É essa a sensação que me fica. Diferentemente de John Lenon, o rapaz de Liverpool que partiu inesperadamente, deixando os seus companheiros chorando, cada um no ombro do outro, Arão jamais terá o conforto de Hortêncio Langa e Adérito Gomate, cúmplices das músicas cantadas com a esperança de que repercutiriam em cada coração de todos aqueles que os esperavam, e acreditavam neles. Já tinha perdido o conforto de João Cabaço, o grande músico que, depois de longas caminhadas, e antes da sua morte, já se tinha afastado do grupo.
Seria injusto, porém, continuar a dizer que Arão Lithsuri não tem a quem chorar, pois seria uma injúria ao Childo e ao Celso Paco, pedras firmes da banda Alambique, mas foi com Hortêncio Langa e João Cabaço, que todas as marés enquinociais invadiram a terra, e que até hoje, com a maré parcialmente vaza, a areia continua molhada por dentro, lembrando um conjunto que aglutinava três nomes.
Seja como for, Arão Lithsuri, autor de Nhina dzame, belíssima música de um jazz por vezes subtil, outras vezes explícito, não será propriamente um homem taciturno, depois da razia que lhe faz tremer nas bases, mas ele precisa de criar outras fortalezas para sobreviver e defender-se do vazio, Arão nunca existirá sem as claves, e na vida de um músico o vazio não existe.
Nunca falei com ele para saber o que vai acontecer daqui para frente, depois de ser despido daquilo que lhe dava sentido à vida. A vida para Arão Lithsuri não será apenas a música, mas o aconchego daqueles que lhe ajudavam a dar valor à manifestação espiritual que tem o condão de aglutir povos inteiros. É esse o dilema subjacente, advindo da partida sem volta dos seus amigos. Então, urge remover as cinzas, e buscar dentro delas a força da esperança e do futuro.
É isso que se espera de Arão: a capacidade de superar a dor, sem esperar o agora improvável sinal do Adérito Gomate, o machuabo estiloso sentado ao piano com dedos finos, calçando “Botas a Beatles” bem engraxadas. Também não haverá mais o sinal da guitarra de Hortêncio Langa, que parecia crescer em cada espectáculo, embora fosse já um músico maduro. Arão Lithsuri também nunca parou de crescer, por isso não faz sentido olhar para trás. Só se for para buscar as melhores lembranças, que vai precisar, com certeza, para as novas batalhas.
Por enquanto vai um abraço profundo.
A ideia inicial era levar as pessoas ao estravazamento das emoções. Havia uma necessidade urgente de valorizar, não só um lugar histórico-cultural como é a Praia do Tofo, por tudo que representa no tecido social dos manhambanas, mas era importante dar oportunidade à gente daqui, ansiosa de se juntar e festejar a sua terra ao som da música ao vivo, em grandes espectáculos. Isso conseguiu-se ao longo de várias edições que, mesmo assim, podem não ter deixado boas recordações.
Qualquer festival tem como base fundamental - para que ele triunfe - a organização meticulosa, criando condições no sentido de os utentes do mesmo sintirem-se confortáveis e seguros. E nos eventos passados pode ter havido falhas que precisam ser corrijidas, se o objectivo é estarmos em patamares de referência, não só a nível da cidade e do País inteiro, mas sobretudo ao nível do Mundo, onde o Festival do Tofo já é por demais mencionado e esperado todos os anos.
Há várias perguntas que se podem colocar, se quisermos qualidade, e se também cobiçarmos ser uma boa referência para o turismo em Inhambane: como é que estamos a nível dos acessos ao local onde o grande palco vai ser montado? Como é que é feito o controlo das pessoas no recinto do show de modo a que haja segurança? Mas mais do que estes aspectos, é necessário pensar nas crianças que provavelmente não terão idade de serem admitidas num evento desta magnitude que se prolonga noite a dentro até madrugada, ou mesmo até ao raiar do sol.
