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Depois que foi estabelecido em 2003 sob a batuta do jurista Rui Baltazar, que morreu em Julho passado aos 91 anos, o Conselho Constitucional (CC) tornou-se rapidamente num sólido pilar dentro do nosso precário sistema de integridade. Apesar de ser composto na base de uma proporção guiada pela representatividade parlamentar dos partidos políticos, cabendo à maioria da Frelimo indicar a maioria dos juízes, suas decisões eram unicamente baseadas nos ditames da Lei e do bom senso, em defesa da Constituição contra quaisquer desvios de inclinação partidária.

 

Em 2007, o CC chumbou ostensivamente uma norma estabelecida no consulado inicial de Armando Guebuza, que obrigava ao uso da expressão “decisão tomada, decisão cumprida” no fecho da correspondência oficial no Estado. Na altura, Rui Baltazar tinha como pares juristas de gabarito inquestionável como Teodato Hunguana e Orlando Graça (este oriundo da Renamo). Seus acórdãos e deliberações eram escritos de forma assertiva e pedagógica, com um registo irrepreensível de jurisprudência. O CC era uma escola. E havia se consolidado como um importante contrapeso do poder. Dentro do nosso sistema político, era a única entidade que mantinha ainda uma grande dose de respeitabilidade na sociedade.

 

Quando Rui Baltazar saiu em 2009, pensou-se que ele levara consigo esse perfil de integridade raramente beliscado. Mas não! O CC manteve-se no mesmo registo. Assertivo, evitando cair na esparrela do juridiquês barato como agora está a suceder - apesar da desconfiança gerada com a chegada de Hermenegildo Gamito, em 2011, no início do segundo mandato de Armando Guebuza. Juízes como Orlando Graça e José Norberto Carrilho garantiriam a qualidade e a independência, mas isso começou a desmoronar quando os dois saíram em 2014. 

 

Gamito foi uma escolha pessoal de Armando Guebuza. Foi reconduzido por Filipe Nyusi em 2016. Mas suas credenciais de isenção foram sempre suspeitas. Ele conduziu o CC de uma forma claramente favorável ao regime da Frelimo, como ficou provado nas eleições autárquicas de 2018, quando o CC a se destacar pela negativa, fazendo tábua rasa das irregularidades e ilegalidades praticadas pela CNE em prejuízo do grupo apoiante de Samora Júnior, o então AJUDEM, que viria a transformar-se no actual Podemos.

 

Depois veio Lúcia Ribeiro, cujos trabalhos nas eleições autárquicas de 2023 vieram a confirmar que o CC perdera definitivamente a aura inicial de integridade e isenção. No dia 24 de Novembro do ano passado, o Conselho Constitucional, anunciou a versão final dos resultados das eleições autárquicas realizadas no dia 11 de Outubro, reforçando a percepção de que o órgão era tendencioso a favor do partido no poder, a Frelimo.

 

O CC fez pouca referência a irregularidades durante o processo de votação e contagem de votos, ou nas eleições como um todo, dizendo que estas questões não influenciaram os resultados globais. Os resultados apresentados pelo CC foram entendidos como fruto de compromisso, pelo menos entre a liderança da Renamo – partido que originalmente reivindicou a vitória em 21 municípios – e a Frelimo, levando a percepção generalizada de que a decisão do Conselho Constitucional (cujos vários juízes são nomeados pelo presidente e por membros do parlamento dominado pela Frelimo) foi fortemente influenciada pelos desejos da Frelimo. Por outro lado, o facto de os resultados eleitorais demorarem demasiado tempo a ser anunciados levantou suspeitas sobre todo o processo.

 

Um dos principais afectados pelas decisões do Supremo em 2023 foi Venâncio Mondlane, que concorreu pela Renamo para a presidência do Conselho Autárquico de Maputo. Furiosos com o CC, seus manifestantes haviam iniciado em Maputo uma série de manifestações, reivindicando justiça social. As “manifs” apenas perderam fôlego porque a Renamo retirou seu apoio à então revolta venancista, que tinha fortes condimentos para afectar a “paz social”, pelo menos na cidade de Maputo. 

 

Foi como que a alertar para esse efeito perverso de um CC tendencioso que Rui Baltazar fez sua derradeira chamada de atenção aos juízes do conselho, que aqui transcrevemos, pois, mais do que em 2023, hoje em 2024, nas actuais eleições gerais, é esperado que o veredicto daquele órgão seja isento e respeite a vontade dos eleitores, sob pena de Moçambique viver dias negros de tumultos pós-eleitorais nunca vistos no passado. 

