Txifuliane está entre a muldidão, com o filho aconchegado, acompanhando tudo aquilo que apenas vem confirmar o que já sabia, ou que já tinha ouvido falar. Mathxinguiribwa dança no colo da mãe ao som da timbila de Juliasse Makowo, dança e ensaia com o pequeno braço esquerdo o batimento do escudo de pele no chão, e o chão era o peito da mãe que tremia cada vez que a criança enveredasse por esse gesto. Ela voltou a ficar alucinada, desta vez viu a sua avó aproximando-se, vestida de branco passeando no ar na sua direcção dizendo, Txifuliane sai daí, sai daí depressa, minha neta, procura uma varanda para te abrigares, entra no restaurante do Mathikiti e peça alguma coisa para comeres com o teu filho, sei que acabas de comer, mas vai comer outra vez, peça algo ligeiro só para não correrem contigo de lá, compra um chocolate para Matxinguiribwa e mantenham-se serenos.
Txifuliane vê Juliasse Makowo sacudindo o abraço do governador, cuspindo depois para o chão, não a saliva, mas um jato de sangue que lhe molhou os pés, pegou na sua timbilia e nas baquestas para se retirar e dirigir-se aos camarotes, onde devia esperar para de novo voltar e apresentar o maior quilate do seu show que ainda faltava, como se aquele primeiro número não fosse nada, parecia um mamute. Relampejou tremendamente por sobre o miradouro, e um raio caíu atingindo Juliasse Makowo, que morreu imediatamente, sem que no entanto tivesse caído, morreu de pé, e quando os seus companheiros tentaram levantar o corpo não conseguiram, começou a chover em catadupas, afastando as pessoas que enchiam por completo o lugar da festa, os membros da banda de Juliasse Makowo abandonaram o cadáver com medo dos relâmpagos que se sucediam, e do graniso que fustigava o espaço onde já tinha começado a grande celebração dos chopi, chovia em toda a vila, mas o graniso só caía no miradouro, martelando em particular a cabeça de Juliasse Makowo que continuava estranhamente de pé. Há grandes correrias das pessoas que buscam abrigo, as tendas esticadas aqui e alí não suportam as fortes bâtegas da chuva que chove à cântaros, elas cedem perante as torrentes, em pouco tempo a vila de Quissico ficou um rio, e os carros que estavam ali estacionados transformaram-se em barcos flutuando à deriva, sendo todos levados ribanceira abaixo, até à zona das Lagoas, onde se viam enormes fogueiras desafiando a chuva que caía cada vez com maior intensidade, sem o menor sinal de que aquela hecatombe podia desvanecer nos próximos momentos. As pessoas subiram para os tectos das casas, e paradoxalmente, no tecto das casas eles não molhavam, ficavam ali a assistir ao dilúvio, que vinha para destruir o histórico vilarejo, aquilo que são as ruas metamorfoseou-se, no seu lugar nasceram braços de um rio que rasgava Quissico à meio, várias mulheres foram vistas a nadar, nuas, umas de costas, outras de bruços, outras de livre, deixando ver abundantes trazeiros que atiçavam a cobiça dos homens pendurados nos tectos bebendo aguardente de massala, ninguém sabe explicar como é que aquela bebida foi-lhes parar às mãos, mas todos eles bebiam sem se molhar com a chuva que vinha do céu em liberdade, petiscavam carne de porco assada na brasa e temperada com n´tona, todos eles pareciam alegres, riam-se às gargalhadas, divertindo-se com o espectáculo das mulheres que nadavam nuas pelos braços do rio que rasgava Quissico, mas tudo aquilo durou pouco tempo, porque logo a seguir todos estavam nos seus anteriores lugares, a chuva tinha parado, os carros voltaram aos sítios onde estavam estacionados e Juliasse Makokowo retirava-se tranquilamente, petulante, para os camarotes.
