Faz parte de uma constelação indelével, que tornaráInhambane um importante alfobre destinado a produzir jogadores de futebol que deixarão marcas profundas nos campos e na memória. E em cavaqueiras sem fim.
Pode ser que o seu nome tenha se circunscrito em pequenos limites, mas quem esteve nesses lugares vai se lembrar certamente das tardes e noites de glória em que Nando Guihoto ocupava o lugar dos esteios, transmitindo confiança não só aos seus companheiros, como aos adeptos que sentiam neste homem, um reduto sólido. Capaz de anular a cascata dos avançados e colocar em delírio o campo inteiro.
Nando forjou-se no bairro Santarém, onde nasceu numa família humilde. Jogou futebol de brincar no Bángwè, um campo espontâneo que arrecadava jovens em euforia, uns para jogarem e muitos outros movidos pela vontade de assistir à partidas empolgantes que terminavam em apoteose, com Nando Guihoto a brilhar entre os melhores.
Até aqui era apenas conhecido e aplaudido no bairro onde serácelebrado como um pequeno deus, que tinha do outro lado um outro pequeno deus, o Chumbo Lipato, avançado desconcertante jogando descalço em tardes de ovação, para no fim regressar-se à casa sem nada nas mãos, mas com o coração cheio de proezas que impulsionavam a malta a festejar a existência em todas as oportunidades.
E o Nando estava ali, no Bángwè e no bairro Santarém, à espera, sem saber que estava à espera, do toque do sino para que passasse a outros patamares. É assim que, de forma desinteressada e imperceptível, entra suavemente, quase subtilmente, no Grupo Desportivo de Inhambane e mistura-se com outros jogadores de eleição, que vão emprestar ao campeonato provincial de futebol, um ritmo que podia estar perto do cume.
O Nando, de cá de fora, como pessoa, era o mesmo que ia às quatro linhas, um homem desprovido de soberba, porém com dureza visível no olhar de felino e no peito aberto pronto para a defesa e para o ataque, costas ligeiramente cu
Mas como é inesperada a vida, Nando Guihoto morreu de morte anunciada. Nos últimos anos parecia um sonâmbulo andando pelo bairro sem falar com ninguém, exibindo o seu corpo atlético, mas já emagrecido pelo sofrimenro de proveniência desconhecida. Falava sòzinho - ou com os seus demónios – vocalizando para dentro de si mesmo, por vezes soltando um berro que ninguém entendia.
A última vez que vi o Nando Guihoto, vestia uns calções rotos que pareciam uma saiota, não tinha camisa, deixando à vista de todos, por conseguinte, um tronco nu bem desenhado. Não resisti em pronunciar seu nome em voz alta, Nando.......! E Nando ouviu-me. Olhou profundamente para mim e não disse nada, prosseguindo sua caminhada cujo destino nem ele sabia, se calhar já tinha chegado, onde esperava que a sua carcaça que ainda deambulava pelas ruas e pelos becos, voltasse ao pó. Para ele descansar.
No dia seguinte após aquele encontro, recebi a notícia: Nando Guihoto morreu!
Saí da minha cidade por vergonha, ao sentir-me fracassada e completamente despojada de dignidade. Fugi do vazio instalado dentro de mim pelas incongruências, e entrei numa carruagem cujo comboio ia a um lugar que nem sequer conhecia. Fui impelida pela força da aventura, na esperança de encontrar a luz que se apagara na totalidade, deixando-me às escuras. Senti vários sinais que me demoviam desse salto que pretendia dar rumo à falésia, mas optei por ignora-los.
Cheguei à Maputo e fui recebida pelas luzes do néon, acreditando que estaria melhor aqui, longe da pacatez e de todos os atalhos silenciosos e de todas as grutas do diabo que eu frequentava até me tornar num desperdício que as pessoas vão desdenhar, mas outras pessoas ainda, irão olhar para mim com compaixão, e eu nunca quis ser tratado com pena, muito menos com desdém, por isso vim à esta metrópole, onde as coisas pareciam correr de feição no princípio, porém agora estou cercado de fedor, eu própria passei exalar mau cheiro por dentro e por fora. Os meus amigos afastaram-se.