Até que ponto estão protegidas estas crianças? Quem as controla? É muito preocupante ainda ao chegarmos à conclusão de que as bebidas alcoólica são um grande mal para esta faixa etária, e já em estado de embriaguês, o descontrolo é total de tal forma que vai facilita a acção dos oportunistas, que podem abusar dessas mesmas crianças. Então, precisamos agir urgentemente em defesa dos nossos meninos e meninos, colocando restrições rígidas.
Infelizmente há pessoas que já não vão ao Festival do Tofo, por má memória. É por isso que nesta edição, tudo deverá ser feito para que se melhore a questão de segurança nos pontos cruciais, a partir do cruzamento de Babalaza, para que todos se sintam bem e com vontade – depois de tudo terminar – de voltar na próxima edição.
Inhambane é esse pedaço de terra peculiar. Um alfobre inesgotável, que acolheu ao longo do tempo, figuras inexcedíveis, as quais funcionaram, e outras ainda funcionam, como fundamentos de uma cidade elegida para ser pacata. São esses actores que o Festival do Tofo, nesta edição - segundio informações que temos - quer resgatar e homenagear em público, para que a história não se esqueça deles. São nomes fortes, inculcados em pessoas humildes e lúcidas, e outras, como Matangalane Boby, Bernabé, Bernardo Wonani, Fernando Guipatwane, que poderáo ter sido tratados como dementes. Mas se calhar nós é que não entediamos a grandeza da sua loucura. E ainda bem que o Festibval do Tofo vai nos trazer essas memórias.
Pretende-se com tudo isto, transformar o Festival do Tofo em verdadeiro escaparate, onde os amantes da literartura e das artes plásticas, terão um espaço e um tempo para as lucubrações e vivências de autores daqui desta terra. Porém, Inhambane não é uma terra fechada, ela escancara-se para o mundo através de uma culinária particular, a ser exibida através de mãos esmeradas de mulheres bitongas.
É isto e muito mais, que se propõe, levando a que o Festival do Tofo vá para além da música. Bem hajam os organizadores.
Bebe-se em todo o lado, a toda a hora, por gente de todas as idades, homens e mulheres das camadas desfavorecidas. É a loucura em si que está a levar jovens e adolescentes, ao abismo sem volta. Os velhos também estão nessa senda, vergaram ante um veneno chamado xivothxongo, e já existem queixas vindas das mulheres, os homens estão a perder erecção por causa dessa porcaria. Há casos de internamentos nos hospitais, com fortes sinais de esquizofrenia, e parece não haver capacidade para travar o caos.
Muitos rostos, outrora frescos e saudáveis, hoje estão tumefatos, flagelados pelo xivithxongo. São miúdos que logo às primeiras horas da manhã, dirigem-se às barracas cheios de babalaza, com o corpo a tremer de alto a baixo, sem vontade comer. Eles pensam que, bebendo mais uma, restabelecem o metabolismo, enganam-se. Cada maldita garrafinha que consomem, é um degrau que descem para o precipício, e nunca páram de se esfrangalhar porque estão viciados, e o vício de xivothxongo é imediato.
Muitos deles não bebem água, se bebem, é muito pouco. Ignoram que a bebida seca desidracta facilmente. É por isso que, no lugar de tirarem a babalaza com muita água e chá com açúcar, tomam mais pinga para voltarem a esborrachar-se e apodrecerem pouco a pouco. Aliás, grande número de jovens e adolescentes, e velhos também que alinham com os putos, na verdade já estão obsoletos, nem força para estarem em cima de uma mulher têm.
Houve tempos em que a bebida mais consumida aqui na cidade de Inhambane, era a sura e um pouco a aguerdente de caju ou citrinos ou ainda cana-de-açucar, e os danos não eram tão fulminantes. Também havia petisco de marisco, o que contribuia para minimizar os prejuízos no corpo. Hoje, não! O que triunfa é a mixórdia do xiviothxongo, com todas as consequências nefastas que ela acarreta.
Xivithxongo é um veneno, não nos cansaremos de dizer isso, di-lo-emos até que amanheça, para ver se alguém nos ouve e toma medidas que retirem esse perigo para a saúde, dos lugares onde é vendido com o fim de destruir as pessoas. Não se difere muito de uma droga pesada do tipo heroína e outras drogas sintéticas que incluem misturas de canabis com diesel. Então, as instituições do Estado devem mover-se no sentido de proteger a juventude e os velhos que nos dão a impressão de desespero e frustração.
O piior é que as crianças entraram na carruagem, repetem o refrão dos mais velhos que sorriem com os lábios queimados. Elas – as crianças - bebem também essa poção de morte e sentem-se adultos, sem terem a noção de que estão a deslizar para o buraco onde serão recebidos por espigas de aço. As farmácias, por outro lado, estão a fazer dinheiro com a venda de estimulantes sexuais para os consumidores de xivothxongo, que estão a minguar todos os dias, mas há muitos outros que, mesmo com estimulantes, não irão fazer nada porque não se alimentam. E existem outros ainda, que pura e simplesmente abdicaram das mulheres. Mulher para eles é o xivotxongo.
Onde se bebe xivotxongo não há barulho, não há grandes vozearias como nos bares de cerveja. O silêncio é provocado pela falta de energia no corpo dilacerado diariamente, sem que o Estado faça algo para proteger as crianças e os jovens, cujo futuro parece comandado pelo xivotxongo.
**Bebida alcoólica – seca, vendida nos mercados e barracas e lojas, em pequenas garrafas de vidro ou de plástico, cuja agressividade não lembra o diabo.
Já ninguém pergunta, “quem é aquele velho com cabelos de prata?” Ele próprio, o Chico, descomplexou-se. Também já não pergunta,”onde é que fica o mercado?”. Caminha pelas ruas pacatas da cidade como se fosse daqui. Saúda as pessoas em bitonga, língua que nunca antes sonhara, nem os seus antepassados. E para decifrar todas as parábolas, agora fala em voz baixa, aos poucos amigos, que a sua vontade é ficar aqui. Eternamente.
Está sempre cá. Volta e meia vai, depois torna a voltar, como as águas do mar, que enchem e vazam num ciclo interminável. Mas a “Terra da boa gente”, lugar escolhido pelo “Estúdio Bom dia” para a comemoração do 25 de Setembro, dia das Forças Armadas de Moçambique (FADM), parece ser o último lugar do autor de “Sineta”, um tema musical suave e profundo, que só chegou para exaltar o amor e a lealdade. É por isso que Chico estará cá, outra vez, como sempre.
Desta vez não vem sòzinho. O “Estúdio Bom dia” enloqueceu. Traz uma panóplia de grandes músicos que virão juntar-se aos daqui e fazerem uma festa imprevisível em termos de emoções. Tudo indica que haverá um derramento. Do próprio coração. Há uma grande espectativa, até porque reside neste movimento o desconhecido. Há bandas e músicos que o povo daqui nunca viu tocar, então será uma oportunidade para experimentar outros sentimentos.
Inhambane tem sede permanente destes eventos, e ainda bem que o Centro Cultural Machavenga, escancarado para um lago com esse nome (Machavenga), existe. Como forma de dar oportunidade a outras sensibilidades. É uma outra maneira, a criação deste lugar projectado por Filimone Mabjaia, de desmentir que o turismo na cidade de Inhambane são só as praias. A lagoa de Machavenga tem esse condão. De aglutinar as metáforas e torná-las reais.
Chico António anda em Inhambane há aproximadamente dois anos. Trouceram-no a estas terras para um projecto que está sendo cumprido sem pressa, ou seja, foi levado aos estúdios “Bom dia” para gravar um disco que irá sair a seu devido tempo, quando estiver maduro. É assim que, desde o primeiro dia, tem feito um Up and down (Maputo-Inhambane), num processo que vai entranhando os temperos do CD, sob direcção de Roland, um austríaco com tendências profundas de rock-blues, mas que as circunstâncias da vida e da música levaram-no a trabalhar noutras coisas. E tem feito isso com pragmatisco.