Txifuliane tremeu depois de voltar novamente à lucidez, sem saber o que fazer. O filho, em silêncio, para o arrepio da mãe, mexia a cabecinha em resposta às músicas que vinham das orquestras que passaram a desfilar num espectáculo retumbante, cada grupo tocava algo diferente, algo mais aliciante do que aquilo que se ouviu anteriormente, aqueles que bebiam tinham que atravessar a estrada várias vezes para comprar as bebidas do outro lado e ninguém conseguia manter-se nas barracas porque não queriam perder um evento único, que trouxe equipas de televisão de várias partes do mundo, quatro helicópeteros sobrevoavam silenciosamente o espaço, com antenas pendidas para captar o show em todos os ângulos. O miradouro está compactado, acolhe milhares de assistentes que deliram, cada vez há mais gente subindo às palmeiras, levando consigo garrafas ou latas de bebida, que é consumida para aclarar as mentes e deixar que o ritmo penetre livremente nas profundezas da alma, os timbileiros estão em êxtase, desfraldam gritos de guerra que são repetidos pela plateia ávida.
Estou no acto do lançamento do meu primeiro livro, em 2001, na cidade de Inhambane. O título é esse mesmo: Inhambane Sem o Badalo, uma homenagem que presto à figuras que estarão por todo o sempre ligadas aos cheiros desta cidade elevada - pela minha imaginação nas paródias - ao lugar mais sossegado do Mundo. É uma colectânea de crónias recebida com estupefação pelos cépticos, que já me consideravam irreversivelmente morto. Será também a obra que me fez sentir um pequeno deus, por isso autorizado a enfiar as mãos nos bolsos e assobiar livremente pelas ruas e pelos atalhos e pelas sinagogas, levantando as asas como o pavão mais antigo do planeta, passeando em paz.
No evento, de entre os demais ilustres, e indivíduos do vulgo, está um homem que vai ser lembrado em todos os momentos pela sua audácia na baliza. Chama-se Mbata, um guarda-redes notabilizado no Clube Arrera Kwara, e depois celebrado em toda a província de Inhambane por parecer um gato na sua área, ou uma aranha, extravazando classe. Exuberância. Plenitude.
Mbata ficava encostado ao poste – esquerdo ou direito - de braços cruzados, pernas em tesoura, quando o jogo fosse despejado – ou pelo corredor central, ou pelas “asas” - para a baliza contrária, como se estivesse à espera serenamente de alguém, ou lucubrando nas suas memórias. Mas quando o perigo corresse na sua direcção, ele dançava, media os ângulos com as mãos, gritava para os defesas seus colegas, por vezes saía da área e logo a seguir voltava a correr para o seu reduto, dando costas à bola, deixando, por assim dizer, tudo o resto por conta dos sensores implantados no corpo e na mente. Erriquietos.
Os pontas-de-lança, ou os médios ou médios-avançados, podiam desferir mortíferos remates enquanto Mbata retornava à baliza naquele espectáculo incrível, e este, assim mesmo, de costas para o jogo, como um gato celestial, rodopiava no ar, e impedia a bola de continuar na sua fatal trajectória. Tinha manápulas mágicas. Buscava o esférico no ar num gesto de quem colhe, como um maroto inesperado, uma laranja no ramo mais alto da árvore. E é isto, e muito mais, que vai tornar Mbata, um guarda-redes idolatrado e festejado em toda província de Inhambane, no seu tempo de glória.
Hoje, em 2001, vejo um homem movendo-se no corredor da sala onde decorre o lançamento do meu livro. É extraordinariamente alto, cabelo farto, completamente esbranquiçado, parecendo de prata. Procura com o olhar uma cadeira livre para se sentar e parece não haver cadeira desocupada. A sala está absolutamente cheia porque o meu nome ribomba por estas bandas, e reboa até aos bairros mais longíquos onde também serei festejado como Mbata, por todas as inconguências que andei a cometer por aqui, e pela música de blues que vou cantar, sem saber nada de blues, nem nada sobre a música.
O homem não encontra lugar para se acomodar. Orbita sobre o seu próprio eixo como se estivesse num dia de jogo de estrelas e, resignado como nunca esteve no campo de futebol, recua e encosta-se na porta da entrada, na mesma posição habitual de quando brilhava como um astro, desde os meados da década de sessenta, até princípios da década de oitenta: braços cruzados e pernas em tesoura. Olhei para ele e reconheci-o logo, é o Mbata, no mesmo estilo que recusa desvanecer apesar da idade. Nesse momento falava o governador de Inhambane, bajulando-me, e eu estou pouco me lixando para as bajulações. E o “boss” teve que interromper o discurso quando viu um homem que se destacava pela sua peculiaridade física, encostado à porta de braços cruzados e pernas em tesoura. É o Mbata, agora convidado por “Sua Excia” a ocupar a única cadeira desocupada que se dispunha na fila reservada aos “responsáveis”.