Estou no fim da linha, vivo como se estivesse na fila à espera de ser executada, mas os próprios algozes recusam-se a cumprir a sentença do juíz. Apelaram ao tribunal para que me deixasse ali mesmo, no aterro dos vermes, e que vou morrer – segundo eles – por inérc ia. Quem me matar, se me matassem, estaria a sujar suas mãos em vão. Eu já sou um cadáver.
Tenho tido vontade de voltar para casa, mas sinto uma vergonha danada, prefiro dar o último suspiro aqui, na rua onde moro sendo castigada pelo frio implacável. Aliás, por falar do frio, algumas pessoas de coração que vivem nestes prédios, desceram e ofereceram-nos mantas. Só que logo a seguir veio um grupo de indivíduos que nos arrancaram esses cobertores e queimaram-nos, deixando-nos, a mim e aos que vivem comigo neste descampado, descobertos e entregues ao sofrimento.
Ainda que eu queira voltar para casa, como é que vou voltar assim nestas condições miseráveis? Como é que vou encarar a minha família, os amigos que deixei lá? As pessoas! Quero voltar, porém sinto uma vergonha calcinante pois ao chegar irão olhar para mim indagando: É Nyathswa, esta? Meu Deus! Muitos se assustarão pois pareço um fantasma que tem medo de voltar às tumbas, e a minha missão é atormentar quem me vê, por isso não volto.
Não tenho nada, a não ser as lembranças do passado, quando eu era um verdadeiro passarinho em permanente ascenção às nuvens, perto do Céu. Tinha asas tenases que me permitiam planar com alegria, sem medo de cair. Mas foi a minha estupidez, a cobiça sem medida, a ilusão de que o Céu estava ao meu alcance, que me enganaram. Afinal o céu que eu almejava era o inferno, onde estou hoje sem ninguém por perto que me possa amar e levar-me de volta para casa.
A minha síntese está na timbila, é aqui onde todos os sentidos de mim se juntam e se unem, e produzem o remoínho que sou. Venho do mwenje, árvore dos meus antepassados, resistente aos temporais sem fim até hoje. É por isso que todos os movimentos que faço, sonorizam. Ou seja, a música da minha tribo sou eu. A dança também, sou eu.
Os festivais de timbila jamais serão realizados sem a minha participação, o meu corpo é o centro da engrenagem. Sou a matchatchulani elegida, direcciono o movimento das orquestras e mantenho a erecção espiritual dos insrumentistas, sou a catapulta deles. O meu ndjele (chocalho) não perde o rítmo, o compasso vem de mim.
Agora estamos em preparação do Msaho que vai acontecer daqui a pouco em Quissico, terra onde nasci numa manhã solarenta, e recebida com cânticos de pássaros poisados nas copas das árvores de fruta espalhadas em todo o perímetro da casa dos meus pais. É por isso que já estou em submissão ao ritual estabelecido para que nada falhe, meu marido não pode tocar-me por estes dias.
Mas eu fui feita para enlouquecer aos homens e às próprias mulheres, na rua ou em casa ou em qualquer lugar. Eu não sou esfinge, por isso não finjo. Cada movimento que faço é real como as águas despejadas pelas nascentes, toda a sensualidade está depositada em mim, é só ver como esvoaço nos palanques, sou o pássaro do passado, vou mover moínhos até nunca terminar.
A minha vocação é ser ao mesmo tempo porto de partida e porto de chegada, e vou mostrar tudo isso na festa que vai acontecer daqui a pouco, Não precisarei de vos dizer que sou eu, não proclamo a minha existência, não preciso, pois essa parte está reservada ao derramento de mim através da dança. Eu sou a dança dos chopi.
Nunca me importei com os nomes que me chamam, e eu nem sei aonde é que se localiza o Céu. O meu céu é o palco e as ruas e todos os lugares por onde passo espalhando o perfume de mulher chopi que valoriza o sexo, o sexo é o ponto final da humanidade, é por isso que depois do acto queremos dormir, já não há mais nada a fazer.
Sou a matchatchulani, mulher mais do que falada durante a vibração das orquestras e durante a ressaca, pela leveza e versatilidade que desnudo como as gazelas dançando nas planícies nas manhãs, em agredecimento ao Deus vivo pelo Sol que vai iluminar o dia inteiro. Eu também sou o sol dos chopi.
Espero por vocês daqui a pouco em Quissico. Tragam os corações abertos e prepararem-se para juntos sermos a albufeira onde se vai derramar todo o leite e mel da timbila.
Mas da maneira como bebo como é que podia ser alguém?! Tentei várias vezes ser carvão a ver se dava vida às fervuras mas não ardo. Vivo com a minha mãe, ela também é um farrapo, perdeu completamente a direcção, ou melhor, o farol dela é essa merda que está a chacinar-nos, isto é uma chacina. Então eu e ela somos duas jangadas sem remos, e assim como estamos não temos outra terminal que não seja o pricipício.
Mesmo que eu esteja sob domínio do efeito do álcool, não consigo entrar no cosmos da alucinação onde devia ser tomado pela falsa sensação de bem estar. Cada vez que entorno goela abaixo o veneno dessas garrafinhas do diabo, mais lúcido me torno. Fica disponível a minha sensibilidade do corpo e do espírito, e aí sinto toda a dor das minhas feridas vivas e acabo repetindo o refrão dos Rockfeller,s. “Esta vida é uma ressaca”.
Submeti-me ao “Senta-baixo” e agora faço parte da roleta. Nas noites quero que amanheça depressa para sair de casa, pois lá fora sinto-me um escravo livre, embora tenha que carregar a machila do Lúcifer e levá-lo a passear nas sombras sombrias onde a música que se ouve é regida pelo próprio diabo e cantada em coro pelos seus sequazes. Um desses sequazes sou eu.
Dói-me muito por a minha mãe também fazer parte desta sinfonia da morte. Tenho falado com ela várias vezes, sobretudo quando estamos embriagados, rogando-a a que dispamos as batinas que nos sufocam e atormentam o espírito, e a minha mãe não dá importância ao que digo, “dispa tu a tua batina, meu filho, ainda vais a tempo, eu não!
Nunca bebo com ela no mesmo lugar, ninguém a respeita. É bojardeira, e outros jovens como eu deliram com os seus discursos sem pudor e aproveitam-se do seu estado para abusá-la. Mas eu sei disso, porém não posso fazer nada. Sou incapaz de tirar a minha mãe do caminho infestado de vespas que lhe picam em todo o momento sem parar.
Eu bebo demais no seio de uma juventude que não sabe para onde vai. Não sei se a culpa deste descalabro é do Estado ou é nossa, nós os jovens. Podiamos fazer qualquer coisa para mudar o rumo do barco, mas não! No lugar de buscar os remos caídos no mar deixando as nossas almadias ao léu, optamos por aceitar e beber o veneno que eles nos dão, e ainda dizem que não se pode proibir o fabrico desse cianeto porque os fabricantes pagam impostos. Então, sendo assim, podem nos matar.
Mas essa é a realidade, daqui a pouco seremos cadáveres reais, depois desta farsa toda de que somos pessoas. Na verdade já não somos nós que vamos, eles é que nos conduzem com essas bebidas de merda que nos vão castrando pouco a pouco, dando a florescer o negócio da viagra. Porra!
A anunciada subida de dois degraus da selecão nacional de futebol no raking da FIFA, será outra forma de homenagear a memória de João de Sousa, homem inteiramente dedicado ao desporto em toda a sua vida.
Passam três anos após a sua morte, e a primeira impressão que tenho dele, ao vê-lo, é de que estamos perante uma figura frágil, pela forma como se move pisando a terra na vertical. Fica-nos a imagem de um taciturno. Um indivíduo com medo de avançar. Ele tacteia o chão com a perna direita que baila no ar antes de assentar a leve planta do pé. Dança exitante uma dança desconhecida, em contraste com a voz límpida onde mora toda a sua alma. Aliás, é com a voz timbrada que ele combate todas as vicissitudes, e leva os delírios dos estádios à todos os cantos das nossas casas. E a todos os lugares.