É isso: Chico tem sempre uma luz fora do túnel, é por isso que jamais desvaneceu. Desde que entrou para a estrada, nunca parou de andar. “Tenho tropeçado muitas vezes, mas não aceito ser vencido, embora venha perdendo muitas batalhas. E para te mostrar a minha fé e teimosia, estou aqui de novo, para celebrar o 25 de Sertembro com os manhambanas. Isso significa que estou vivo”. E para mostrar essa vitalidade, esteve a pouco tempo na homenagem ao Guita Jr e Momed Cadir. No Centro Cultural Machavenga.
Agora só nos resta esperar. Por mais um banho de música ao vivo, nos dias 24 e 25 de Setembro. Com Chico António e outros grandes músicos como, Stewart Sukuma, Banda Hodi, Solly Not Solly, Mahu Mucamisa, Granmah, Afro Michael, Skhem Khem, Juliana de Sousa, Afro Moments,, Banda Elia, Ubanthu Wathu, Ivo Maia, Timbila Groove e Banda Nandza, Silvino e Banda Aventuras, João Marrima, Mozquito, Sixtogale, Vintani Nafassi, e muitas surpresas.
Renato Caldeira, um dos jornalistas desportivos mais fervorosos e competentes da nossa história, publicou em 1994, no jornal “Desafio”, uma reportagem sobre a transferência de Chiquinho Conde, de Moçambique para Portugal, e chamou um emocionante título para o texto, que fez escorrer o coração: “Hambanine m´fana!” (Adeus rapaz!). Tratava-se – a partida desse irreverente beirense - do abrir tardio da página de um livro que ficou fechado cerca de duas décadas, desde que a Independência de Moçambique chegou, e impediu que muitos jogadores do nosso país fossem brilhar em grandes estádios do mundo. Onde a glória lhes esperava. Em vão.
Mas Chiquinho batia as asas numa altura em que o nosso futebol parecia estar a apresentar em palco, os últimos números de um espectáculo corporizado por grandes actores, nascidos para jogar no cimo da montanha, porque depois as luzes começaram a ter falta de néon. O Estádio da Machava, em si mesmo, foi perdendo a aura da grande catedral que era, pois já escasseavam futebolistas da jaez daqueles que tinham “pendurado as botas” por força irrecusável da idade. Então teve início o declínio, que dá a sensação de estar a prolongar-se até aos dias de hoje.
Jamais foram necessários os espectáculos de música nos campos para a convocação das massas. Não serão os paraquediastas o centro das atenções, esses eram lançados em agradecimento aos briosos jogadores e ao público que invadia o vale do Infulene aos magotes, na ânsia e na certeza de que seria brindado por um jogo da primeira linha. Não eram esses condimentos que arrastavam os sedentos, era o próprio futebol. Porém, hoje, o chamariz de cartaz para o Estádio do Zimpeto, é a Liloca e suas bailarinas. Isso signifia que estamos a descer por um carreiro íngreme.
Antes do jogo do Black Bulls, frente ao Petro Atlético de Luanda, os dirigentes do clube local vieram a terreiro aliciar as pessoas, prometendo surpresas – que seriam do tipo Liloca e outras - no Zimpeto. Isto deixa claro que eles sabiam que a equipa por si só, não teria força mobilizadora, ninguém vai acreditar nela. No tempo que antecedeu o Chiquinho Conde e no tempo dele também, quem aliciava era a qualidade do futebo apresentado. Pena é que alguém entendeu que esses jogadores de quem temos saudades, deviam ser enclausurados e grilhetados.
Quando chegou aqui o Victor Bondarenko, disse – numa entrevista ao Homero Lobo, no jornal “Desafio” – que queria fazer do Matchedje, um conjunto de elite, e que com este conjunto chegaria longe. Homero não acreditou no que Bondarenko dizia, mas não demorou muito e o russo levou a equipa às meias finais do “Africano de Clubes”. Estávamos numa época de ouro. Se calhar no auge. Os jogadores eram escolhidos a dedo e colocados nos escaparates onde superavam todas as expectativas.
Será necessária uma enciclopédia para incorporar todos aqueles jogadores de fina estirpe, e falar da história de cada um, apesar de não lhes ter sido permitido o voo para outras terras. Fecharam-lhes o espaço. Cortaram-lhes as asas, como ao belo Mugubani do Salimo Mohamed. Mesmo assim, os seus nomes vão ressoar para sempre na memória do futebol moçambicano. Lembrar-nos-emos das tardes e noites inolvidáveis no Estádio da Machava, onde os adolescentes e adultos que não tinha dinheiro para aceder ao recinto de jogos, penduravam-se nas torres de electricidade. Ainda havia uma bancada para os “sócios” da Federação, que eram os miúdos deixados entrar gratuitamente para aplaudirem os craques.
Hoje já não há euforia nos campos. Não há entusiasmo. E se não há tudo isso, não nos resta outro caminho que não seja o de continuarmos a fumar o ópio deixado pelos nossos ídolos, que continuam os mesmos!
Seria um lugar privilegiado de contemplação, não fosse aquela invasão toda de casas precárias que vão até à água, e as machambas que sugam essa mesma água. Há outras construções, ainda, erguidas ao gosto dos donos, à volta da lagoa de Tsivanene, sufocando uma paisagem que pertence a todos os munícipes da cidade de Inhambane, porém, agora desfrutada por poucos.
Tsivanene já foi um paraíso, um ponto de encontro onde as mulheres – antes de haver água canalizada para as casas da maioria - iam lavar a roupa, que saía perfumada pelas plantas de nenufen, abundantes nesse tempo. Era um espaço livre, espectacular, com dunas a debruarem -no, num perímetro de cerca de dois quilómetros de comprimento, e talvez pouco mais de meio quilómetro de largura. Mas hoje, toda a beleza natural que ali existia, foi encoberta.
Ainda há pouco passei por Tsivanene, com o propósito de buscar lembranças de um tempo que deixa saudade. Íamos, na companhia das nossas mães, banharmo-nos em mergulhos inocentes, cheios de entusiasmo, enquanto elas – as nossas projenitoras – lavavam a roupa, entretidas e alegres, em conversas sem fim. Sabia do que me esperava. Tinha consciência do choque que me atingiria ao não poder parar de determinada distância e assistir a uma maravilha ora mais do que esquecida. Destruída!
Fui à Tsivanene, como tenho ido a muitos sítios da minha cidade, em passeios livres, sempre que as oportunidades se me oferecem, e saí de lá profundamente esfaqueado na alma. Senti que é um espaço que podia merecer melhor tratamento, onde as construções deviam ser feitas a uma distância recomendável, à mistura com algumas casas de pasto e esplanadas para dar regalo ao espírito, à mente, e ao corpo.
Tsivanene podia ser limpo, talvez dragado, a pensar-se em canoas desportivas, há condições para isso. Seria um retiro da juventude, e não só, já que dentro da cidade não temos visto casais a passear abraçados aos fins-de-semana. Inhambane não são só as praias espalhas ao longo do Índico, entre Barra e Guindjata, passando por Tofo. Aqui também poderiamlos aliviar as cargas do trabalho que nos ocupa ao longo da semana.
Tsivanene fica perto do Aeroporto. Seria acessível e lindo, se alguém tomasse a responsabilidade de mudar as coisas como estão, e levá-las a um sonho que é possível realizar. Para gáudio de todos os manhambanas, e daqueles que nos viriam visitar.
Hoje está um dia solarento, polvilhado de pássaros diversos que incluem as fugidias rolas, que não se cansam de me visitar nas manhãs e nas tardes, arrulhando parábolas. Minha casa é um porto de chegada, e depois de partida dessas aves, e eu sou o ponto de referência das mesmas. Conhecem o meu cheiro. Mas eu quero sair. Andar por aí à toa sem me importar com os ponteiros do relógio, sinto um desejo ardente de liberdade.