Lá vem ele pelo corredor. Estiloso. Tranquilo. Sereno. Transcendental. Faz uma vénia ao governador, enclina-se e pega pela mão esquerda o encosto da cadeira, antes de se sentar. É uma pessoa invulgar. Virou-se para a plateia e saudou-a vocalizando palavras que ainda hoje me ressoam na alma: “é uma grande honra ser servido um lugar por Sua Excia senhor Governador. Afinal continuo a ser glorificado como nos tempos áureos da minha carreira futebolística. Obrigado, Excia!”
Houve uma forte salva de palmas. E antes de se sentar, disse mais: “é uma uma grande honra e privilégio, participar no lançamento do livro do Alexandre, um personagem que fala sempre de mim, como se eu fosse uma vedeta, quando na verdade a vedeta é ele”!
Houve mais aplausos, com as pessoas de pé, incluindo o Governador!
Agora que descobriu o silêncio da minha casa, não quer sair mais daqui, vem todos dias. É como se este espaço fosse dela também. Thsala Mahenhane diz que o meu quintal, vedado de plantas, sem muro de pedra, é uma galeria, ao mesmo tempo um atelier. Se estes pássaros todos, chegam e poisam e cantam e fazem sexo em liberdade, “porquê que eu também não posso gozar a liberdade neste lugar?”.
Thsala gosta de beber, “as pessoas dizem que sou uma pipa, mas tu nunca me disseste isso”. Na verdade jamais a considerei pipa alguma. Respeito-a, até porque cada um de nós tem o direito de traçar os limites dos seus passos, mesmo que seja em desobediência ao Deus de Jacob e de David e de Abrahama. E esta mulher quer cantar, depois de um copo. Então, quem convoca a música nestas circunstâncias, tem o coração que passa a vida a repetir versos de amor.
A nossa relação começou num dia inesperado. Num dia como os outros, com o tempo a tomar conta de mim, dando-me alfazemas e orquídeas. De graça. Sentia uma paz extraordinária dentro de mim, sem saber o que isso significava, até à altura em que uma mulher entra de rompante, visivelmente aflita e diz: “desculpa, peço casa de banho”.
Passado um tempo considerável, comecei a achar estranho que a “minha hóspede” não estivesse despachada, então resolvi abeirar-me da porta da “toilett”.
- Está tudo bem com a senhora?
- Desculpa, tenho uma preocupação, mas só posso apresentá-la à uma mulher.
- Está certo, espere só um minuto.
Fui a correr a uma farmácia que fica aqui perto e, passado pouco tempo, trouxe uma embalagem de pensos higiénicos. Fui de novo à porta da casa de banho e introduzi a mão.
- Isto resolve o problema?
- Muito obrigada.
Voltei à minha varanda sem preocupação, feliz por ter ajudado uma desconhecida. Porém, o mais surpreendente é que eu nunca havia comprado pensos higiénicos em toda a minha vida, nem para as minhas ex-esposas, mas a vida é essa caixinha de surpresas!
- Peço imensas desculpas, ao mesmo tempo que agradeço ao senhor pela compreensão. Eu não devia ter feito isto. Desculpa.
- Você não fez nada demais, e, por favor, não me trate por senhor, pode me chamar Bitonga Blu.
- Obrigada, eu chamo-me Thsala. Thsala Mahenhane.
A mulher estava aliviada. Mais do que isso, apaixonada pelo meu espaço.
- Este lugar é tão lindo!
Lançou o olhar por todo o perímetro da casa, e parecia completamente conquistada. Viu a minha guitarra, em repouso num dos cantos da varanda, e perguntou se eu era músico.
- Não sou propriamente um músico, toco algumas coisas. Gosto de cantar.
- Eu também gosto de cantar.
Pediu-me que a acompanhasse no tema da Mingas, Mweti, e o que veio depois, a partir daí, foi a paródia em si, a loucura. Já tinhamos uma garrafa de Gin Gordon à mesa, a alimentar as metáforas, sem que eu soubesse que a presença desta mulher que aparece na minha casa em período menstrual, vinha mudar a minha forma de estar. Ela não mudou meu caminho, mas mudou a mim.
