é relevante neste momento, dizia outro, para nós já amanheceu desde que estamos aqui. E a festa de antecâmara continua com muito sangue jovem, que ferve nas veias. Com verve.

 

É primavera, e as folhas caiem e espalham-se nas ruas e nas avenidas, folhas estas que não podem ir ao estádio ver  o Timbila ta Mhono, porque dali, do chão, serão retriradas para o lixo, ou para servirem de adubo, o Big Ben aumenta a ansiedade dos corações em cada badalada, que ecoa para toda a cidade e soa directamente para os microfones de todas as estações de rádio ingleses, que não páram de anunciar o grande show.

 

Já amanheceu, os portões estão abertos, e as pessoas começam a entrar mesmo sabendo que ainda faltam muitas horas para iniciar o grande espectáculo que será sem dúvida, memorável, porque esta orquestra que vem de Moçambique, foi criada para estar permanentemente no cume, e aquilo que está no cume, a sua vocação é manter a luz acesa para todos os que estão no sopé. E perante Timbila ta Mhono todos sentem-se no sopé. E precisam dessa luz africana personificada em Mathxinguiribwa. Para iluminar a alma.

  •  Excerto do romance de Alexandre Chaúque, a ser lançado no próximo dia 16 de Outubro em Maputo
terça-feira, 29 setembro 2020 07:09

Este amor platónico dá-me cabo

Sempre que passo por aqui nas manhãs, em obediência a rotina das minhas caminhadas de manutenção física, ela está a varrer o quintal, mais ou menos às mesmas horas. A casa dela fica ao longo da “Rua branca”, que sai do Handling e termina no Posto Médico. É um troço pouco movimentado, sobretudo a esta hora em que as pessoas ainda se preparam para sair e enfrentar o desafio da vida. Mesmo assim, depois de virem cá fora, as coisas não vão alterar muito porque a cidade de Inhambane não tem muito para onde ir.

 

É uma mulher que pode estar entre os cinquenta e os sessenta, mas ainda vibra. Sinto isso na forma como me olha. Há qualquer coisa naquele coração, mas eu tenho medo de avançar para perceber de perto  o enigma. Se calhar é uma ilusão de óptica da minha parte. Provavelmente ela nem me vê como nada. E se na verdade me acha opaco, então está absolutamente protegida pela razão. Mas eu não deixo de alimentar a esperança que me habita desde o primeiro dia que os meus sentimentos mudaram de frequência, ao entrar em contacto com aquele ponto luminoso.

 

É ela que comanda a minha mente ao raiar do dia. Penso nela, logo salto da cama. O meu corpo inteiro entra em consonância consigo mesmo, e mesmo antes de beber a minha mistura de beterrada e cenoura e banana para me energizar, estou apto. Estou insuflado do sonho de ver alguém que me arrebata competamente. Então o meu dia começa nas nuvens. Ou seja, tenho algo importante em que pensar, mesmo que essa sensação seja boba. O que importa é abrir o leito da imaginação e deixar o rio correr livremente. E o rio é a minha paixão.

 

Não conheço o nome dela, e eu nunca quis sabê-lo por via de terceiros. Isso pode esvaziar todo este enredo que vou construindo não propriamente de forma desinteressada, mas sem pressa, como o faço com os livros que escrevo na minha fascinante solidão. Posso esperar o tempo que for necessário, até porque estou preparado para perder algo que nunca ganhei. Algo que me atrai sem que eu saiba o que vai dentro daquela cintilação. O pior é ela um dia dar-me um beijo, e tornar-se, a partir daí, na minha futura ex-companheira. É esse o medo que tenho. O medo de magoar. De voltar a magoar uma mulher.

 

Ontem  passei novamente daquele espaço que se tornou especial na minha vida, ao ritmo da passada habitual e ela já estava ali, como sempre, desde o primeiro dia que a vi. Desta vez não está a varrer, e tudo leva a crer que vai sair, pois no lugar da capulana, veste uma saia florida que vai até um pouco abaixo dos joelhos, traja uma blusa amarela, e as duas peças entram em perfeita combinação. O cabelo grisalho com tranças finas e brincos de ouro e sapatinhos rasos de cabedal, dão-lhe o estatuto de celebridade. Ela é uma estrela.

 

Cheguei a pensar que ficou ali a minha espera, antes de seguir seu caminho, para que a visse naquelas vestes. Tentei fazer um esforço para não dizer nada, mas o brilho era demais. Muito forte por demais.  E eu falei assim para ela, a senhora é muito bonita! E ela respondeu-me assim, você também!