Então, aí vou eu, um andarilho despreocupado, vestindo calções de ganga, uma camisa qualquer tirada da mala ao calha, um par de sandálias de napa, e um chapéu a Pablo Neruda, sinto-me confortável assim. Até porque dentro de mim existem muitos “eus” que me dão sustento na mesma proporção. De graça. Sou eu, o vagabundo da Fonte Azul, que nunca amealhou nada, e pensa que as palavras são bastantes.
Estou em frente à casa de Cassiano Ratagi, mas aqui ao lado viveu o senhor Matias, pai do jornalista Leonel Matias e, ainda encostado aos dois, avultava o Lóngwè, tenaz defesa do clube Beira-Mar, nos tempos em que o futebol em Inhambane era o hino das massas, pela elevada qualidade que assumia. Eu era um fedelho na altura em que estes três personagens reverberavam, cada um tocando a sua nota de piano. E eis que, ao pé da casa onde viveram, sorrio ao recordar-me desses momentos inolvidáveis.
Mas eu estou a caminhar. Ao léu. Sem outro propósito que não seja o de abstrair-me das dores, ao mesmo tempo que desfruto do sol que me vai aquecendo o corpo e o coração. Estou a voar como os pássaros que deixei em casa, e agora encontro-me na rua do Brehemo Guifototo, antigo árbitro de futebol, que será também lembrado pelo seu Peugeot 403. É como se estivesse a vê-lo. À ele e ao seu vizinho, o Giló, um homem distante. Discreto.
Isto é um filme buscado de aquivos de ouro, e eu estou vivendo esse filme ao vivo, como narrador-personagem, pois, se assim não fosse, não me lembraria de nada, como agora que me embrenho nos becos Chalambe em direcção à casa onde morava Vangyane, a mãe da Guegué. É aqui onde vinhamos nos esborrachar com sura, e essas histórias todas fazem-me reviver um tempo que não volta mais. Nem essas figuras que estou evocando, voltarão alguma vez, a não ser por via da memória.
Se calhar estou louco, não sei se faz sentido andar por aí a esgravatar os mortos, mas isso leva-me à lua. Estou na lua, ou melhor, agora estou na zona onde viviam assimilados finos, como Tsungu Maciel (pai do Djako Maria), Daniel Mosse (pai do Marcelo Mosse), Mbalango, Tsungu Teixeira e o célebre Manuelito, esteio e fundador da banda musical Inhambane 70. Eles todos pertencem a uma geração sem réplica nos dias de hoje. E estou aqui para prestar-lhes vénia. Por tudo que fizeram pela cidade de Inhambane. Quem sabe, um dia, eu volte para consagrá-los em livro. À eles, e a outros que não mencionei aqui neste espaço diminuto.
Inté.
Foi na década de oitenta que eles vieram a terreiro, grávidos de palavras. E não eram palavras quaisquer, era poesia, alimentada por uma baía que, não obstante ser a jazida dos bitongas, agora está sendo vituperada em nome de ecossistemas cuja explicação não nos convence. Criaram a Associação Cultural Xiphefu, se calhar porque precisavam de uma almadia para as odisseias que viriam. Depois. Ou a partir dali.
E como o belo atrai o belo, Xiphefu magnetizou – mais do que as pessoas – a cidade inteira e toda a periferia, em grandes euforias. Passou a haver, por isso mesmo, um borbulhar de versos que saíam de uma báscula manipulada, de entre outros, por Guita Jr. e Momed Cadir. Eles eram jovens. Fizeram tudo, obedecendo a sua vocação de poetas, sem pensarem, mesmo assim, que amanhã vão merecer uma estátua. Não é isso que lhes movia. Era o gozo de se encavalitarem nas palavras. E levitarem na órbita da lua.
O programa “Noite de Abraços”, cooredenado pelo humorista Pedro Muiambo, homenageou-os nos passados dias 29 e 30 de Julho, no Centro Cultural Machavenga, na cidade de Inhambane. Foi também uma vénia – por assim dizer - à “Terra da Boa Genete”, que o Guita Jr. e o Momed Cadir, representarão sempre, onde quer que estejam. Afinal a baba deles os dois não se apaga. Mantem o cheiro inconfundível de toda a sura em todos os lugares, onde as bebedeiras produzem a música que emvaidece os manhambanas. E também lhes embevece.