Armando Guebuza chegou ao recinto da B.O para ser ouvido por um juiz que tinha toda a liberdade para gozar com o antigo presidente. Até certo ponto, parecia fazê-lo, quando se dirigiu por exemplo ao declarante e perguntou: percebeu a pergunta? E Guebuza respondeu que sim, como respondem os meninos da escola primária. Mas não foi só isso, nunca ninguém imaginou que o ex-presidente podesse levantar-se em respeito, perante um jovem zambeziano com educação irreverente dos beirenses, capaz de pisar um búfalo ferido.
Guebuza foi o último a levantar-se quando o juiz entrou na sala de audiências. A princípio parecia relutante em levantar-se, mas logo a sua consciência disse-lhe que o homem que se fazia à sala, na verdade era uma pessoa vulgar, mas investida de poderes invulgares, e Armando Guebuza sabe disso, por isso levantou-se. A contragosto. E só voltou a sentar-se quando Efigénio Baptista deu ordens para tal.
Armando Guebuza já não é um homem livre. O aparato de segurança que lhe acompanhou ao recinto da B.O. testemunha isso. Fora de ser uma manifestação de poder, aqueles homens todos que se amuralham à volta do ex-presidente, traduzem o medo de uma pessoa que parece estar a ficar sem chão. Guebuza perdeu a confiança de si próprio.
Nunca ninguém imaginou Armando Guebuza - por tudo o que nos mostrou ao longo dos anos - num lugar onde não pode fazer perguntas. Guebuza nunca foi interrompido nas suas intervenções de Estado, mas agora, Sheila Marrengula faz isso a um ídolo que dominava o país e as pessoas, sem que ninguém o impedisse. Porém, ele agora pode estar a sentir o efeito de boomerang.
Quando desceu do seu luxuoso Land Cruiser, no recinto da B.O. onde decorre o julgamento das “Dívidas ocultas”, mais parecia um condenado levado a execução numa câmara de gás. Todos queriam filmá-lo, todos desejavam ardentemente fotografá-lo, e fizeram-no profusamente como se aquele fosse o último momento de Guebuza. No fundo já não é o mesmo “Guebas”, nunca mais será. As sirenes que tocavam para anunciar a sua passagem, agora estão mudas, só ele é que as ouve no isolamento do exame da sua consciência.
Armando Guebuza era um homem obstinado, que passeava o seu porte nos palanques do país e do mundo. Desbravou matagais, isso é verdade. Era um dirigente com verve, mas todo esse edifício que sonhou e de alguma forma realizou, está agora a desabar sobre ele, já não é ele quem manda. Ele está a atravessar o deserto, e alguém já dizia, “enquanto estiveres a atravessar o inferno, não pára de andar”. É por isso que o ex-presidente continua a dar cartas. Até onde ele puder.
Muitos africanos sensatos não aceitam ouvir estas palavras rústicas, porém límpidas no seu interior, ditas por Vladmir Putin. Mas ele pode ter dito a verdade e todos nós sabemos disso. Ainda no último domingo (6.2.2022), a apresentadora da Televisão Miramar, Adelaide Isabel, perguntou a Joaquim Chissano, a propósito do “3 de Fevereiro”, se era este Moçambique que eles uma vez sonharam na luta pela Independência. Chissano teve medo de dizer que não, não é este o Moçambique pelo qual lutaram. Desfiou a mesma ladainha já conhecida, numa clara fuga para frente, e sso significa que não tem coragem de falar a verdade, e quem não tem coragem de falar dos seus fracassos, não tem esperança. Então, Putin ganha razão.
Há um homem que vive aqui perto da minha casa, um maconde antigo combatente, que me parece ser uma pessoa derrotada. Abdicou de todas as armas que tinha, inclusive esqueceu-se das canções que alimentavam a vontade de vencer nas marchas infindáveis, durante anos e anos ao encontro da luz. Uma luz que agora transmite a ideia de que está a apagar-se. Quer dizer, um indivíduo que se esquece das canções que lhe levaram à vitória, então é alguém sem esperança. E tudo o que terá feito por uma causa, está a ser desfigurado pelo tempo e pela ganância.
