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sexta-feira, 28 agosto 2020 07:27

Bebendo água numa taça de vinho

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Os meus dois amigos bebem cerveja tranquilamente na esplanada do restaurante, um sentado numa mesa, outro noutra, mesmo assim partilham a mesma garrafa. De Txilar. Parecem desolados, cada um fazendo as contas a vida sem dirigir palavra ao companheiro que está no outro barco navegando num rio triste. Na verdade esta esplanada é um rio triste no sentido de que não emana alegria.  Eles são os únicos que estão alí, aliás, num dos cantos há mais um cliente degustando um peixe em silêncio, de costas para a rua vazia, contrariando os cowboys nos saloons.

 

Escrevi um poema na memória ao vê-los cada um ocupando a sua mesa, porém muito próximos um do outro, absortos nos telemóveis, completando assim o silêncio da cidade de Inhambane que daqui a pouco vai ficar entregue a outro silêncio, o do néon. Os últimos carros já passaram de recolha aos aposentos, e não vejo nenhum pedestre por aqui. Contudo, apesar deste mutismo, ainda consigo ouvir o derradeiro canto das tuta-negras penduradas nos cabos de electricidade. Outros nas copas das velhas acácias, despedindo-se do dia e agradecendo a Deus por terem saciado o bandulho sem precisarem de trabalhar.

 

Cheguei por volta das 16, convidado pelos dois “bradas” que dividem a Txilar, e o que me fascina a esta hora, é a total liberdade da urbe. É o silêncio. É a possibilidade de ouvir os batimentos compassados do coração. Também estou aqui em respeito a estes companheiros. É essa consideração aliás que levou-me a aceitar de pronto o chamamento, porque de outra forma não teria saído de casa, onde já me enclausurava mesmo antes da Covid-19. A pandemia quando chegou eu já era um prisioneiro do sossego que os meus aposentos me oferecem, ainda por cima um sossogo abrilhantado pela música diária dos pássaros.

 

Saudei aos dois, e as mesas estão de tal maneira dispostas que ao me sentar a uma delas, sou a ponte que os vai fortalecer a ligação. Se calhar sou a jangada. E antes que a conversa estalasse, um deles perguntou-me o quê que ia beber, e eu respondi, água! A água associa-me aos rios que venero, e aqui sou a ponte sobre o rio, ligando duas margens que se irmanam. Duas margens que bebem a mesma Txilar e comunicam-se por via do silêncio.

 

Estou com os meus amigos entregue ao vento das palavras. Livre como as gaivotas voando por sobre as marés vibrantes de verão.  Aliviado dos pensamentos. Bebendo água, não num copo, mas numa taça de vinho. O garçon trouxe uma garrafa de água e serviu numa taça de vinho sem que eu desse por isso, nem os meus companheiros, mas também não acho isso importante.  Água é água, num copo ou numa taça. Ou num rio. Mata sede na mesma. Mas há quem acha que as coisas devem ser colocadas nos seus devidos lugares, como este outro amigo que chega e exclama, estás a beber água numa taça de vinho!

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