Ainda bem que estiveram lá – no evento – os amigos dos dois. Os admiradores dos dois. Os leitores dos dois. Os conterrânesos dos dois. Os escritores sob ambrela da Associação dos Escritores Moçambicanos, representados pelo seu secretário-geral (Carlos Paradona). Mas o que mais importa é que esteve lá gente marejando como leves labaredas de fogo, aquecendo a alma do Guita Jr. e Momed Cadir. Isso é que dá valor a tudo.
Foi um momento de emoções e liberdade, onde, mais do que as palavras, o que contou mais foram os abraços. Dados de coração. Com saudades de um tempo em que se vivia sem se pensar no que se vai comer amanhã, porque a aquela fartura toda de amor, jamais deu sinais de um dia vir a a acabar. A poesia não acaba, é por isso que estiveram na “Noite de Abraços” o Guita Jr. e Momed Cadir, dois cúmplices unidos por uma amizade sem fim, nem que venha a última tempestade.
Um forte abraço profundo aos dois!
O que sobra dela são as lembranças mais lindas do passado, onde a vida lhe luzia sem limites. Tinha tudo que precisava, incluindo o supérfluo, em quantidades que lhe faziam esquecer a probabilidade da estiagem. Conheci-o nesse tempo em que vivia sob a luz plena, eu era um fedelho incapaz de pensar no futuro, mas hoje, que caminho com as longarinas a ranger a caminho dos setenta, recordo-me de um homem com fina personalidade, camisa sempre engomada e calças a boca-de-sino, do tipo Beatles. Era alguém que caminhava pelos subúrbios da cidade de Inhambane a pensar que não havia ninguém mais do que ele.
Mas o tempo, com todas as suas lavas indomáveis, veio esfrangalhar a soberba de Mbate Mahata, e torná-lo um retalho inútil de si mesmo. Ainda no último fim-de-semana vi-o sentado no canto de uma barraca, bebendo uma zurrapa e pedindo, cada vez que quisesse fumar, uma beata que lhe era dada com desprezo, e ele recebia com raiva disfarçada nos lábios desfigurados, incapazes de esconder dentes queimados pelo fumo do tabaco.
Não tem onde ir. Ficar em casa é um castigo porque está desprovido do básico para se entreter e queimar o tempo, é como se estivesse numa câmara de gás, olhando, impotente, para as gotas de cianeto que caem sem pressa. É por isso que sai e procura um lugar onde haja pessoas a beber, ele sabe que vai aparecer alguém que lhe pague uma merda qualquer. Alguém que lhe vai ajudar a morrer numa morte que já lavra, na verdade, em todo o seu corpo e alma. Ele já não é nada. É um cadáver que deambula à espera do último suspiro.
Pedi uma cerveja gelada da marca 2M, que no fundo não passa de uma bebida sem muita qualidade, então sou cúmplice dos fabricantes que estão pouco se lixando connosco, eles sabem que vamos beber. Se eu não fosse cúmplice, recusava-me a ingerir aquilo que já foi de facto uma 2M, nesses tempos! Havia de mobilizar outros bebedores como eu, para não consumirmos algo que pode ser melhorado. Eles ganham dinheiro com a nossa passividade, então a culpa é nossa, que só queremos beber. E estamos a beber a marca, pensando que o conteúdo continua a manter o prestígio do Mac-Mahon.
Mbate Mahata olhava para mim – enquanto eu bebia - deixando abertas na cara, todas as feridas que lhe queimam profundamente o espírito e todo o fígado que já deve estar no estado de cirrose. Parece um prisioneiro esquecido numa cela sem esperança, um cão repugnante sem qualquer possibilidade de dar uma ferroada como as abelhas enfurecidas. Ele já não é nada, é por isso que se resignou ao lodo, onde mora enquanto o coração bate, e os pulmóes ainda respiram.