Vladmir Putin ainda disse que os africanos odeiam-se uns aos outros. Mas nós não precisamos de ir longe para dar razão, uma vez mais, ao presidente Russo. Se não nos odiássemos uns aos outros, entre irmãos, Moçambique estaria a brilhar no ponto mais alto das montanhas, contrariamente ao estado actual em que vivemos. Cobertos de cinza. Aliás, o facto de as estruturas da Saúde recomendarem a lavagem das mãos com cinza, como alternativa ao sabão, significa que somos desprezíveis. Não somos pessoas. Uma pessoa civilizada não lava as mãos com cinza.
Até as mulheres! Pensam que não são bonitas com o cabelo natural que Deus lhes deu, querem ser como as brancas com cabelo liso, entrando muitas vezes no ridículo de colocar perucas loiras na cabeça, e os brancos fartam-se de se rir de nós, ou seja, somos os bombos da festa deles. Outros ainda, nossos irmãos, fugiram daqui por terem percebido que África não tem esperança. Demandaram outras terras onde emana leite e mel, como se na nossa terra não houvesse leite e mel.
Quando Adelaide Isabel anunciou Joaquim Chissano para a sua entrevista, não esperei muitas coisas do vencedor do prémio Mo Ibraimo, não porque não as tenha. Sabia que ia contar as mesmas histórias que vem contando desde sempre. E na verdade foi o que aconteceu. Chissano diz aquilo que lhe convem dizer, da maneira que ele acha melhor, mas isso não é espantoso. Comportou-se como uma pessoa que não tem esperança, e isso é doloroso quando o que nós queremos, são lídres que nos convoquem à mudança. Chissano parece ter medo das palavras e quem tem medo das palavras não tem esperança.
O que aumenta a dor das nossas feridas, nesta falta de esperança, é que os próprios músicos já não nos aglutinam para a liberdade. Os que nos convocavam morreram todos. E, sendo assim, nós também vamos cair daqui a pouco, sem que nunca mais tivéssemos esperança, depois de eles partirem.
Cheguei à casa de madrugada, encharcado de bebida. Passei toda a noite entregue a uma intensa borracheira, sabendo muito bem que alguém me espera com amor e dor, mas nunca me importei com isso. Tornei-me um alcoólatra, um posto que fui atingindo paulatinamente, copo a copo, até agora que já não sou capaz de voltar ao ponto em que era feliz nos braços de uma mulher que me tirou da lixeira.
Entro de mansinho, mesmo estando no estado em que estava. Abri a porta que a minha companheira nunca tranca antes de eu voltar, ela está cansada de se levantar de dentro da noite e muitas vezes de dentro da madrugada, para atender a um farrapo que sou. Até porque isso dá-me algum alívio, pois tenho consciência de que é muito aborrecido acordar alguém em determinadas horas, ainda por cima em circunstâncias de grande irresponsabilidade e falta de respeito. E grande falta de consideração por um anjo do qual recuso protecção.
Mas eu não páro de beber, mesmo sabendo que depois disso, já não estarei em condições de aquecer o coração de alguém que sempre cuidou da minha vida. Estou pouco me lixando, deixa-me beber, pois agora abdiquei de mim, sou uma pipa. Só assim, em estado etílico, é que consigo repetir as músicas que sempre me sustentaram a alma, e só assim é que também os dias tornam-se céleres, pois de contrário, a vida será um sufoco.
Então, como dizia, chego de mansinho mesmo estando no etado em que estou. Abro a porta e apanho um grande susto. A minha mulher, contrariamente a todos os outros dias em que recolhe no nosso quarto onde não dorme enquanto não chego, está acordada, deitada no sofá ouvindo Mountain Shade, de Sibongile Khumalo. Na mesinha de centro tem a bíblia aberta. Olhou para mim com os olhos marejados, sem dizer nada. E eu não sei o que senti naquele momento.
Nhathwsa é uma mulher muito linda, imerecedora de toda esta bosta que sou, mas ela ama ardentemente esta bosta. É por isso que agora aproxima-se, sem se importar com o cheiro de álcool e tabaco que exalo e diz, senta-te, amor, vou aquecer uma soupinha. E eu respondi, estou sem apetite! Mesmo assim ela foi à cozinha e pouco tempo depois voltou com a soupa fumigante e pediu-me: amor, come um pouco, vai-te fazer bem.