Mas também com o nome de João, tinha poucas possibilidades de não luzir, e ele fez isso, como se as auroras lhe pertencessem. João de Sousa é um megafone elegido, através do qual vamos receber todo o turbilhão dos campos de jogos, que agora ficam em silêncio após o último suspiro de uma estrela que nunca descansou. Mas se a vida é inesperada, então a própria morte também o é. Como agora, que ruíu para sempre esse pilar que sustentava na sua medida e peso, a plataforma do desporto nacional.
Os xiricos e os grundigs e os philips, derrubados pela tecnologia imparável, lembram-se com certeza, mesmo nas catacumbas, da voz do João de Sousa. Ele também vibrava como as multidões que foi alimentando durante tempos sem fim. Como se cada relato fosse o último, ou o primeiro, numa longa jornada de vida vibrante. A sua arma era o microfone, funcionando como escafandro na penetração das profundezas do detalhe. E tudo o que ele fazia, passava primeiro pela filtração do fogo, como o ouro que se pretende puro.
É esta a figura que excedeu os limites, mostrando igualmente, a par do conhecimento profundo sobre o desporto, a sua desmedida paixão pela música. Pela boa música. E nunca será repetitivo dizer isso, pois, programas como “O fio da memória” e “História das Músicas”, trazem-nos uma pessoa culta e preocupada em renovar as memórias. Ele tinha medo que a juventude se perdesse, por não saber de onde vêm estes ventos todos que fundamentam a arte e a cultura. Não queria ser cúmplice da falta de testemunho.
Agora cabe-nos prestar vénia ao homem de convicções inabaláveis. Que se recusou a abandonar os mares, pois sem as águas, as guelras do João de Sousa deixariam de insuflar oxigénio para alma. Haveria a morte por dentro. É por isso que estava sempre alí, no centro social da Rádio Moçambique, onde se juntava aos amigos, aos velhos amigos, atraindo também a juventude que queria ser como ele. Eram as pessoas e os jogadores e os amantes do desporto que lhe faziam viver, como se estivesse no marulhar dos grandes estádios, onde a sua voz de ouro misturava-se com o êxtase das multidões.
João de Sousa, um facebookista generoso, nunca se cansou de nos lembrar os feitos de grandes figuras do desporto e da cultura, e também da política. Esse gesto deixava-lhe com o coração cheio. Os likes e os comentários que recebia de inúmeros facebookistas que lhe seguiam, eram o testemunnho de que a vida só é bela quando a partilhamos. E João fazia isso com alegria. Com entusiasmo. Com engajamento. E continuou a fazê-lo mesmo estando no derradeiro desfiladeiro da vida, sem saber que estava.
Quando ele partiu, para sempre, era como se o estádio da Machava estivesse abarrotado no tempo dos Xiricos e dos Grundgs e dos Philips, aplaudindo um jogo que vai começar daqui a pouco. Os que não puderam ir estão em casa colados aos receptores, ansiosos, e no estúdio da Rádio Moçambique está um locutor que chama: alô João de Sousa, alô João de Sousa! E o relator não consegue entrar em linha, há um problema de retorno. Alô João de Sousa, alô João de Sousa! Nada!
Os técnicos que estão no campo, e outros técnicos que estão na sede, entram em pânico porque não conseguem ouvir do outro lado a voz do João. Alô João de Sousa, alô João de Sousa! Também nada!
O ambiente do público é que triunfa: hooooooooooo!!!! Hooooooooo! Mas João de Sousa, nada! Os técnicos insistem e....nada! E o jogo já decorre há meia hora, intenso, com a nossa selecção a ganhar por duas bolas a zero.
Alô João de Sousa, alô João de Sousa! Até que o relator, finalmente, passado o tempo de sofrimento, responde quando decorria o segundo tempo: Boa tarde estimados ouvintes! Faltam dez minutos para terminar a partida, Moçambique ganha por duas bolas a zero. O estádio está completamente cheio, com pessoas penduradas nos postes de iluminação. A nossa selecção está endiabrada. É indiscritível o que está a acontecer no Estádio da Machava......