Tive vontade de lhe pagar uma cerveja, porém, a voz do coração disse que não! Se eu fizesse isso estaria a contribuir na morte de Mbate Mahata, eu também seria um assassino. Pediu-me uma beata e eu disse que não! Tive pena dele e pedi uma sopa e a dona da barraca disse que não valia a pena porque ele não vai comer. Então não suportei estar naquele lugar, assistindo a uma pessoa que vai morrendo em cada cachaça e em cada beata. Fui-me embora despedaçado!
Nunca o conheci de perto, no sentido de estarmos na mesma mesa em abstração, falando de coisas que não têm nada a ver com política. Jamais o entrevistei na minha qualidade de jornalista, embora tenha tido ao longo deste tempo todo – continuo a ter – motivos mais do que muitos para o fazer, sobretudo para ter dele a explicação de determinados assuntos que nos apoquentam, numa cidade elegida para brilhar, mas que , entretanto, esse brilho está a escurecer.
Foi na altura em que concorria para o cargo de presidente do Município de Inhambane, que ouvi falar dele pela primeira vez, e pareceu-me um jovem simpático, de boa educação, capaz de, com a sua humildade, descer até ao nível do chão onde vive a esmagadora maioria dos seus compatriotas. Simpatizei-me com ele de longe, sem reservas, até porque votei nele, sem querer dizer com isso que tenha sido algum compromisso pessoal que me movia. O que me levou à urna não será mais do que o desejo de ver a minha cidade nos escaparates das urbes mais limpas de Moçambique.
A aparente humildade de Guimino e a sua vontade de trabalhar com afinco em benefício dos munícipes, levaram-no a publicar o seu número de celular para quem o quisesse contactar para alguma preocupação ou ideias de melhorar este e aquele aspecto da sua governação, e foi esse o número que usei em algumas ocasiões para apresentar as minhas inquietações em relação às obras que iam sendo feitas pela edilidade, mas o presidente do Município nunca antendeu às minhas chamadas. Fiz várias mensagens – com o meu nome assinado - alertando-o sobre a má qualidade das vias de acesso pavimentadas, mesmo assim, o edil ignorou-me.
Hoje há um problema que roça a violação dos direitos humanos na cidade de Inhambane, e o violador desses direitos é o próprio Guimino. Ou seja, o Banco de Moçambique (BM) pretende construir um monumento no bairro Matadouro onde vivem mais de cinquenta famílias, e para que o projecto do BM seja executado é necessário desalojar aquele conglomerado e reassentar as pessoas noutro lugar. Então, o Banco de Moçambique, consciente disso, desembolsou um valor que até hoje não sabemos muito bem quanto é que é. Fala-se de cerca de cinquenta milhões, entretanto o presidente do Município já veio dizer que não é esse o valor.
Mas o problema surge, independentemente dos valores que tenham sido alocados, quando a edilidade - sob batuta de Guimino – avança com a construção de casebres no bairro Malembwane, sem as mínimas condições de habitabilidade, violando um dos direitos do homem, que é o direito a uma habitação condigna, tanto é que, ao que nos parece, há dinheiro para isso. Os residentes de “Matadouro” recusam-se a sair para aqueles cubículos insultuosos e desprezíveis. Mas Guimino obriga-os, mesmo assim, a abandonar o lugar requerido pelo Banco de Moçambique.
Foi nesta situação que se confirmou – depois de vários outros momentos - a perca de humildade por parte do edil, ao afirmar nos seguintes termos, dirigindo-se à população: “quem quiser sair que saia, quem não quiser, que fique, eu sei o que vou fazer”. Eu não sei se isso não será desprezo pelo povo! Aliás, um dos moradores disse assim a Benedito Guimino: “você está a tratar-nos como se fossemos papel higiénico, você está a ameaçar-nos, e esquece que fomos nós que lhe elegemos”. Na verdade é uma ameaça de um homem que não vai deixar, com certeza, boas memórias por aqui. Até porque seria de bom senso que fosse feita uma investigação sobre este problema do bairro Matadouro.