 

 O Conselho Constitucional vai, no futuro próximo, ter de tomar graves decisões, com grande impacto na sociedade moçambicana, e deve estar preparado para tal, contribuindo através da sua independência e da aplicação intransigente, correcta e exemplar da Constituição e das leis, para a paz social, para o melhoramento da democracia e para que se faça justiça a cada cidadão;

 

— Os desafios a que terá de responder o Conselho Constitucional em Moçambique pouco têm a ver com o risco de se instalar um governo de juízes, mas sim com a necessidade de controlar os excessos no exercício dos poderes, o seu equilíbrio, salvaguardar e reforçar a ordem democrática e constitucional, a separação e interdependência dos poderes do Estado e garantir os direitos e liberdades de todos os cidadãos.

 

*BALTAZAR, Rui. “Lastimável estado do Estado de Direito Moçambicano”, O Guardião, Revista do Conselho Constitucional de Moçambique, Volume IV, 2023, Pág. 290.

sexta-feira, 08 novembro 2024 08:12

Um outro ῎Galo, galo amanheceu῎ é possível

Uma saída para a actual tensão pós-eleitoral talvez passe por uma linha de comunicação directa à semelhança dos tempos do auge da Guerra-Fria, na década de 1960, entre o Ocidente, liderado pelos Estados Unidos da América, e o Leste, liderado pela então União das Repúblicas Socialistas Soviética.

 

Esta linha de comunicação foi conhecida como ῎Telefone Vermelho῎ e foi criada para aproximar as partes desavindas e evitar a escalada de conflitos. Pelo mesmo propósito devia ser estabelecido um ῎Telefone Vermelho῎ entre os principais antagonistas da actual crise pós-eleitoral em Moçambique e não seria a primeira vez na Pérola do Índico.   

 

Há cinquenta anos, nos acontecimentos do ῎7 de Setembro de 1974῎ na então Lourenço Marques, ora Maputo, o ῎Telefone Vermelho῎ foi a elite africana urbana (assimilados) estabelecida nos subúrbios da cidade. Esta elite criou um grupo que articulou a resistência urbana e foi determinante para o fim da violência que se instalara em Lourenço Marques com a tomada da Rádio Moçambique, entre outras acções, incluindo violentas, perpetradas por grupos da população branca que estavam contra o desfecho dos Acordos de Lusaka, assinados entre Portugal e a FRELIMO.   

 

Reza a narrativa dos factos que um dos elementos deste grupo de resistência, cuja sede estava no bairro da Mafalala, foi ao que é o actual Quartel-General e disse a um responsável militar do exército colonial que seria possível travar a incursão ofensiva e massiva da população negra em marcha e em direcção ao centro branco de Lourenço Marques. Para que o banho de sangue fosse evitado uma senha deveria ser difundida através da rádio, então ocupada por colonos em contramão com o desfecho de Lusaka.

 

Felizmente, e depois de terem sido criadas as condições, ῎Galo, galo amanheceu῎ foi a senha que foi difundida nos microfones da Rádio Clube, hoje Rádio de Moçambique, e assim foi travada a furiosa multidão às portas do centro da cidade, pondo fim a 4 dias (7-10 de Setembro de 1974) de incerteza, tensão e violência.   

 

Infelizmente, e voltando para os actuais acontecimentos da crise pós-eleitoral cujo epicentro é o dia 7 de Novembro de 2024, ainda não se vislumbra qualquer sinal de criação das condições para uma plataforma ao estilo do ῎Telefone Vermelho῎.

 

Pelo rol dos acontecimentos em curso urge que seja estabelecido o ῎Telefone Vermelho῎ e deste a esperança de que saia uma nova senha ao estilo ῎Galo, galo amanheceu῎ que ponha cobro aos dias de incerteza, tensão e violência que correm, e também que sinalize para uma nova Pérola do Índico. É possível!

 

quarta-feira, 06 novembro 2024 11:56

Juventude: a fúria incontida

Está caindo uma chuva mal-cheirosa um pouco por todos os cantos do nosso país, mas isso pode ser o prenúncio de que o dilúvio chegou. Relampeja nos Céus, com raios gotejando luz letal sobre a terra libertada com sangue, agora regada com sangue novamente. Há trovões a rugir como os felinos mais portentosos da selva, anunciando a hecatombe, porém, ao que parece, ninguém se importa com a sinaleta.

 

Aquela mulher também , no tempo do Noa, dizia: nunca vi chuva nenhuma a engolir montes e montanhas, e árvores gigantes! Mesmo que venha o tal dilúvio, eu sei nadar, de mariposa e de bruços e costas e de livre. Por isso, não tenho medo de nada!

 

Chove em Maputo e Gaza e Inhambane/Chove em Sofala e Zambézia e Tete e Manica/Chove em Cabo Delgado e Nampula e Niassa. Chove uma chuva mal-cheirosa e pegajosa em todo o país, e ainda dizem, isto vai passar! Relampeja e troveja em todo o lado e ainda dizem, isto não é nada!

 

A tonalidade do canto dos pássaros baixou de nível. As estradas estão nuas de um lado. Do outro lado ganharam feridas vivas e, no lugar do pus, cheiram a petróleo. As balas são aspergidas contra os corpos dos jovens e das crianças. Os militares aprumam-se enchendo os carregadores das armas de guerra. Há uma voz de comando que grita para que o sangue jorre nas cidades. E as nossas casas tornaram-se grutas onde nos esconderemos, em vez de nos acomodarmos.

 

Continua a chover chuva pegajosa em Moçambique. E mal-cheirosa. O céu está encolhendo para que as nuvens se adensem e escureça. Cheira a pólvora na atmosfera. Os músicos recusam-se a subir aos palcos para cantarem as músicas da esperança. E quando se chega a essa fase, significa que serão os crocodilos e as hienas a triunfarem sobre a luz.

 

As noites tornaram-se longas, ninguém dorme. Os jovens estão unidos, mais do que nunca, no mesmo cacho da luta. Eles sabem que o caminho pelo qual se guiam, é íngreme, mas vão. Sabem igualmente, que para se chegar ao topo do monte mais alto da cordilheira de Namuli e de Catandica e de Chimanimani e de Binga, é preciso alimentar-se devidamente com xima e carne. E os jovens não têm nem xima nem carne, mas vão com a fome que vêm acumulando. “Nós já nascemos com fome”!

 

É esta a cascata que desce impetuosa, não para destruir. É esta catarata do tempo que já não pode voltar para trás. São estes os ventos que sopram de todos os pontos cardiais levando a força da restauração do amor e da paz. E aos ventos da paz e do amor, não há barreira que se interponha.

 

Chove chuva mal-cheirosa e pegajosa. Troveja em todo o lado. Relampeja sem parar nas ruas e nos becos e em todas as veredas de Moçambique. Mas ainda é um sinal que podemos entender com sabedoria, para que não haja mais sangue. Para que voltemos a acender as luzes apagadas.

Contextualização 

 

A situação dos direitos humanos mostra-se bastante preocupante, com sinais de frágil protecção pelas instituições relevantes para o efeito, neste período caracterizado por conflito pós-eleitoral praticamente em todo o País, sobretudo, depois do assassinato bárbaro do advogado Elvino Dias e de Paulo Guambe, mandatário do Partido PODEMOS, na cidade de Maputo, na madrugada do dia 19 de Outubro de 2024, o que desembocou na realização de manifestações populares a nível nacional, com destaque para a capital do País, Maputo.

 

A intervenção da Polícia da República de Moçambique (PRM) e das Forças de Defesa e Segurança (FDS) para impedir o exercício do direito à manifestação pacífica tem sido caracterizada por execuções sumárias, deteções arbitrárias, agressão física, baleamentos, tortura e outros maus tratos que consubstanciam violação dos direitos humanos, para além de argumentos falaciosos de que a manifestação não foi autorizada e é violenta.

 

O silêncio das relevantes instituições de justiça, incluindo os órgãos de soberania e demais órgãos centrais do Estado responsáveis pela garantia da paz, segurança pública e prevalência do interesse nacional contribui bastante para a violação dos direitos humanos que está a ter lugar no período em análise, que vai desde o dia 21 de Outubro até ao presente momento. 

 

Curiosamente, a Constituição da República de Moçambique (CRM) protege os direitos humanos em toda a sua extensão, no quadro do Estado de Direito Democrático e de Justiça Social que instituiu. Neste sentido, o Estado moçambicano, mais do que assinar, ractificar e reconhecer instrumentos e instituições regionais e internacionais de protecção dos direitos humanos de diversa ordem, aprovou uma série de leis ordinárias sobre os direitos humanos, bem como criou várias instituições e organismos de promoção, defesa e protecção de direitos humanos quais sejam: A Comissão Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), o Provedor de Justiça, a Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM), os tribunais, o Ministério Público, a Comissão dos Assuntos Constitucionais, Direitos Humanos e de Legalidade da Assembleia da República de Moçambique, Ministério da Justiça e sua Direcção Nacional dos Direitos Humanos, o Instituto de Patrocínio e Assistência Jurídica (IPAJ) e organizações da sociedade civil que trabalham em matéria de justiça e direitos humanos.

 

Ademais, não se deve esquecer que Moçambique é um dos membros não permanentes do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), tendo inclusive assumido a presidência rotativa deste órgão.

 

Isto significa que, do ponto de vista formal, existe um quadro legal e institucional para a protecção dos direitos humanos e realização da justiça, o que nem sempre tem correspondência com a realidade prática, tanto é que há situações como nas actuais manifestações em que parece se ter decretado a suspensão das garantias dos direitos e liberdades fundamentais, fora dos preceitos constitucionais, senão vejamos:

 

Violação do direito à vida e integridade física

 

Vários cidadãos foram assassinados e feridos, alguns em situação de gravidade, em conexão com o exercício do direito à liberdade de manifestação pacífica, pela PRM e FDS, que têm vindo a praticar actos de violência e brutalidade policial contra cidadãos indefesos, independentemente de estarem ou não envolvidos nestas manifestações populares de nível nacional contra os resultados eleitorais e prática de má governação pelo Partido no poder há 49 anos, desde a independência de Moçambique, em 1975.

 

Na semana finda, os médicos, através da Ordem dos Médicos de Moçambique e a Associação Médica de Moçambique, vieram a público, através da imprensa, confirmar que foram mortas 10 pessoas e 73 ficaram feridas como resultado de balas verdadeiras e gás lacrimogéneo atirados pela Polícia contra os cidadãos. Com o início da terceira fase das manifestações pacíficas, convocadas pelo candidato presidencial suportado pelo Partido Podemos, Venâncio Mondlane, o número de cidadãos assassinados e feridos pela PRM e FDS aumentou significativamente, em vários locais do País, em especial na Capital do País.

 

“Todo o cidadão tem direito à vida e integridade física e moral e não pode ser sujeito à tortura ou tratamentos cruéis ou desumanos”. É o que dispõe o artigo 40 da CRM. A Polícia tem estado a ignorar sistematicamente a dignidade humana protegida pela CRM e pelas normas do Direito Internacional de que Moçambique é parte, abusando assim dos direitos humanos sem qualquer tipo de responsabilização, como se se tratasse de um órgão com autorização legal para executar e torturar os cidadãos de todo o tipo (crianças, mulheres, homens, jovens, idosos, deficientes, etc), com base na sua vontade ou desejo.

 

Discriminação no tratamento dos cidadãos

 

Há uma notável prática de discriminação, fundamentalmente baseada na posição social e na posição  política praticada especialmente pela PRM e FDS e outras instituições de justiça como é o caso do Ministério Público. As condutas destas instituições tendem a violar os direitos e liberdades fundamentais dos manifestantes e privilegiar interesses obscuros do Partido no Poder, que tem sido bastante protegido e que, de certa forma, controla os órgãos do Estado e influencia bastante para a precariedade da justiça em Moçambique.

 

Como corolário do referido no parágrafo anterior há que notar as várias evidências que consubstanciam violação do direito à liberdade de manifestação pacífica, em especial a manifestação do tipo marcha na via pública, principalmente na zona cimento ou nos Bairros de elite da Cidade de Maputo em que a PRM e FDS, com recurso à violência e brutalidade policial, impedem que os cidadãos entrem para a zona cimento.

 

Ainda sobre a prática da discriminação, vale lembrar o caso de violação dos direitos humanos dos manifestantes, no distrito de Mecanhelas, na província do Niassa, em que agentes da Polícia dispararam balas reais e gás lacrimogéneo de forma desproporcional contra os manifestantes e apoiantes de Venâncio Mondlane e do PODEMOS.

 

A PRM agiu em protecção e tratamento privilegiado dos apoiantes e simpatizantes do Partido FRELIMO que estavam a marchar em celebração da alegada vitória eleitoral. Trata-se, pois, de um claro exemplo da violação do princípio da não discriminação e da igualdade previsto no artigo 36 da CRM. Este é um caso flagrante em que a PRM demonstrou que só respeita e protege os manifestantes da FRELIMO, até porque estes marcharam à vontade e com protecção policial um pouco por todo o País, no sábado, dia 26 de Outubro de 2024 e também voltaram a marchar à vontade no distrito de Gurué, na Província da Zambézia, no sábado findo, dia 2 de Novembro.

 

Estranhamente, nessa mesma data, a PRM repeliu, com violência e brutalidade policial, várias manifestações, incluindo a manifestação pacífica da chamada classe média e grupos islâmicos que marchavam, de forma ordeira e civilizada, na zona da Baixa da Cidade de Maputo, em direcção à praça da independência.