 

Fiz-lhe um thxau com a mão, e ela retribuiu-me estalando os lábios dela em forma de beijo. E agora!

segunda-feira, 14 setembro 2020 07:14

Assim no tempo de Luís Siquice

O dinheiro que ganhavam não era o mote. Nunca pensaram nessa mola de impulsão antes de, com os pés descalços, dominarem o esférico. Nem nas massas que viriam a encher os estádios. Eles nasceram com a bola nos pés, então urgia que descessem aos campos onde ressurgia a luz da glória. E eles nem sabiam do brilho que lhes esperava. Não podiam saber porque a força que lhes movia era maior. De modo que só lhes incumbia obedecer aos impulsos até se tornarem na força motriz das vitórias.

 

Luís Suquice fazia parte dessa panóplia que reverberava mesmo em dias infaustos. Eles eram o testemunho dos ditos intemporais de Deus, segundo os quais muitos serão chamados e poucos escolhidos. É por isso que o delírio do povo começava antes de o juiz da partida apitar para dar início ao turbilhão. Havia crença nesse tempo. Uma fé inabalável que lhes dava a força dos bisontes. Tudo o que faziam era vertiginoso, os passes, as defesas no último reduto, as estiradas dos guarda-redes e o engodo pela baliza.

 

Luís  Siquice não era o único, mas avultava entre os tigres. Era o algoz escolhido para matar em momentos cruciais, e o veneno aspergido nos pés ainda no ventre da mulher que lhe deu a luz, era inoculado sem piedade para o desespero dos guarda-redes. Luís era essa águia imparável, e a história nunca vai perdoar aqueles que não o deixaram planar até outros céus, onde iria exuberar no zénite. E agora só nos resta ovacionar com estrondo a alma da nossa estrela que se aparta de um corpo que nos últimos momentos da errância pela terra, parecia resignado.

 

Na verdade o cheiro de Luís Siquice anda impregnado por aí, no bairro do Chamanculo e no Xiphamanine onde se desumbilicou. É também nas adegas de thonthontho (aguardente caseira) que os bebedores inveterados, frustrados e destruídos, não observam um minuto de silêncio, mas desencadeiam memórias, contando histórias sem fim de um artilheiro de ouro, que passou toda a vida sem nada material nas mãos. Misturando-se com as massas para as quais se tinha tornado um pequeno deus. Mas não haverá palavras suficientes para exaltar o mortífero avançado. Porém ele não merece o silêncio, nem as lágrimas.

 

Escrevo este texto imaginando o caixão de Luís Siquice entrando pela porta da maratona do Estádio da Machava, carregado aos ombros dos colegas do seu tempo, e nas bancadas um público de pé, eufórico, ovacionando o craque que se despede para sempre.

 

Hamba kalhe (vai em paz)!

sexta-feira, 28 agosto 2020 07:27

Bebendo água numa taça de vinho

Os meus dois amigos bebem cerveja tranquilamente na esplanada do restaurante, um sentado numa mesa, outro noutra, mesmo assim partilham a mesma garrafa. De Txilar. Parecem desolados, cada um fazendo as contas a vida sem dirigir palavra ao companheiro que está no outro barco navegando num rio triste. Na verdade esta esplanada é um rio triste no sentido de que não emana alegria.  Eles são os únicos que estão alí, aliás, num dos cantos há mais um cliente degustando um peixe em silêncio, de costas para a rua vazia, contrariando os cowboys nos saloons.

 

Escrevi um poema na memória ao vê-los cada um ocupando a sua mesa, porém muito próximos um do outro, absortos nos telemóveis, completando assim o silêncio da cidade de Inhambane que daqui a pouco vai ficar entregue a outro silêncio, o do néon. Os últimos carros já passaram de recolha aos aposentos, e não vejo nenhum pedestre por aqui. Contudo, apesar deste mutismo, ainda consigo ouvir o derradeiro canto das tuta-negras penduradas nos cabos de electricidade. Outros nas copas das velhas acácias, despedindo-se do dia e agradecendo a Deus por terem saciado o bandulho sem precisarem de trabalhar.