Enquanto ela alimentava-me tipo bebé, o MP3 liberta Song for you, de Ray Charles, e ela perguntou-me assim, estás a ouvir essa música? Na verdade o que eu mais queria naquele momento era que não ouvisse aquele tema profundo que nós os dois gostamos de escutar e sentir, abraçados um ao outro, porque já não mereço nada da minha mulher, a não ser o desprezo total.
Depois de ter vivido grande parte da vida acima da atmosfera, gozando do mel e leite, o diabo tratou de trazê-lo cá a baixo onde teria o fel como alimento. Tinha um carro da marca Volkswagem station, num tempo em que poucos da sua raça negra, ousariam adquirir uma viatura pessoal. Fazia parte, ainda, da sua colecção de bens, uma moto de 250 cm3 com dois tubos de escape. Era um janota que se destacava entre os seus, mas tudo isso, sem que ele próprio desse conta, escorregou das mãos e passou a levar uma vida de rastejante.
Voltou para Inhambane depois de longos anos, andando de província em província como oficial de primeira classe do Estado colonial português. Era respeitado, não apenas pela sua formação académica, mas também porque detinha uma postura de gentlman com vasta cultura, possuía fina educação. Nunca vociferava, mesmo quando perdesse as estribeiras. Mas tudo isso diluiu-se a partir de um determinado momento.
Ao pisar a sua terra, de regresso, depois de mais de quarenta anos, o choque que teve é que ninguém se recordava dele. Ninguém o conhecia. A casa onde nasceu estava abandonada, as paredes ruiaram, e o tecto esparramou-se sobre elas. Não havia vizinhos próximos quando ele partiu, agora tem casas novas e modernas à volta, cujos donos são desconhecidos. Estranhos. Como é estranha toda a cidade, para um homem que já não tem muito a oferecer. Perdeu tudo o que a vida lhe havia provido.
Agora, depois de perceber que não terá nenhum ponto por onde recomeçar, ou a partir do qual irá continuar o sofrimento, a única esperança que parece existir, reside no recolhimento à ruína deixada pelos pais, onde vai conviver com a bicharada. Ganhou a consciência de que o sol para ele jamais irá renascer, para lhe lembrar a música que gostava de ouvir no reprodutor do seu carro. Mesmo assim, sabendo que do escuro não vai sair mais, não tem medo. Olha para os chacais de frente.
Nas manhãs levantava-se e vai à gandaia, de onde traz, quase sempre, algo para comer e recolhe na sua pequena cabana feita de papelão no meio dos escombros. Não pede nada a ninguém. De vez em quando anda pelas ruas da cidade sem que ninguém o cumprimente, sem que ninguém olhe para ele de forma particular, ou se alguém o olha, fá-lo com desdém. Porém, não se importa com as pessoas, o que ele quer é a liberdade de poder caminhar na memória do tempo em que vivia na lua.
Surpreendentemente, enquanto eu esperava um amigo meu na esplanada do Hotel Inhambane, na véspera do Natal, vejo o homem andrajoso vindo na minha direcção, com um ramo de buganvília na mão. Pensei que vinha pedir-me qualquer coisa para comer, mas não! Chegou perto de mim, estendeu-me o ramo de buganvília sem flores e disse: é teu presente de Natal.
Tremi de medo ao receber o presente, e ele foi-se embora, sem dizer mais nada, depois de me focar com um olhar cheio de esperança.
Todo o sorriso que me é dirigido é como se fosse a aurora em si, não importa de quem vem. A vida só é bela quando há um sorriso a suportá-la. Sem isso, tudo o que formos a fazer tornar-se-á em comida salgada com sal insípido. Será um alimento que abastece apenas o corpo, porém o espírito vai manter-se vazio, deambulando sem sentido por caminhos escuros, onde o que reina serão os pássaros da noite, ou a gargalhada sarcástica das hienas.
Então, em toda a minha vida, jamais havia recebido um sorriso como este, de uma criança acamada no hospital, engessada em todo o corpo, do pescoço aos pés, incluindo os braços que não podem mover-se. Olhei para ela, colocada numa cama ortopédica cheia de sondas, na enfermaria onde há outras crianças de baixa, porém estas, em liberdade apesar da dor. E o que senti por dentro não tem palavras para descrever.