 

Mais do que isso, é que a PRM, com a anuência do Ministério Público, instaurou um processo-crime contra Venâncio Mondlane por, alegadamente, estar a incitar a violência no País pela convocação de manifestações e paralisação do funcionamento do Estado. No mesmo sentido, vários jovens manifestantes contra os resultados eleitorais, má governação e assassinato bárbaro de Elvino Dias e Paulo Guambe foram processados e julgados, alegadamente, por praticarem manifestação violenta.

 

No entanto, pelas mesmas circunstâncias, nunca a PRM e FDS foram processadas e julgadas pelas violência e brutalidade policial contra cidadãos indefesos. A mesma situação se verifica relativamente há alguns cidadãos, os chamados grupos de choque ligados ao partido no poder, que, recorrendo às redes sociais e imprensa, promovem discurso de ódio contra os activistas de direitos humanos, organizações da sociedade civil e quaisquer cidadãos que ousam criticar a fraude eleitoral, a governação do dia e o sistema de justiça em vigor. Os manifestantes que são membros e simpatizantes do Partido no Poder também não são alvos de quaisquer processos judiciais e perseguições pela Polícia.

 

Perante esta situação, é curiosa a complacência das instituições da justiça relevantes nesta matéria, o que é problemático e preocupante, na medida em que perpetua tanto a prática de tratamento desigual para situações iguais ou similares, como alimenta a situação de impunidade das autoridades policiais e outras que violam o direito à liberdade de reunião e manifestação e outros direitos humanos neste contexto.

 

Violação dos direitos digitais, direito à informação, liberdade de expressão e de imprensa

 

A recorrente prática de uma conduta sistemática de violação dos direitos digitais pela restrição no acesso e uso de internet releva a efectiva violação do direito à informação, liberdade de expressão e de imprensa, bem como a violação da participação pública dos cidadãos na vida do Estado, limitando o exercício da cidadania e da democracia, conexos aos direitos digitais.

 

Os cidadãos, na sua maioria, exercem e gozam do direito à informação através do uso dos serviços de internet, basicamente por via dos dados móveis, cujo acesso tem sido arbitrariamente limitado e/ou cortado, como forma de parar e repelir as manifestações em questão.

 

O exercício do direito fundamental à informação, da liberdade de expressão e de imprensa são pressupostos do princípio constitucional da permanente participação democrática dos cidadãos na vida pública. Na verdade, a liberdade de informação, de expressão e de imprensa são exercidos, fundamentalmente, através da Media social, as chamadas redes sociais, bem como pela televisão e jornal digital que dependem do fácil e rápido acesso à internet.

 

Pelo que, a restrição arbitrária no acesso à internet constitui uma forma de denegação infundada e violação das liberdades de informação, expressão e de imprensa constitucionalmente consagrados, conforme estabelecido no artigo 48 da Constituição da República. Vale notar que também constitui uma forma de violação do direito à educação, do direito ao desenvolvimento, entre outros direitos humanos conexos aos direitos digitais.

 

A Polícia violentou, arbitrariamente, vários jornalistas e outros profissionais de comunicação social, com destaque para o dia 21 de Outubro de 2024, quando estavam a exercer a liberdade de imprensa, reportando os factos que estavam a acontecer na Cidade de Maputo, nas proximidades da Praça da OMM, no contexto das manifestações pacíficas em questão.

 

Alguns jornalistas foram alvejados pela Polícia e socorridos para a unidade sanitária mais próxima, mormente o Hospital Central de Maputo. A Polícia teve uma actuação excessivamente desproporcional, abusiva e de violência intencional contra jornalistas e órgãos de comunicação social nacional e internacional.

 

Os profissionais de imprensa estavam a reportar as incidências dos acontecimentos, em pleno exercício das liberdades de expressão, de imprensa e de informação consagrado no n.º 1, do artigo 48 da CRM que determina: “todos os cidadãos têm direito à liberdade de expressão, à liberdade de imprensa, bem como direito à informação.” Em bom rigor, estes direitos e liberdades só podem ser limitados nos termos consagrados na CRM. Mas a Polícia não respeita a ordem constitucional para o efeito, desencadeando um ataque directo contra a imprensa.

 

O mais caricato e vergonhoso foi o governo, depois de se reunir em Conselho de Ministros, aparecer publicamente a negar a violência e brutalidade policial contra os jornalistas perante evidências de vídeos e imagens vistas em directo a nível nacional e internacional e que constituem factos notórios de tal maneira que não carecem de prova.