 

Cheguei por volta das 16, convidado pelos dois “bradas” que dividem a Txilar, e o que me fascina a esta hora, é a total liberdade da urbe. É o silêncio. É a possibilidade de ouvir os batimentos compassados do coração. Também estou aqui em respeito a estes companheiros. É essa consideração aliás que levou-me a aceitar de pronto o chamamento, porque de outra forma não teria saído de casa, onde já me enclausurava mesmo antes da Covid-19. A pandemia quando chegou eu já era um prisioneiro do sossego que os meus aposentos me oferecem, ainda por cima um sossogo abrilhantado pela música diária dos pássaros.

 

Saudei aos dois, e as mesas estão de tal maneira dispostas que ao me sentar a uma delas, sou a ponte que os vai fortalecer a ligação. Se calhar sou a jangada. E antes que a conversa estalasse, um deles perguntou-me o quê que ia beber, e eu respondi, água! A água associa-me aos rios que venero, e aqui sou a ponte sobre o rio, ligando duas margens que se irmanam. Duas margens que bebem a mesma Txilar e comunicam-se por via do silêncio.

 

Estou com os meus amigos entregue ao vento das palavras. Livre como as gaivotas voando por sobre as marés vibrantes de verão.  Aliviado dos pensamentos. Bebendo água, não num copo, mas numa taça de vinho. O garçon trouxe uma garrafa de água e serviu numa taça de vinho sem que eu desse por isso, nem os meus companheiros, mas também não acho isso importante.  Água é água, num copo ou numa taça. Ou num rio. Mata sede na mesma. Mas há quem acha que as coisas devem ser colocadas nos seus devidos lugares, como este outro amigo que chega e exclama, estás a beber água numa taça de vinho!

quinta-feira, 20 agosto 2020 07:12

Rodália

Achei melhor que eu escrevesse em duas palavras a Rodália da minha imaginação. A própria não conheço, a não ser pela perfurante Wansati, música que pega na mulher por inteiro e transforma-a na ferramenta da vida. Ouvi pela primeira vez este tema numa madrugada e senti a alma toda da cantora envolvida naquilo que eu considero ser um trabalho de antologia. Por tudo. Pela letra, pela composição, e sobretudo pelo engajamento dela na interpretação. É como se todas as mulheres do chão estivessem amalgamadas no seu sentimento.

 

Da Rodália nunca ouvi nada antes, nem o nome. E ao aparecer no mostruário da arte desta forma, surpreendeu-me como uma dinamite que explode sem obedecer ao rastilho, é assustador. Mas não importa o que possa vir depois de Wansati, mesmo que não haja mais montanhas para subir. Ela está topo, aliás é alí, ao que parece, onde tudo começou. E agora só lhe resta cingir o lombo para lá se manter, ciente de todos os vendavais porque a partir de agora, será julgada em função dessa música profundamente comovente, cantada com toda a dor e esperança.

 

A Rodália da minha imaginação já percebeu com certeza que do topo onde se encontra, pode voltar a oscilação, e passar a viver entre os cumes e os sopés, mas ela não tem medo. Nem sequer pensa nisso porque há uma grande luz no seu horizonte, e é nessa luz que ela se concentra. Rodália é mulher de sete costados, preparada para remover as pedras todas do caminho, usando as suas próprias picaretas. É por isso que ficou chocada perante a oferta de uma casa provavelmente nunca sonhada.

 

Wansati é capaz que esteja a colocar a Rodália completamente nua, no sentido de que essa wansati é ela mesma.  Porque só nua é que podemos captar a guerreira que está por dentro, capaz de regressar a lama e recomeçar. Wansati simboliza a coragem de vestir outras roupas e criar novas searas, com obstinação e fé. Então é aí onde coloco a Rodália da minha imaginação, uma mulher tenaz que nasceu para cantar.

 

Comunicando numa mistura de português, inglês e provavelmente o xiswati ou zulu, não sei bem, Rodália descomplexa-se nas mesas de júri e veste a linguagem rústica nunca disfarçada. Ela parece ter medo de julgar, então prefere rejubilar quando os outros reverberam, sem no entanto esconder a vontade de saltar da cadeira e invadir o palco para viver  e deixar tudo por conta das emoções.

 

É esta a Rodália da minha imaginação. Se calhar igual a própria. Não sei!

quinta-feira, 13 agosto 2020 06:32

Inhambane minha cidade maltratada

O meu problema não é o governador Daniel Tchapo porque esse vai passar como passaram todos os outros que lhe antecederam. Estou preocupado com o palácio, uma obra de arte, um património tangível da cidade que pertence e orgulha a todos os manhambanas. É um foco de contemplação reservado igualmente aos turistas que vão passar por aqui. É por isso que na concepção desta obra, colocada numa duna estável no bairro de Balane, o arquitecto fez uma combinação perfeita, onde a baía será um complemento importante, demonstrando uma preocupação profunda em não ferir a natureza.