A enfermaria está arejada, mas isso não será suficiente para reconfortar um menino que não pode mexer nenhum membro da sua estrutura, para além da cabeça. A cabeça sozinha não se alegra, não vive. O corpo também, sem a cebeça será uma massa entulhada. E nesta circunstância, as duas partes sofrem pelo amor que as une.
Aproximei-me do miúdo que se mantinha em silêncio, no seio do burburinho provocado pelos companheiros da enfermaria que recebiam visitas. Vi uma senhora que também tomava a mesma direcção que eu, contudo, antes que chegasse perto, encheu-se de lágrimas e teve que recuar. Outras senhoras, vestindo a pele de mãe, choravam de longe sem coragem de avançar até ao pequeno doente. Não suportavam o choque profundo de ver um enfermo de tenra idade com todo o corpo embutido em gesso.
Mas eu tive que reunir todas as forças que tinha e cheguei perto da cama ortopédica que acolhia o petiz, e saudei-o: olá! E ele respondeu, de forma quase inaudível: olá, como está?
Não suportei a forma tão perturbante como a criança reagia à minha saudação, então não contive as lágrimas, mesmo sabendo que não devia manifestar aquele sentimento de comoção. Tremi de medo quando ela sorriu perante a minha fraqueza, como quem diz: este é o outro lado da vida para o qual ninguém está preparado! Ou, por otras palavras, quis lembrar-me que a qualquer momento podemos ser empurrados para os cactos!
Se eu fizesse alguma pergunta a este pequeno paciente, seria uma grande estupidez. Uma crueldade. Por isso mantive-me calado durante o pouco tempo que estive ali a ser fustigado por uma dor que parecia minha também, até chegar a hora de me despedir.
- Já vou, menino, só vinha te saudar.
- Obrigado, tio, quando é que hás-de vir outra vez?
Não respondi. A pergunta era demais. Superava as minhas capacidades de raciocínio.
- Tio, a próxima vez que vieres, traz-me bolachas, por favor.
Passei a noite inteira sem dormir, imaginando uma criança sofrendo, impedida de movimentos. Sonhando em voltar para casa, e entrar novamente em contacto com a natureza, contrariamente a este lugar cercado de paredes brancas, com cheiro forte a remédios.
No dia seguinte comprei um sumo de goiaba, uma pacote de bolachas sortidas e fui ao hospital para ver a criança que amanhã pode vir a ser minha amiga, quem sabe! Sentia-me feliz ao pensar que alguém muito especial estaria à minha espera, ansioso. Então, lá fui, dizendo para dentro de mim: aí vou eu, amigo!
Quando cheguei dirigi-me imediatamente à cama ortopédica, e alí, o menino não estava. Olhei para todos os lados da enfermaria e percebi que as outras crianças choravam, sem dizerem nada, mas eu percebi tudo, antes mesmo que a enfermeira acabada de entrar me dissesse: o teu amigo já não existe!
Eu tinha fé de que este dia chegaria. É o matar de uma sede antiga, na longa espera pela conclusão da ponte que ora me leva à Oeiras, porém sem nada nas mãos, a não ser a ansiedade de sobreavoar o Tejo antes de aterrar e sentir os cheiros jamais inalados. Aliás, trago comigo às costas, no bornal, palavras de verdade e de imaginação, na esperança de ver fortalecido o nó dos nossos anseios.
De Inhambane à Oeiras é um sonho, mas a ponte está pronta, transborda beleza. Até porque todo o valor da nossa amizade está sintetizado no suor do nosso abraço. E eis-me aqui, caminhando por sobre o tabuleiro deitado amorosomente entre o Índico e o Atlântico, com o único propósito de partilhar as minhas emoções com os oirenseses. Talvez não só. Quem sabe!
Nasci numa cidade pequena, em Moçambique, como bem o sabes. Um lugar extraordinário. Único. À primeira vista, quando você chega aqui, sobretudo ao final da tarde, a sensão será de que as pessoas fugiram. As poucas que vai encontrar, também estarão a recolher para as suas casas, deixando as ruas sozinhas. Sem gente nem carros. Nem nada. Quer dizer, o poeta não mentiu: para cá da porta, nada! Para lá da porta, também nada!