 

Com essa atitude, o Governo revelou um total desinteresse relativamente ao respeito e protecção dos direitos humanos, senão exclusivo interesse em defender a Polícia a qualquer custo.  

 

Violação do direito ao voto

 

A Comissão Nacional de Eleições (CNE), num contexto de violação dos princípios da justeza e transparência eleitoral, aprovou os resultados das presentes eleições gerais e submeteu ao Conselho Constitucional para a validação e proclamação das mesmas. A violação dos princípios da justiça e transparência eleitoral que fazem parte do lema do processo eleitoral “Eleições livres, justas e transparentes” denota a violação do direito constitucional ao voto do cidadão. Os votos apurados não se mostram credíveis devido à prática da fraude eleitoral, seja pelas evidências de enchimento de urnas, seja por roubo de urnas, seja por falsificação dos editais e das actas relativas ao processo da votação, etc.

 

Aliás, uma análise mais aprofundada da actuação da CNE permite facilmente perceber que este órgão reconhece ter havido violação do direito constitucional ao voto, ou seja, do sufrágio universal e a consequente violação da participação democrática dos cidadãos na vida da Nação, conforme resulta do artigo 73 da CRM.

 

São evidências desse reconhecimento, tanto a Deliberação n.º 105/CNE/2024, de 24 de Outubro Atinente à Aprovação da Centralização Nacional e Apuramento Geral dos Resultados das Eleições Presidenciais, Legislativas e das Assembleias Provinciais, de 9 de Outubro de 2024, como a respectiva Acta do Apuramento Geral, para além do conteúdo do discurso do próprio Presidente da CNE que, de viva voz, reconheceu ter havido várias irregularidades graves, que a mesma CNE ignorou, alegadamente por falta de tempo. Ou seja, não houve tempo para garantir o respeito pelo direito fundamental ao voto, à democracia e à participação política dos cidadãos.

 

Violação do direito do consumidor

 

A limitação no acesso aos serviços de fornecimento de internet de forma obscura e arbitrária, revela, também, violação dos direitos dos consumidores, consagrado no artigo no artigo 92 da CRM. Ora, os cidadãos estão a ser, assim, consumidores de um serviço público precário de acesso à internet para a materialização dos seus direitos digitais, sem qualquer responsabilização das entidades prevaricadoras, como o Instituto Nacional de Comunicação de Moçambique (INCM) a autoridade reguladora das comunicações; o Ministério de Transportes e Comunicações, a Tmcel, a VODACOM, a MOVITEL, etc.

 

Violação da liberdade de circulação

 

Os cidadãos, independentemente de serem manifestantes, estão a ser vítimas de violação do direito fundamental de livre circulação, dignidade humana e integridade física pela Polícia sobretudo no período desta terceira fase da manifestação pacífica. Não podendo circular livremente no território nacional, sobretudo para a capital do País, e para a zona cimento da Cidade de Maputo, sem a devida justificação das razões da circulação, numa espécie de retorno da regra das “Guias de Marcha.”

 

As autoridades policias, ao agir da forma como agiram, puseram em causa não só o direito de livre circulação e dignidade dos cidadãos vítimas da violência e brutalidade policial para não circularem livremente, como também desprezaram e ignoraram a CRM.

 

Nos termos do disposto no artigo 55 da CRM e da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, de que Moçambique é parte, todos os cidadãos gozam do direito de livre circulação no interior e exterior do território nacional, desde que não estejam judicialmente privados desse direito.

 

Violação do direito à segurança pública

 

A PRM e as FDS instalaram um estado de terror e de insegurança pública no País, de tal modo que está a agredir e, vezes sem conta, a assassinar os cidadãos indefesos, alegadamente, para conter ou limitar a todo o custo o exercício do direito à liberdade de manifestação e de livre circulação.

 

Estar na via pública, em Moçambique, tornou-se um grande risco devido ao terrorismo Policial que a todos baleia com balas verdadeiras, de borracha e dispara gás lacrimogéneo, indiscriminadamente e de forma completamente desproporcional.

 

A Polícia que devia proteger o cidadão e garantir a ordem e segurança pública é a mesma que aterroriza, agride e executa sumariamente os cidadãos indefesos, no pleno exercício dos direitos e liberdades fundamentais, sem qualquer tipo de responsabilização, nem chamada de atenção pelas autoridades competentes para o efeito.

 

Concluindo

 

Os direitos humanos quase que não gozam de qualquer forma de respeito e protecção nestas manifestações populares, com a excepção de se tratar de cidadãos da FRELIMO e elites deste Partido no Poder.