Apesar de nos dizer que é indiscritível o que está a acontecer, ele descreve tudo de forma detalhada, numa situação em que o tempo não lhe dá muito pano para mangas. O juiz apitou pela última vez, permitindo a que João de Sousa gritasse: termina a partida! Moçambique ganhou por três bolas a zero!
E o guerreiro deixou as armas cá fora para quem as quiser aproveitar. O cheiro do João de Sousa impregna-nos como país, que ainda tem muitos golos por marcar. Ainda teremos muitos jogos por realizar, com a voz do João em “off” na memória. As músicas de “O fio da memória” e de “História das Músicas”, iremos cantá-las nas madrugadas em que já não seremos nós os ouvintes, mas o João que nos escutará no silêncio do pós-atmosfera. Também os pavilhões de básquetebol ressurgirão sem o João, lembrando as noites de glória. Era o João que gritava: sacôôôôôô!!!!!!!
Não me canso de escutar a extraordinária música de Wazimbo (Nwahulwana), é como se tivesse sido composta em função de mim, mas já é tarde demais para entendê-la. Mesmo que eu quisesse voltar atrás, o sinal está fechado para mim e agora só me resta ruminar as feridas que andei a plantar na vida inteira, sou uma escória. O pior é que nunca juntei nada na perespectiva de que a estiagem é infalível, então passo estes últimos dias da vida ouvindo de longe a gargalhada das hienas.
A princípio - influenciada por outras mulheres - a escolha que fiz parecia luzidia, voltava para casa de madrugada e colocava comida à mesa, e isso dava-me a sensação de que a vida é bela. Envolvia-me com três/quatro homens por noite e eu aguentava, era jovem. Mas não passou muito tempo, percebi que tinha-me metido no escuro e o caminho de volta não se vislumbrava. Aliás, nem sequer cheguei a pensar em voltar ao princípio, o dinheiro era mais forte que a dor, e eu o tinha todos os dias.
Porém a minha beleza enganou-me durante todo este tempo, toda a vida. Os homens encantavam-se com o meu corpo, com a minha candura, e nunca dei em conta que afinal estava caminhando nas trevas onde no fim serei recebido pelos mabecos que irão devorar-me viva. Como agora, que os últimos sabujos disputam o meu coração que ainda bate, mas o corpo já não serve para as orgias infinitas em noites indescritíveis. Tudo aquilo era um escárnio, os homens abusavam-me.
E hoje estou aqui. Magoada, não pelo passado de violência, mas pelas lembranças do meu comportamento, da minha incapacidade de escutar os sinais que recebia ainda em casa quando minha mãe me perguntava, “vais para onde assim esta noite, minha filha!” Eram palavras de súplica. Minha mãe ia até a varanda e pedia, “minha filha, volta para casa, é noite!” Mas eu já não a escutava, estava determinada a sentir as esporas do diabo e embrenhava-me no néon.
Agora estou aqui despedaçada. Sentada num dos bancos do anfiteatro da imaginação, ouvindo a minha mãe cantando os versos que me ressurgem em cada pensamento: “vais para onde assim esta noite, minha filha”! “Minha filha, volta para casa, é noite”! Mas já é tarde demais para voltar. Tarde demais para seguir Nwahulwana, profundamente interpretada por Wazimbo.
Fumo desesperadamente sem parar em lugares imundos onde se bebe aguardente caseira partilhada no mesmo copo, que vai girando em bocas exalando hálito horrível. Não tenho como recusar esta imundície, não tenho dinheiro. A minha pele está flácida, perdeu a graça, ninguém a aprecia a não ser estes jovens frustrados que depois da pinga encostam-me num canto qualquer e ejaculam toda a merda dentro de mim., porra!
Quando desperto estou molhada de ignomínia. Cuspo a minha saliva espessa para o chão com desdém e raiva, mas depois do banho vou para lá de novo, com fome, pronta a ser achincalhada a troco de um petisco e do mesmo copo nunca lavado. É assim a minha vida, depois de tudo o que fiz em desobediência à minha mãe, “minha filha, volta para casa, é noite!”