 

O palácio do governador de Inhambane era um edifício livre, soberbo em toda a dimensão, tornando assim impossível passar pela marginal sem observá-lo com paixão, sem ceder a sedução das suas linhas, aliás, a própria marginal ganhava outra aragem, era mais linda, agradecia por ter aquele complemento na sua paisagem, lembrando as palavras do poeta, “o belo atrai o belo”. Mas alguém apareceu e tirou-nos o direito de alimentarmos a alma ao passarmos por ali.  Mandou, sem meias medidas, erguer um muro de vendação. Um muro monstruoso que sufoca um lugar privilegiado. O palácio foi escondido.

 

Eu já havia vindo a terreiro sublevar-me contra esta barbaridade, ainda na fase de construção,  numa altura em que o governador de Inhambane (não o senhor Daniel Thchapo), criava cabritos no palácio, os quais eram amarrados na relva a vista de toda a gente. Falei até a exaustão mostrando a minha cotrariedade, porém ninguém me ouviu. E hoje está aí o muro que para além de ser desnecessário, descaracterizou a zona toda. Tiraram-nos uma atração que nos orgulhava.

 

A cidade de Inhambane não merece esta agressão, assim como não merece algumas obras que o Município está a desenvolver por aqui, com o edil Benedito Guimino na batuta. Há casos preocupantes de vias de acesso pavimentadas com qualidade muito duvidosa. Em vários troços dessas ruas recentemente inauguradas o pavet está a desfaze-se. Não há nivelamento em muitos lugares, e não precisamos de ser engenheiros para concluir que aquilo foi mal feito, e mesmo assim a empreitada foi entregue e recebida pela edilidade.

 

O presidente do Município tem facultado o número do seu celular aos interessados como forma de estar mais perto dos munícipes. Foi assim que, usando dessa prerrogativa, enviei mensagens ao ilustre Guimino para lhe chamar a atenção sobre um problema que está a agravar-se. Disse-lhe ainda que corre o risco de não se orgulhar de ter ficado dois mandatos (se não for indicado para o próximo) porque terá deixado obras destroçadas. Enviei várias sms com o meu nome assinado, alertando sobre a fraca qualidade dos trabalhos que estão sendo feitos, incluindo outros assuntos de interesse dos cidadãos, mas o senhor Benedito Guimino nunca me respondeu, embora conhecendo-me.

 

Não basta que o Presidente faça obras, é preciso que as faça bem, com garantia de qualidade, para que ao terminar o seu mandato, caminhe com orgulho pela cidade que terá ajudado a construir. Ganha ele e ganhamos todos nós. Aliás, no coração da cidade há gente que ergueu casas de pasto em jardins públicos, violando grosseiramente a postura camaráia, e o edil tem conhecimento disso. Então o nosso bom do Guimino tem que fazer qualquer coisa para remover aquilo e devolver nos a leveza na avenida, como estão fazendo, e muito bem, os seus homólogos de Maputo e Chimoio.

 

Muitos parabéns Inhambane, minha cidade maltratada, pelos 64 anos de existência !

quarta-feira, 05 agosto 2020 07:03

Jimaraida

Fomos colegas de escola entre 1965 e 1974, altura em que, movido pelos ventos que sopravam do norte, com Samora Machel na batuta rugindo no centro dos palanques, abandonei o ensino. Queria fazer parte dos cachos de jovens que vinham das matas gritando, Independência ou morte! Venceremos! Eu era um fedelho com apenas 17 anitos, mas já lia romances da coleção “seis balas”, e assistia a filmes classificados para maiores de 18 anos, onde aprendi a ter os meus próprios ídolos como Clint Eastwood, Sidney Poitier, Marlon Brando, entre outros, então senti que essa leitura que ia fazendo de forma profusa, impulsionava-me agora a seguir novos caminhos com uma arma a tiracolo.