Aqui ninguém acorda antes de o sol raiar. Para quê, se tudo está perto, ao alcance da mão! São os pássaros que nos despertam, cantando canções regidas pelo próprio Deus, porque foi Deus quem aspergiu o sossego nesta terra onde eu nasci. Um sossego que alguém, mesmo assim, teima em vitupera-lo.
Inhambane é uma cidade linda, com histórias muitas vezes perturbantes, que eu gostaria de contar aos oeirenses. Aos oeirenses porque Oeiras é cidade gêmea de Inhambane. De onde tentei sair algumas vezes à busca de outro oxigénio, mas logo a seguir percebia que o meu oxigénio estava aqui. Por isso sempre voltei.
Andou por aqui um homem chamado Matangalane Boby, cujas origens podiam estar ligadas à São Tomé, ou Cabo Verde, não sei bem, mas que o tempo levou-o a ser uma espécie de nosso mascote. Morreu como um cão vadio, sem família sem nada. Todavia, nas tertúlias, até hoje, quando o seu nome é evocado, nasce imediatamente um turbilhão de histórias à ele ligadas. Umas verdadeiras, outras inventadas pelo povo.
Tenho falado muito sobre esta figura estranha, e cada vez que isso acontece, fica sempre qualquer coisa por acrescentar. Mas hoje só vim dar um abraço à Oeiras, desejando boas festas de natal e um bom final de ano. E dizer que sinto-me muito feliz por celebrar a vida desta forma, convosco.
Pois é: na verdade não tenho nada para vos dizer. Só queria transmitir os meus cumprimentos à cidade gêmea da minha cidade.
Um abraço profundo, com cheiro à água de côco.
Sei que sou desdenhado em todo o lado mas isso não me importa. Sei também que o meu desfiladeiro alagado de cactos não tem volta, porém ressurjo em cada golpe. Sou um lagarto com escarpas permeáveis, incapazes de me defenderem dos ventos infaustos que me fustigam a alma abandonada na noite de bréu. Cheguei ao ponto em que já não sinto nada, a não ser as espigas de aço que me ardem em todo o dentro dos meus sentimentos profundos.
Ainda ontem vi uma das minhas antigas mulheres a mudar de direcção para não passar perto de mim quando me divisou de longe, então percebi o nível em que estou. Na verdade sei da minha abominação, que já não me dói. Tenho as malas aviadas, cheias de memórias. São elas que me acompanham em forma de músia, em cujo refrão ribomba esse verso cataclítico que diz assim, quando estiveres a atravessar o inferno, não pára de andar. E eu não páro de beber.
Abdiquei das ilusões, recuso-me a sofrer. É por isso que estou em contacto permanente com a morte, na minha esperança cheia de demora. Não temo nada, nem a guilhotina que vai descer em vibração ao encontro da minha carne. Eu sei que depois destas farpas todas que me cercam, triunfarão as harpas. Para gáudio do blues.
Os meus amigos zarparam. Todos. Fugiram do cheiro que exalo das minhas palavras incongruentes. Têm vergonha de mim, por isso ao lhes ser perguntado se me conhecem, respondem que nunca ouviram falar desse indivíduo que sou eu. Virei-me para um deles, num dia de chuva em que, por coincidência estávamos os dois abrigados num alpendre da cidade, e perguntei assim, vocè não me conhece, irmão? Ele disse que não, não me conhece.
Depois de beber quero falar. Cai sobre mim a necessidade irresistível de repetir histórias fascinantes do passado. Quero cantar em surdina as músicas dos meus ídolos, mas ninguém me ouve, e isso aumenta as minhas feridas que não páram de sangrar por dentro. O pior é que já não me permitem a entrada nos bares, nem nos esconderijos imundos onde se bebe aguardente de cana em copos jamais lavados.
Então, toda esta rejeição significa que os meus convivas são os arautos do próprio diabo, o Lúcifer. São eles que me vão acompanhando com todo o rancor à câmara de cianeto, e eu não posso fazer nada, as minhas forças esvairam-se na bebida. Transformaram-me em desperdício. O meu relógio deixou de marcar as horas que sempre foram cruciais para a renovação do amor. Agora é indiferente que seja manhã ou tarde ou noite, vivo abandonado no escuro, sem mais dúvida alguma de que serei executado no próximo pricipício. Mas enquanto a morte não chega, deixa-me beber.