 

O silêncio das instituições de justiça perante as atrocidades da Polícia contra os direitos humanos, mais do que representar uma garantia de impunidade à Polícia, constitui uma forma de perpetuar a violação dos direitos humanos contra os manifestantes e opositores ao Partido no Poder.

 

A CRM e os vários instrumentos de protecção dos direitos humanos que vinculam Moçambique estão a ser completamente ignorados e violados pelos próprios dirigentes do Estado e instituições de justiça.

 

Até ao presente, não há qualquer responsabilização da Polícia pelos seus actos de violação contra os direitos humanos no contexto destas manifestações e sequer houve qualquer reparação dos danos causados às vítimas e pedidos de desculpas, senão continuação da violação como forma de repressão.

 

A participação efectiva de Moçambique nos organismos internacionais sobre os direitos humanos, paz e segurança, não está a surtir efeitos desejáveis e é estranho que ainda não haja evidência de ajuda internacional para que não haja sistemática prática de atrocidade contra a dignidade humana ou contra a humanidade pela violência e brutalidade policial no País, conforme está a acontecer. Qual é o ganho para estas manifestações de Moçambique se um dos membros não permanentes do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) assumir a presidência rotativa deste órgão?

 

Pela inércia das várias instituições de justiça e que têm a obrigação legal de garantir a paz e segurança pública no País, não resta outra saída aos cidadãos, senão recorrer à justiça privada, o que é indesejável pelas consequências nefastas quase irreparáveis que daí advém.

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

Jurisconsulto em Litigância de Interesse Público

quinta-feira, 31 outubro 2024 15:48

Mano Venâncio, e depois?

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Meu caro amigo, Venâncio Mondlane, escrevo-lhe para lhe contar que uma tia minha, a Carlota, já está melhor das lesões torácicas provocadas pelo gás lacrimogéneo que foi deliberadamente atirado pela polícia contra ela e tantos outros desarmados. Ela, que já havia perdido a mão direita com os estilhaços de artefactos do paiol que explodiu em 2008, pediu que te fizesse chegar as inquietações que lhe vão na alma. Pediu também para te garantir que o voto dela, que depositou na urna com a mão esquerda que lhe sobrou, foi para ti.
 
Naquele dia em que deste o peito à indignação, saindo à rua, mesmo sob coação, para homenagear os heróis do nosso tempo, Elvino Dias e Paulo Guambe, ela disse-me que não conseguiu sair da sua casa, no bairro de Maxaquene, para ir à baixa da cidade comprar gelinhos, por conta do gás lacrimogéneo que inalou. Afinal de contas, aquele gás lacrimogéneo estava fora do prazo há dez anos, conforme ilustra a cápsula que ela apanhou com a mão esquerda.
 
Carríssimo Venâncio Mondlane, A tia Carlota pede que o informe que os gelinhos que ela compra e vende para a sua sobrevivência garantem-lhe, pelo menos, duas refeições por dia. A primeira por volta do meio-dia e a outra, isto quando calha, ao entrar da noite. A maior preocupação da minha tia, para estes sete dias que convocaste a greve geral à escala nacional, prende-se com a sua sobrevivência no plano real. Ela diz que não gostaria de sucumbir à fome, pois pretende estar viva para poder te acenar com a mão que lhe sobra. “Sobrinho, pergunta ao Mano Venâncio Mondlane como é que iremos sobreviver sem fazer negócio por sete dias? Pergunta-lhe, por favor, meu querido sobrinho”.
 
VM7, a tia pretende saber também como é que ela, que confiou o seu voto em ti como representante das suas aspirações de mudança, deve proceder ficando em casa sem praticar o comércio da sua sobrevivência no limite. Para a tia Carlota, a tua liderança depende da confiança dos teus apoiadores, e essa confiança só será mantida se houver um compromisso claro de que os seus interesses estarão salvaguardados. Ela diz que compreende que as grandes mudanças exigem grandes sacrifícios, mas precisa saber até que ponto esses sacrifícios serão necessários e se durarão até que ela e outros não sucumbam à fome.
Mano Venas, a tia Carlota pediu também para dizer que está muito preocupada com a sua última ''live''. Ela diz que sente a sua dor, mas acredita que o mano está a disparar em várias direcções que podem levar a que seja declarado o “Estado de Emergência” e teme que a ditadura seja de facto instalada; se Nyusi virar ditador, não lhe restará nada mais do que perseguir os seus opositores, dentro e fora do partido.
 
Cá entre nós e ja longe das preocupações legitimas da tia Carlota, vi que apelas ao sacrifício de todos os moçambicanos e evocas o exemplo da Frelimo, que, ao se formar na Tanzânia, consentiu grandes sacrifícios em nome da independência. No entanto, é importante lembrar que, na luta pela independência, foram essencialmente os combatentes e líderes revolucionários que arcaram com os maiores sacrifícios, e não a totalidade da população.
 
A história mostra que, em conflitos e resistências ao redor do mundo, os civis raramente estão na linha de frente armados – são geralmente apoiadores, espectadores, vítimas ou sobreviventes das decisões tomadas. Com essa comparação, Venâncio, quero destacar uma diferença fundamental: hoje, pedir que toda a população faça sacrifícios pode ter um impacto profundo sobre aqueles que, como tia Carlota, não têm margem para sustentar essas perdas. Ela e muitos outros dependem do trabalho diário para sobreviver. Nesse sentido, uma greve geral é um fardo desproporcional para aqueles que já vivem em extrema precariedade.
 
A luta por um país mais justo e democrático é essencial, mas a condução desse processo exige sensibilidade e estratégias que não coloquem em risco a sobrevivência das tias Carlotas deste país. Afinal, são justamente esses cidadãos que, em última análise, confiam e esperam que os líderes protejam os seus interesses básicos enquanto lutam pelo futuro melhor prometido.
 
Abraço, Luis Nhachote.
quinta-feira, 31 outubro 2024 15:34

Até que amanheça

Deus disse a Moisés, vai ao Egipto libertar os meus filhos presos nas masmorras de Faraó! E Moisés retorquiu: Deus, como é que hei-de ir libertar os Teus filhos, eu sou gago! E Deus retumbou: quem te deu a gaguez sou Eu! E ainda disse mais, Jehová: tu não precisarás de falar, abre apenas a boca, quem vai falar é o teu irmão, o Arone!

 

Mesmo assim, com as palavras irreversíveis do Leão de Judá, Moisés oscilou no silêncio da planície onde, ao som do doce zumbir das abelhas produzindo mel, apascentava o rebanho do seu sogro, Jetro. Mas Deus o tinha escolhido, era a ele que recaía a missão de rebentar as correntes da escravidão do povo, pisado e torturado e humilhado e cuspido na dignidade. Então Deus retumbou: deixa cair esse cajado que trazes na mão! E Moisés largou o cajado, que se transformou em serpente.

 

E Deus, do pedestal da Sua plenitude, observava o Seu servo tremendo perante o gigantesco réptil que o atacava. Moisés vacilou em movimentos trôpegos em gritaria, e logo a Voz dos Céus bramiu do meio da sarsa: pega a serpente pela cauda! E Moisés obededeu, e a serpente retornou ao seu estado de cajado. E Deus trovejou pela últim vez: agora vai libertar os meus filhos!

 

Nunca tivemos antes, a necessidade urgente de que amanheça, não para escutar a música que brota da orquestra dos pássaros, mas para guerrear com as nossas próprias canções de luta. Nunca antes, tivemos tanta certeza de que a hora já chegou para que a chuva caia nos campos e regue a terra e as sementes brotem retumbantes. Nunca!

 

Mas a hora já chegou. De rebentarmos a cangarra colectiva de todos nós. Chegou a hora de dançarmos perante os nossos verdugos. E na verdade vamos dançar sem as grilhetas nos pés, as novas danças do novo amanhecer que já desponta na aurora das gaivotas. Aí sim, a nossa marcha não voltará mais para trás. Recusamos a continuar alagados de sofrimento como pássaros engaiolados. Não queremos mais que as nossas canções sejam de melancolia.

 

É isso! A hora já chegou! De enfunar as velas da nossa liberdade. De convocar todas as nossas energias e abrir o peito em desafio às balas daqueles que nos subjugam. Somos as ondas imparáveis do Índico, que se esbatem na terra e voltam a esbater-se na terra, sem parar. Vão se esbater sempre, até que amanheça.

 

É essa a nossa luta. Queremos dançar em liberdade e em paz, o nosso Nyau e o mapico. A nossa timbila e a makharra. O nosso xigubo e o n´fena. A nossa Maphandza e o golomondo. O nosso tufu triunfante em Muhipiti!

 

Nós vamos guerrear com as mãos nuas  até que as árvores do medo tombem. Todas elas. Queremos amar em liberdade as nossas mulheres. Fazer filhos com sonhos da sua própria terra.  Usufruir de todo o maná que se estende na superfície e no mar e debaixo dos solos. Queremos isso para todos nós. Então deixem-nos passar. Este país é nosso!

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