O jovem trazia moedas na mão esquerda, dirigiu-se a uma banca que vende géneros alimentícios e pediu parcos produtos que pagou imediatamente, entregando o dinheiro com a mesma mão esquerda, num inadmissível gesto na juventude da minha geração, era má aducação. O homem que estava do outro lado do balcão é idoso, provavelmente da idade do avô deste rapaz, por isso merecedor, logo a partida, de respeito. Chocou-me a situação, então decidi intervir.
Chamei o miúdo que olhou para mim com desdém. Saudei-o e ele simplesmente não respondeu, logo percebi que devia ter cuidado, estava diante de um desconhecido e que agora de perto mostra ser possuidor de um potencial agressivo. Mesmo assim não desisti do propósito que me levou a chamá-lo. Repreendi-o dizendo que não ficava bem entregar seja o que for a alguém com a amão esquerda, sobretudo quando a pessoa que vai receber é mais velha que nós.
O jovem virou-me as costas com desprezo e prosseguiu a sua caminhada sem me dizer uma única palavra, e eu caí de cangalha no espírito, não por ele ter-me ignorado, mas por estar mais do que claro que temos aqui uma criatura que estará a crescer mal formada como pessoa, e como ele, existem intermináveis legiões assim no nosso país, que poderão, por serem pólvora latente, queimar o futuro inteiro. O rastilho está aceso.
Mas eu precisava de aliviar a minha dor, foi assim que dirigi-me ao proprietário da banca que, ao contar-lhe o sucedido, disse aquilo que não me surpreendeu. “você tem que ter cuidado com esta rapaziada, eles andam drogados e frustrados. Se não respeitam os seus próprios pais, como é que vão respeitar às outras pessoas?”
A cannabis sativa e outras drogas desconhecidas andam em todo o lado. Quanto mais as autoridades tentam combater os seus consumidores, mais elas – as drogas – ressurgem. Até porque podemos não estar perante um problema criminial em si, mas um problema social, os jovens estão sem rumo, estão a degenerar, vê-se isso pelo seu comportamento, pela sua tendência a serem agressivos e pior do que isso, abstenidos, já não se importam com nada.
Depois de desabafar com o homem da banca, procurei ali mesmo na Mafurreira, uma barraca onde podesse beber cerveja e esquecer aquilo. Mas o que aconteceu foi encontrar outra situação ainda mais dolorosa. Degradante. Ou seja, quatro jovens bebiam “Soldado”, uma bebida extremamente agressiva que o nosso governo tolera e deixa que prolifere no mercado, destruindo uma geração inteira de adolescentes e jovens que no lugar de estar ali a consumir esse veneno, devia estar em lugares mais saudáveis como a escola, por exemplo.
Saudei-os, porém estes, diferentemente do primeiro que pelo menos parou e olhou para mim, nem sequer reagiram. Continuaram na conversa alimentada por palavras obscenas e gestos obscenos também. Estavam visivelmente “tocados” pelo efeito do “Soldado” com os rostos envelhecidos, desidractados. E eu não podia continuar ali assistindo a um grupo que está-se matando devagar sem que ninguém possa fazer nada para travar a derrocada. Nem eles próprios, por isso fui-me embora. Não podia fazer nada. Não podia dizer nada, sob o risco de ser agredido, ou com palavras ou com as mãos ou ainda com aquela garrafinha adorada pela juventude, não porque é boa coisa, mas porque é relactivamente barata e sobe à xabeça muito rapidamente. E vicia. Mas é bebida do dia.
Chegamos à Inhambane por volta das 14, mas esta é uma viagem que vai romper com os nossos nervos. A primeira coisa que fiz ao embarcar – na “Junta” - foi avaliar a expressão facial do condutor e os seus gestos, não tendo mesmo assim chegado a nenhuma conclusão, era preciso aguardar pelos primeiros quilómetros. Calhou-me o banco da frente onde muita gente tem medo de sentar. Acham que em caso de acidente não irão escapar, eu não penso assim. Ninguém conhece de que lado virá a morte.
