- ENQUADRAMENTO
O n.º 2 do artigo 227 da Constituição da República de Moçambique (CRM) determina que: “O controlo da legalidade dos actos administrativos e da aplicação das normas regulamentares emitidas pela Administração Pública, bem como a fiscalização da legalidade das despesas públicas e a respectiva efectivação da responsabilidade por infracção financeira cabem ao Tribunal Administrativo.” Nesta sequência, a alínea a) do n.º 2 do artigo 229 da CRM estabelece que: “Compete ainda ao Tribunal Administrativo emitir o relatório e o parecer sobre a Conta Geral do Estado.” Mas qual o valor e eficácia jurídica desse relatório e parecer?
A elaboração da Conta Geral do Estado compete ao Governo, o qual remete ao Tribunal Administrativo para o devido parecer conforme as normas constitucionais supra citadas, conjugadas com o disposto no n.º 1 do artigo 50 da Lei n.º 9/2002, de 12 de Fevereiro, que cria o Sistema de Administração Financeira do Estado (SISTAFE) e que determina: “O Governo deve apresentar à Assembleia da República e ao Tribunal Administrativo a Conta Geral do Estado, até ao dia 31 de Maio do ano seguinte àquele a que a referida conta respeite.” É o Governo quem executa o Orçamento do Estado e o respectivo Plano Económico e Social, após a aprovação do pela Assembleia da República, conforme dispõem a alínea e) do n.º 1 do artigo 203 e alínea m) do n.º 2 do artigo 178, ambos da CRM.
Curiosamente, o relatório e o parecer do Tribunal Administrativo sobre a conta Geral do Estado são enviados à Assembleia da República, o qual tem a última palavra, no sentido de apreciar e aprovar a Conta Geral do Estado, na sessão seguinte à entrega do Relatório e Parecer pelo Tribunal Administrativo. (Vide n.º 2 e 3 do artigo 50 do SISTAFE). A Assembleia da República tem a prerrogativa de ignorar todas as irregularidades constatadas pelo Tribunal Administrativo, independentemente da gravidade das mesmas e aprovar a Conta Geral do Estado como se de um processo apenas meramente político se tratasse. O papel do Tribunal Administrativo neste processo de monitoria e avaliação da Conta Geral do Estado parece que termina com a submissão do seu parecer à Assembleia da República. O Ministério Público participa da elaboração do parecer do Tribunal Administrativo sobre a Conta Geral do Estado e subscreve a mesmo. É, pois, relevante a participação do Ministério Público atendendo a sua função constitucional de representar o Estado junto dos tribunais e defender os interesses que a lei determina, entanto que garante da legalidade e órgão detentor da acção penal em conformidade com o disposto no artigo 235 da CRM. As violações da lei constatadas na Conta Geral do Estado carecem, também, da intervenção do Ministério Público para a reposição da legalidade.
Importa lembrar que nos termos das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 14 da Lei n.º 8/2015, de 6 de Outubro que altera e republica a Lei n.º 14/2014, de 14 de Agosto está, respectivamente, estipulado que no parecer sobre a Conta Geral do Estado, a Secção de Contas Públicas do Tribunal Administrativo aprecia:
- a actividade financeira do Estado, no ano a que a Conta se reporta, nos domínios patrimonial e das receitas e despesas;
- o cumprimento da Lei do Orçamento e legislação complementar.”
O que deve ser interpretado de harmonia com o artigo 45 do SISTAFE que estipula: “A Conta Geral do Estado tem por objecto evidenciar a execução orçamental e financeira, bem como apresentar o resultado do exercício e a avaliação do desempenho dos órgãos e instituições do Estado.”
- FORÇA JURÍDICA DAS CONSTATAÇÕES E RECOMENDAÇÕES DO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO SOBRE A INDÚSTRIA EXTRACTIVA
Refere o tribunal Administrativo no Relatório sobre a Conta Geral do Estado de 2019 que: “À semelhança de anos anteriores, prevalecem divergências entre os valores registados na CGE e os comunicados pela Autoridade Tributária (Direcção Geral de Impostos – DGI). Esta situação afecta a fiabilidade do valor das receitas mencionado na CGE de 2019, contraria o preconizado no n.º 1 do artigo 46 da Lei n.º 9/2002, de 12 de Fevereiro, segundo o qual a Conta Geral do Estado deve ser elaborada com clareza, exactidão e simplicidade, de modo a possibilitar a sua análise económica e financeira, no que tange ao reporte dos impostos pagos pelas empresas enquadradas nos sectores de petróleo e gás e carvão.” Como é fácil de perceber, estas irregularidades são recorrentes e reconhecida a correspondente falta de responsabilização pelo Tribunal Administrativo.