 

Estou na fase da puberdade, e a minha frente já ressurgem rios que devo atravessar, com todos os riscos de ficar entalado em mandímbulas dos lagartos aquáticos mais ferozes da terra, sem a possibilidade de ser salvo pelos hipotéticos hipopótamos, que andam por ali, a ilharga do perigo e da morte. Mas esse terrível cenário que se aflora nos meus pensamentos não me demove, nem o amor da Jimaraida, que pode ser puxada para a teia de outro sabujo como eu. Na verdade sou um sabujo, se não o fosse não abandonaria uma esmeralda. E essa esmeralda chama-se Jimaraida, nome corrompido de Esmeralda.

 

Despedi-me dela e ela perguntou-me, vais para onde? Na verdade eu não sabia para onde ia, nem quanto tempo ia ficar lá onde vou, pior do que isso, não sabia se havia de voltar. Porém o entusiasmo de outros companheiros que também se predispunham a avançar, era tão envolvente que se tornava impossível recusar o chamamento. Aliás trespassou-me a memória uma passagem bíblica que diz, muitos serão chamados e poucos escolhidos. Ora, eu podia ser um dos escolhidos.

 

Jimaraida fustigou-me com o olhar, era a única coisa que podia fazer porque eu já estava na rampa de lançamento com os motores lançados, deixando para trás uma donzela que já fazia parte de mim, não propriamente como minha namorada, mas uma amiga, uma confidente que vai merecer todo o meu respeito. Lembro-me ainda do silêncio fulminante do olhar de uma linda tigreza impotente, incapaz de me dissuadir, mesmo com as lágrimas escorrendo pelo rosto macio que eu beijava sempre como um furtivo.

 

Era um dia de chuva branda, e no derradeiro adeus Jimaraida recusou que eu a beijasse. Ainda tentei uma, duas, três vezes, mas ela esquivava, e logo percebi que não valia a pena. O beijo não se arranca a ferros, ele acontece em mútua cedência ao impulso que vem de dentro. Então ajeitei a pasta de costas, ao mesmo tempo que sentia duas forças antagónicas atuando sobre mim. Uma força puxava-me para o interior do autocarro que já tinha os motores ligados. Outra força, mais forte, puxava-me para trás onde estava Jimaraida. Chorando. Eu também chorei muito ao longo da viagem, pensando sem parar na Jimaraida. Derrotada por um incompetente. Sem dignididade de merecer o verdadeiro amor!

 

Passam pouco mais de quatro décadas desde que nos separamos. E hoje, já no fim da estrada, estamos novamente apaixonados!

terça-feira, 21 julho 2020 08:55

Rosa Maria

Não podíamos encontrar um lugar melhor que este, onde podessemos nos despir por inteiro e deixar que a lua fizesse as suas vontades sobre os nossos corpos, dando-nos a luz em plenitude.  Foi antes desta invansão sem sentido, em que cada um construiu o seu casebre sem se importar com a natureza, passando a produzir o lixo que o mar está constantemente a devolver aos donos, e a nós que não temos nada a ver com isto. Agora o nosso local de encontro de outrora, de mim e da Rosa Maria, foi tornado um triste conglomerado, onde as pessoas convivem com a miséria. Aquilo parece um aterro santirário.

 

Mas alí era onde os nossos corações batiam ao mesmo ritmo, deitados na areia branca, absolutamente nus, cada um sentido a respiração do outro, até a catarse impetuosa. Tumultuosa. Faziamos isso com o testemunho das marés enquinociais ou da maré vaza, e dos pássaros marinhos que também entravam em cio ao verem nossos corpos assim mesmo, sem nada! E Rosa Maria sorria, completamente satisfeita, entrando em consonância com os meus sentimentos e com o meu corpo, arrasado pelo prazer.

 

Éramos livres, fugidos da casa de nossos pais para aqui, onde não passa ninguém a esta hora da noite. Não se ouve nenhum som, a não ser a música de magwilili (aves marinhas cujos nomes não cnhecemos em português)  que se transforma em catalisador para o galope que nos levará as estrelas reflectidas neste mar que se esbate na areia onde estamos estirados. É uma dádiva estar aqui, ainda por cima com o meu corpo dentro do corpo da Rosa Maria. Parecendo um único corpo.

 

Ainda nem tinhamos atingido o auge da juventude, porém o nosso envolvimento estava no zénite. Começamos tudo pelo cume, com rotações de alta voltagem, e nessas condições só tinhamos duas hopóteses, ou mantermo-nos alí por não haver outra montanha para subir, o caírmos.  E o fogo da Rosa Maria, no lugar de me tornar aceso também, consumia-me como as formigas fêmeas  que consomem o macho na cópula, até a morte cheia de prazer intenso.

 

Agora sou a guitarra sem cordas, que apenas se lembra de que alguma vez alimentou as festas sem fim da Rosa Maria, mulher que continua aqui ao meu lado, mas sem verve! Eu também estou ao lado dela....  sem verve!

sexta-feira, 10 julho 2020 07:29

Maurício Madebe: o búfalo está exausto*

Conheci-o em Boane nos princípios de 1975, vindo das matas após a assinatura dos Acordos de Lusaka. Era jovem, provavelmente na casa dos trinta, e uma das características que lhe notei logo a partida é que ele era frio. Estava talhado para as batalhas mais ferozes, por isso tinha dificuldades em separar as matas da guerra que ajudou a vencer, e os treinos militares para mancebos que vinham da cidade. Foi-lhe confiado o 1º batalhão de instruendos, e em pouco tempo os jovens já falavam de Madebe, um homem temido não só pela rigorosidade de comando, mas sobretudo porque era uma pessoa inesperada. De certa forma rude.

 

Lembro-me que nos treinos de preparação político-militar, Maurício Madebe usava balas reais para a fase de progressão sobre o fogo do inimigo. Disparava rasante e gritava, avança! E os instruendos avançavam, ou vergados com armas sem munições, ou rastejavam como guerrilheiros. E Madebe divertia-se com a saga, libertando freneticamente  a música dos projécteis. Ele era o instrutor mais obstinado, e por conseguinte, formou o melhor batalhão do centro que tinha na cúpula da chefia uma dupla de orcas constituída por Dinis Moyane e Manuel Mandjichi.

 

Embora eu não pretencesse ao 1º Batalhão, era próximo de Madebe. Havia entre nós uma espécie de empatia. Aos fins-de-semana saía comigo e andávamos por aí num Land-Rover conduzido por um motorista que se tornou cúmplice de nós. Mas há uma coisa que jamais me sai da memória, Maurío Madebe nunca aceitava que eu lhe apertasse a mão. Não apertava a mão de ninguém, mesmo depois dos copos. Fumava cigarros da marca “Havana”, e como ele dizia, era em homenagem a Cuba e a Fidel Castro.

 

Na semana passada fui ao bairro militar para uma visita de surpresa. A primeira sensasação que tive ao penetrar no dito reduto dos macondes, é de que havia ali um rastilho aceso, e o elemento crucial da dinamite será Maurício Madebe, um búfalo que o ex-presidente Armando Guebuza quis ferir, sem contudo o fazer porque o próprio Madebe avisou que se o fizesse, as consquências seriam por demais fatídicas. E Guebuza acatou o aviso. Temeroso.

 

Não há guarda na casa de Madebe, nem cão, o que significa que o cão pode ser ele. Um cão que nem é cão, é um búfalo. Transpus livremente o portão do muro de vedação, na esperança de ouvir algum movimento dentro de casa. Na verdade ouvia-se música e reconheci o Casimiro Nyusi cantando “Ximbombo” a um volume moderado. Toquei a campaínha a primeira vez.....nada! A segunda.... também nada! E a terceira foi quando uma voz aparentemente resignada responde, entra!. Era o próprio Madebe, reconheci-o pelo timbre da voz,  e pelo sotaque ximanconde.

 

Antes dse nos saudarmos perguntou-me se “vai um café”. E eu como não desdenho esse estimulante, aceitei de pronto. Perguntou-me ainda se “vai com um cheirinho”, e o “cheirinho” havia de me ajudar a espantar o frio. Caí na fita.

 

Maurício Madebe treme nas bases. Dentro da sua casa não se ouve nenhum outro som que não seja o “Ximbombo”. As janelas estão todas fechadas e cheira a bafio. Mas o que ainda dá graça a vida do comandante de Boane, é esta mulher que me serve o café. Uma senhora de beleza ilimitada e o meu anfitrião disse-me que era sangue do sangue dele. Nem parece! Madebe ainda vive a guerra, tem uma pistola negligenciada no sofá, e eu perguntei, é para quê isso, comandante? E ele não respondeu.

 

No fundo a minha pergunta pode fazer sentido. O homem parece movido mais pelas lembranças do que pelo futuro. E a uma pessoa nestas condições, o melhor é não fazer  perguntas. De resto ele parece frustrado.

  • * Texto imaginário com alguma realidade
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