Até Marracuene parecia que estava tudo bem, mas ao descer em direcção a Bobole perdi completamente a confiança que ia ganhando em relação ao homem – de meia idade – que nos levava num percurso de 500 km ou pouco mais, com muitos perigos estendidos na via. É um declive que convoca todos os cuidados e, para o susto dos que estavam atentos como eu à condução do “driver”, este faz uma ultrapassagem violando grosseiramente as regras e os sinais.
Repreendi-lhe com o olhar e a resposta dele foi de indiferença, desprezou-me, o que cobntribuiu para me enraivecer, porém tive que me conter. Mas dentro de mim todos os barcos da reivindicação já tinham desatado as amarras. Bebi sem parar até ao fim a garrafa de meio litro de água que trazia na sacola colocada por sobre as minhas coxas, à espera do pior.
A partir da Manhiça a morte ruge na estrada em cada quilómetro até Incoloane, e o mais preocupante é que agora o homem do volante não pára de tagarelar, virando-se constantemente para o cobrador que está de pé na porta do veículo, comendo continuamente como um porco e incitando seu companheiro que se ri por tudo e por nada. É uma tripulação que se vai tornando caótica pelo barulho que criam e por se esquecerem que estão a conduzir um carro semi-colectivo com pessoas que não só querem chegar inteiros aos seus destinos, como têm o direito ao sossego e bem estar dentro da viatura.
Na zona da “3 de Fevereio” há três carros à nossa frente e por aquilo que temos vindo a assistir, tenho o pressentimento de que este homem que fala como se fosse a última oportunidade que tem de o fazer, vai fazer das suas e fez mesmo, acelerou e “bateu” aos três numa manobra “in extremis”. De elevado risco.
Então no posto de controlo do cruzamento de Xinavane eu avisei a Polícia sobre o comportamento de quem tinha na sua responsabilidade as nossas vidas, era preciso que eu fizesse qualquer coisa, e assim um dos agentes da autoridade deu-me o seu número na presença da tripulação e dos passageiros e disse: se ele continuar a fazer esse tipo de manobras ligue por favor. Contudo há quem se mostrou contrário à minha atitude e vociferou, “deixa o motorista conduzir à vontade, ele sabe o que está a fazer. Se você não se sente bem neste carro, desce, nós queremos chegar cedo à casa”.
Fiquei com pena de quem falava e dos poucos outros que o apoiavam. Esquecendo-se que a morte é apologista da velocidade e das manobras irresponsáveis. Mas graças a Deus, a partir daquele ponto a viagem tornou-se muito agradável e segura. Desci na Fonte Azul, minha paragem, despedi-me do motorista e seu cobrador, que não corresponderam à minha despedida.
Estive em Maputo na semana passada por força das circunstâncias. Faleceu a minha sobrinha, a Thchinha, mulher de batalhas sem fim. Nela repousava a esperança e a fé de que a cacimba baixaria e a seu devido tempo o sol brilharia em todo o universo. As armas que a sustentavam era a poesia, da qual retirava e repetia sem se cansar esse verso, “a vida é um eterno recomeço”. É por isso que desprezava as quedas. Ria-se com gozo dos espetos que a perseguiam querendo derruba-la. Ela dizia: É verdade que não tenho nenhum feixe de flechas nas minhas mãos, mas trago um ramo de oliva no coração.
Thchinha tinha o impulso da partida, que até podia levá-la ao desconhecido, e ela jamais teve medo do oculto. Se tivesse o tal pavor não teria voado para outras terras, onde tinha a certeza de vencer e depois voltar para casa com o troféu da vitória a fim de nos cobrir a todos e fazer-nos acreditar que a vida é bela.
Voou confiando na arte que fazia em cumprimento de uma missão, e quem confia na arte não vacila. “David venceu com poesia espalhada em Salmos”, dizia em silêncio a Tchinha, e nós não percebiamos a dimensão das suas palavras. Alcançou a liberdade tendo como estandarte a arte, imitando David que decepou a cabeça de Golias.
Então telefonei aos meus amigos em Maputo, dando-lhes a conhecer a partida definitiva da minha querida sobrinha, na verdade uma grande mulher na flôr da idade vivendo entre a luta e a esperança. Muitos desses meus amigos foram, mais do que assistir às cerimónias fúnebres, recordar-nos o valor da amizade. E aquele silêncio todo que vai pairar à volta da Thchinha, será o testemunho da paz. Tchinha partiu em paz, superando toda a dor que lhe dilacerava o corpo em dias longos que em compensação, depois de todo o sofrimento, metamorfosearam-se em luz.
Choramos por dentro esta largada como a de um barco que recolhe as amarras para nunca mais voltar, mas não são lágrimas da morte, Thchinha não vai morrer. Em terra firme foi abalroada pelas ondas que se esbatiam no casco, e agora, com as velas enfunadas, está aí, acenando-nos no último adeus.
Thchinha, minha querida sobrinha, não nos resta mais nada neste momento de flores que nunca te oferecemos, senão agradecer todo o amor que nos deste. Ficaremos com as tuas lembranças para sempre.
Obrigado, amor. Deus te acolha!
Receio que Benedito Guimino, actual edil da cidade de Inhambane, enlouqueça espiritualmente depois de deixar o cargo. Pode ser que fique com a sensação – após dez anos de mandato – de ter feito pouco pelo seu município, e isso vai frustar qualquer pessoa de bom senso. Tinha espaço para no mínimo, ordenar o território das zonas de expansão, na impossibilidade de fazer voos de grande altitude, mas esse desafio carece de audácia, ou seja, de juramento. Guimino não tomou essa atitude.
As vias de acesso constituem – isso todos nós sabemos – pontos cruciais para o desenvolvimento da comunidade. Houve uma tentativa no sentido de se melhorarem os acessos.
Construíram-se algumas ruas de pavêt de certa forma aplaudidas, mas não passou muito tempo, percebeu-se que a qualidade das obras é fraca. Em alguns troços o pavimento está a destroçar-se, mesmo antes de Guimino entregar o testemunho.
Pode ser que Guimino saia da cadeira com remorsos, não consegue manter a cidade limpa. Prometeu construir um mercado do peixe na Mafurreira. Desalojou as vendereiras há mais de dois anos, tendo-as colocado em condições mais do que deploráveis, à espera que o edifício fosse feito, qual!. O tempo passava com peso esmagador sobre as mulheres e, do novo mercado, nada! A única coisa que o Município fez foram as fundações numa zona de pântano com riscos ecológicos, e até hoje nem água vai, nem água vem. O mais triste é que o edil costuma passar pelo local no seu carro luxuoso, desfrutando do ar-condicionado e todo o conforto, sem ao menos parar para saudar “aquele povo” que, cansado de esperar, regressou ao seu lugar agora com as circunstâncias pioradas pelas fundações.
Tenho receio que estes fracassos esmaguem a alma de Benedito Guimino, um professor outrora elogiado por ter a Escola Secundária de Muelé bem organizada, quando era director. O município de Inhambane tem um ordenamento territorial caótico. As novas ruas foram feitas sem valas de drenagem. O mangal que veio retirar a vocação de cidade de veraneio, agravou ainda mais o estado de abandono, onde a “mão” do presidente do Município faz-se sentir pouco, em alguns momentos inoportuno.
Guimino entrou em colisão com os moradores do bairro Matadouro, que se sentiram não só burlados, mas sobretudo desprezados e esmagados na sua dignidade. O Banco de Moçambique propôs a construção de um monumento na referida zona, com a contrapartida de retirar as pessoas e coloca-las num outro lugar com casas construídas pelo município com dinheiro desembolsado pelo Banco, são cerca de sessenta famílias.
Até aqui estava tudo bem, mas Benedito Guimino, no lugar de construir casas condignas, conforme propunha o Banco e com condições criadas, foi erguer casebres inóspitos, que foram prontamente rejeitados pelos moradors. O presidente do município ainda ameaçou os moradores, pretendendo tirá-los à força, usando a polícia, mas eles foram firmes, exigindo seus direitos. Até hoje estão nas suas casas, à espera que sejam consideradas como pessoas, conforme dizia uma moradora em confronto com Guimino.
São estes alguns dos pontos que podem contribuir para que Benedito GUimino saia chamuscado. O que será muito triste não só para ele, como para todos aqueles que esperavam dele um grande desempenho!