Mais uma vez, o tribunal Administrativo constatou existência de dois contratos que não foram submetidos a sua jurisdição pelo Governo para efeitos de fiscalização prévia, o visto, nomeadamente:
- O contrato da JPSL Mozambique Minerals, Lda, relativo a concessão mineira com o código 3605-C assinado com o Governo no dia 7 de Fevereiro de 2011 e com uma validade de 25 anos.
- O contrato da Highland African Mining Company, Lda. relativo a concessão mineira com o código 724-C, a ssinado com o Governo e com uma validade de 25 anos. O Relatório sobre a Conta Geral do Estado de 2019 não faz referência a data da assinatura deste contrato.
No entanto, o mesmo Relatório refere que: “o Governo afirmou, em sede do Relatório sobre a Conta Geral do Estado de 2018, que estava a tomar diligências visando obter a documentação necessária, de modo a submeter para o visto do Tribunal Administrativo, até 31 de Dezembro de 2019. O que não aconteceu.” (Cfr. página V-14). Perante este facto diz o Tribunal Administrativo que configura violação ao estatuído na alínea c) do n.º 1 do artigo 60 da Lei n.º 14/2014, de 14 de Agosto, alterada e republicada pela Lei n.º 8/2015, de 6 de Outubro. Porem, não há qualquer responsabilização por esta violação grave da lei, atendendo que esses contratos estão obrigatoriamente sujeitos ao visto do Tribunal Administrativo e nem se percebe porquê estão a ser implementados, quando os mesmos não são juridicamente eficazes, ou seja, não produzem efeitos jurídicos. Não se está aqui a respeitar o valor, natureza e efeito jurídico do visto, em conformidade com o disposto no artigo 61 da lei supra. Por que razão não responsabiliza o Tribunal Administrativo uma vez que os factos chegaram a sua jurisdição para apreciação. Outrossim, não se percebe a não intervenção do Ministério Público a reposição da legalidade.
Relativamente a questão da disponibilização de informação e transparência na indústria extractiva, o Relatóro sobre a Conta Geral do Estado de 2019 retrata significativas situações de divergência de informação e falta de transparências por parte das entidades chaves na regulação, fiscalização e gestão dos sectores do gás e do carvão mineral, quais sejam; o Ministério dos Recursos Minerais (MIREME), Instituto Nacional de Petróleo (INP), Direcção Nacional de Impostos (DGI), Empresa Nacional de Hidrocarbonetos (ENH), o que consta das páginas V-15 a V-20 do Relatório em análise.
A título de exemplo, o Tribunal Administrativo constatou divergência entre a informação reportada pelo MIREME e pelo INP relativamente a produção de gás e condensado. Mais ainda, o Tribunal Administrativo constatou que a informação relativa aos impostos cobrados às empresas, registada na CGE de 2019, não coincide com a reportada pela Autoridade Tributária, através da DGI, reconhecendo expressamente que esta situação é recorrente e que prejudica a elaboração da CGE com base nos princípios da clareza, exactidão e simplicidade, em conformidade com o n.º 1 do artigo 46 da Lei n.º 9/2002, de 12 de Fevereiro. Se esta prática de violação da lei é recorrente, qual a consequência uma vez que já foi constatada por autoridade jurisdicional competente?
Neste Relatório sobre a Conta Geral do Estado de 2019, o Tribunal Administrativo também constata o facto de Moçambique ainda não ter aprovado o Plano Director do Carvão. Estranhamente não estão devidamente apresentados os motivos desse vazio para um sector há muito explorado e com impactos económicos, sociais e ambientais sérios para o País.
Na página V-4 do Relatório em análise, o Tribunal Administrativo faz uma ilustração do grau do cumprimento das suas recomendações nas questões da indústria extractiva, indicando várias das suas recomendações que não foram cumpridas, algumas parcialmente cumpridas e outras em progressos, relativamente aos anos 2018 e 2019.
CONCLUINDO
O Parecer e Relatório sobre a Conta Geral do Estado sugere tratar-se de uma caixa-de-ressonância que não releva para a responsabilização por violação da lei no que concerne a gestão dos fundos públicos no Orçamento do Estado e que legitima a impunidade.
Ora, não está claro qual o valor e efeitos jurídicos das irregularidades constatadas pelo Tribunal Administrativo, uma autoridade judicial, e as recomendações que faz, considerando o poder político da Assembleia da República de aprovar a Conta Geral do Estado e encerrar o assunto. Parece haver aqui um conflito entre o poder judicial e o poder político em que prevalece este último, nos termos em que está formulado este procedimento da CGE. Outrossim, não se percebe que poder tem tanto o Tribunal Administrativo, como o Ministério Público perante as recorrentes irregularidades constatadas e recomendações no Parecer e Relatório sobre a Conta Geral do Estado que não são cumpridas vezes sucessivas.
Por: João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos