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Se eu tivesse que escrever uma carta ao Fernando Manuel, tinha que fazê-lo com a certeza de que sou digno de tal acto, não só devido a minha incapacidade conjuntural, mas porque estou diante de uma figura de porte intelectual honesto e indiscutível. É por isso que tremo ao tentar rabiscar algumas linhas em homenagem ao “Nandinho”, cuja escrita pujante esconde um homem tímido, eivado de cultura e conhecimento, demonstrados nos textos que ele vem publicando incansavelmente, e que o vão tornar num dos mais importantes cronistas do nosso tempo.

 

Escritor e poeta de verbo sólido e vocabulário caudoloso, Fernando Manuel completou este mês o seu septuagésimo aniversário natalício e eu, na impossibilidade de o abraçar em carne, fiz-lhe uma chamada telefónica com o intuíto de lhe desejar muitos parabéns e aproveitar a ocasião para rememorarmos momentos intensos que vivemos juntos em vários lugares, sem qualquer compromisso que não fosse o de dar azo à vida.

 

Falei-lhe da sua cegueira na cavaqueira telefónica que durou cerca de quinze minutos e fiz-lhe uma pergunta que nunca tinha feito antes nas várias tertúlias que temos tido por via do celular, e que seria descabida num dia como este, se não fosse o conhecimento profundo que tenho do Fernando Manuel. Pode ser que haja algumas feridas dolorosas dentro deste homem, provocadas pela impossibilidade de voltar a ver as coisas mais belas que já observou na vida, mas toda essa limitação é suplantada pela imensa poesia e extraodinária capacidade de sublevação que moram em “Nandinho”.

 

Qual é a sensação de se ser cego? Fernando Manuel desatou às gargalhadas, como se a cegueira lhe desse alegria, mas é mentira, ele tem a indismentível saudade da liberdade, quando caminhava segundo um inabalável cicerone que são as palavras. Escritas e buriladas no silêncio das noites e muitas vezes no ram-ram das Redacções para onde  jamais voltará, nem que o deseje ardentemente.

 

Perguntei-lhe ainda assim: não tens saudades das tuas putas? Fernando Manuel voltou a troar uma gargalhada que desta vez pôs a nu toda a rusticidade da sua voz, que muitas vezes cantou em paródias, em celebração da existência, e a resposta ficou-se por esse riso comovente de um ser condenado pela cegueira a nunca mais contemplar o azul do céu e os pássaros planando nos finais de tarde, na despedida do dia.

 

“Agora vivo de sons!” Na verdade será a música e o tacto, os maiores companheiros do Fernando Manuel, que me ofereceu há dois anos o livro da sua lavra, “O Homem sugerido”, que fiz questão ler para ele, no dia do seu aniversário, um excerto da crónica “Alucinações” , Abandono o brilho ténue das flores que tremulam à luz no cimo das acácias e perco-me no restolhar das folhas sob o ligeiro contacto dos seus pensionistas, pássaros procurando abrigo para mais uma noite e faço-me à trégua.

 

Atrás, na varanda, na coluna, fiquei eu. Aguardo.

 

Este é o presente que dei ao Fernando Manuel, no último domingo, com um abraço profundo e no fim ele disse: muito obrigado por teres te lembrado de mim!

sexta-feira, 20 janeiro 2023 14:11

FERNANDO MANUEL, 70 ANOS, escreve Nelson Saúte

nelsonSautee

Diluídos no escuro

 

os coqueiros, elegantes silhuetas

 

projectam-se contra o profundo

 

azul do céu

 

O macúti balança

 

sufocando o riso

 

num sussurro amigo

 

sob o peso da leve,

 

levíssima brisa do mar

 

Ao longe

 

filtrada pelo silêncio

 

a voz de Brenda Fassie

 

dando vida ao Galaxi, lembrança do John

 

Colados ao caniço

 

os homens eternizam

 

o culto da sura.

 

Fernando Manuel

 

Este poema, intitulado “Matsitsi”, de Fernando Manuel, tem indesmentíveis referenciais do lugar de origem: Maxixe, onde o autor nasceu a 20 de Janeiro de 1953, há precisamente 70 anos.

Muitos vezes quando atravesso aquela paisagem cartografada poeticamente nestes versos, lembro-me deste seu belo texto, que povoa o meu imaginário há anos. Conhecido como jornalista – hoje em dia como cronista sobretudo – ele é, no entanto, um poeta de créditos indubitáveis e um dos mais interessantes contistas moçambicanos.

 

Para além da data e do lugar de nascimento, as parcas notas biográficas sobre Fernando Manuel dizem-nos que ele iniciou os estudos na Missão Sagrada Família e que os completou da escola Indígena da Munhuana. Eu estudei na escola primária do Bairro Indígena, aliás foi lá por onde comecei e esta coincidência é-me particularmente cara. Mais tarde, Fernando Manuel frequentaria os liceus António Enes e Salazar, que são hoje - para o nosso gáudio - Francisco Manyanga e Josina Machel.

 

Narram ainda as suas breves efemérides que antes de ingressar, em 1981, na carreira jornalística, haveria de ser monitor de educação física, músico, escriturário, professor de História no ensino secundário. A esta distância talvez eu possa especular: a sua entrada tardia no mundo do jornalismo permitiu-lhe fazê-lo com uma bagagem que lhe seria útil e o catapultaria, em poucos anos, para um dos lugares cimeiros entre os camaradas de ofício.

 

Quando entrei, aos 21 anos, para a redação da TEMPO, em 1988, Fernando Manuel era o jornalista mais importante daquela mítica revista. Chefiara a reportagem pouco antes. Era um dos gurus da publicação. Provavelmente, o Kok Nam fosse a sua figura mais emblemática, oriundo da tribo dos fundadores.  A TEMPO, é preciso dizê-lo, foi a tribuna de grandes nomes do nosso jornalismo. Miúdo ainda, quando eu frequentava a Maxaquene, passava diante do prédio quotidianamente a caminho da escola. Olhava para o edifício como quem olha para um santuário. Esperava ser um dia um dos seus membros. Quando lá cheguei, a redacção gabava o talento do Fernando Manuel. Já não estavam Alves Gomes, Arlindo Lopes, Augusto Casimiro, Hilário Matusse, Joaquim Salvador ou Mia Couto - isto para falar de nomes que me eram próximos. Estava ainda a Ofélia Tembe antes de atalhar pelos meandros da diplomacia.

 

O semanário tinha como director o grande jornalista Albino Magaia (Mia Couto fora antes director e no seu tempo tivera Magaia como chefe de redacção) e Luís David era o chefe de redacção. David era um chefe que lembrava as lendas que comandavam, com mão firme, os jornalistas e as redacções. Hoje os vocativos são outros. No meu tempo, um chefe de redacção era a figura mais temida. No caso, ele subscrevia o mito: devolvia os textos quando estes eram medíocres. Por outro lado, Albino Magaia tinha aquela adorável característica de ser assertivo com um sorriso que lhe ampliava os zigomas do rosto. Os dois faziam um belíssimo contraponto. Foi sob a batuta de ambos e tendo o Fernando Manuel e o Kok Nam como as grandes referências que vivi ali tempos jubilosos. O Kok contava histórias hilariantes dos tempos imemoriais da casa. Daria um belo filme a história desta revista e das gerações de jornalistas e histórias que a glorificaram.

 

Companheiros de redacção: Roberto Uaene, António Elias, Casimiro Sengo, Fernando Victorino, Celestino Jorge, Paulo Sérgio, entre outros. O Castigo Zita, que encontraria o infortúnio da morte numas férias em Harare, em Dezembro de 1988, aos 27 anos, era assíduo frequentador da mesma. Fazíamos uma pequena tertúlia literária no fundo da redacção. O Celestino participava com aquela sua elusiva presença. Fotógrafos: Kok Nam, Naíta Ussene, Alberto Muianga, Jaime Macamo e Jorge Tomé. Muitas destas personagens já não estão no reino dos vivos. O Eugénio Aldasse (outro que emigrou para o Paraíso) e o Sérgio Tique (brilhante caricaturista e que tinha a qualidade superlativa de zombar de todos e de tudo) faziam a maquetização. A saudosa Ana Cubasse era a nossa revisora e enchia aquelas acanhadas salas com a sua soberba e estridente presença. Foi outro tempo aquele, com outras personagens, que estão nos armoriais do nosso jornalismo.

 

Falo-vos de um tempo em que redigíamos notícias e reportagens em velhas máquinas manuais cujos sons ressoavam daquele sexto andar. Era o tempo das laudas e da composição a chumbo. Também era um tempo em que tudo parecia que estava a desmoronar, a desagregar-se. Tinha acontecido Mbuzine e o prenúncio do fim da I República. Os anos 80 foram extenuantes. Estávamos exaustos das crises cíclicas e do panorama em que tudo nos faltava. Começava a exercer-se sobre nós o cansaço, a desesperança, a descrença e o medo do futuro.

 

Para mim foram tempos paradoxais – exultantes e esgotantes. Foram dois anos igualmente fugazes, os mais belos anos da minha vida no jornalismo em Moçambique. Intensos e jubilosos.

 

Pouco depois, quase todos saímos da TEMPO. Nos finais daquela década os jornalistas impuseram a liberdade e a democracia através de uma nova Lei de Imprensa. Nos primórdios dos anos 90 o debate e a nova Constituição permitiram que houvesse outros atalhos. A guerra e a paz, o multipartidarismo e a abertura que se experimentaram estiveram na base do início de um novo caminho para o jornalismo.   Entretanto, Albino Magaia foi substituído e o declínio da publicação tornou-se irrefutável. Fernando Manuel estaria no escol dos jornalistas que iriam ser os pioneiros do jornalismo privado.

 

Carlos Cardoso falou-me desse belo projeto: um grupo de jornalistas que resolvia desfazer-se das amarras que tinham no sector estatal e fundava uma cooperativa da qual sairiam as publicações independentes. Politicamente independentes. Kok, Naíta, entre outros, estarão nesse grupo. Creio que foi um acto de grande coragem. Foi quando fui estudar para fora do país.

 

Não tenho dúvidas de que foi um tempo exultante para o nosso jornalismo, um tempo de mudanças, algumas delas radicais. Esse tempo e o papel dos jornalistas merece estudo e atenção.

 

Eu aprendi imenso na TEMPO e com aquela nobre gente. Ouvindo-os, contando histórias, muitas vezes tremendas histórias do nosso quotidiano, algumas que atravessavam as colunas da publicação que saía à sexta-feira e que as lia com um sofrido e indisfarçável prazer. A ideia da sociedade, da nossa sociedade, obtive-a ali. Preocupado com as cousas literárias, aprendi a amar o social através daqueles meus brilhantes colegas. Algumas das reportagens eram devastadoras. Lembro uma sobre o Ile que nunca me abandonou. Tínhamos experimentado como país um grau de miséria material e moral sem igual. A guerra no seu esplendor fazia de nós o exemplo (parece paradoxal usar este termo) entre os piores do mundo.

 

O Fernando Manuel não era apenas jornalista, era também escritor, um bom poeta e contista imaginativo. Não tenho duvidas de que era uma das melhores plumas do nosso jornalismo. A sua pena é de alto coturno e as suas prosas eram impecavelmente bem escritas. Valeria a pena, sobretudo os que debutam na profissão, frequentar os sepulcros e ler aquelas prosas exemplares.

 

Muita da sua saborosa prosa está reunida em dois dos seus livros de crónicas: “Chá das Sextas” e “Missa Pagã”. A crónica literária foi um género com cultores prestigiadíssimos entre nós. Cito alguns desta linhagem: Areosa Pena, Leite de Vasconcelos, Albino Magaia, Mia Couto e por aí em diante. É um género que, como se sabe, está na fronteira entre a literatura e o jornalismo. Fernando Manuel é tributário dessa nossa nobre tradição.

 

Felizmente temo-lo lido nas páginas do “Savana”. Para além disso, é autor de um livro de contos, “O Homem Sugerido” e redigiu alguns prefácios a obras de escritores da sua geração – do remoto “Xitala Mati”, do Aldino Muianga, em 1987, é caso paradigmático. Fernando Manuel tem uma língua afiada, por vezes mordaz, finamente mordaz, e é dono de um olhar subtilmente assertivo e subversivo. É um contador de histórias nato, quer sejam histórias que relevam das origens ou aquelas que se inscrevem nos labirintos e na mitologia dos subúrbios em que ele cresceu ou da sua cidade onde se afirmaria e que a viu mudar com todos os seus paradoxos, todas as suas misérias, toda a sua grandeza. Podemos até estar nos antípodas do que pensa, não temos que concordar, mas temos que conceder que estamos diante de uma escrita distinta. Respeito-o por isso. Aliás, demonizou-se entre nós a democrática e saudável divergência, a critica social, a consciência da diferença. Aquela sociedade plural e magnânima que intuíamos nos anos 90 está por cumprir, por assim dizer.

 

Quando há precisamente 30 anos, Fátima Mendonça e eu, organizamos uma antologia da nova poesia moçambicana, ele foi um dos nomes indubitáveis. Um dos poemas, quase um aforismo, intitulado “Sobre a felicidade” dizia estes três versos: “E pensar / que há gente / que me pensa feliz”. Não me ocorreu este poema quando li, há 5 anos, no semanário “Magazine”, uma entrevista sombria com o Fernando Manuel.

 

Era uma entrevista de um homem lúcido, acerbo e, fatalmente, desiludido. Dois anos antes ele ficara cego. Fazia uma análise cortante dos nossos dias e do nosso percurso. Não é incomum encontrar na tribo (na melhor acepção do termo) quem esteja desencantado. Sobretudo entre os que estão na profissão há décadas. Os tempos que vivemos, muitas vezes aziagos, tornaram proscritos muitos destes grandes profissionais. E para isso não é necessário exilá-los. Basta o descaso.

 

Não obstante, Fernando Manuel continua a publicar - para a nossa felicidade e digo isto compungido – as suas crónicas. Dita-as e quem as lê coteja a mesma escrita escorreita que ele nos habituou. Tinha antes lido uma entrevista na qual ele falava dessa experiência, dessa dura experiência da cegueira, mas neste depoimento senti não só essa dureza, mas uma profunda e lancinante tristeza.

 

Não queria terminar esta breve evocação com um travo amargo. Hoje é um dia de júbilo para o nosso jornalismo e para a nossa literatura. Quero celebrá-lo com parte dos seus melhores versos. Socorro-me, assim, em sua homenagem, destes outros versos, no caso do poema “Ma ensai”, igualmente belo, para encerrar este depoimento.

 

À noite

 

ouço Otis Redding

 

falando I´ve got dreams

 

de tardes de madeira e zinco

 

esfregando-se por entre o caniço

 

Tardes de corpos suados

 

Plásticos na apetência oculta

 

que fervilha debaixo da pele, to remembre

 

Anoitecer de salas fumegantes

 

de candeeiros a petróleo

 

luz   que se escoa

 

mergulhado aquele beco sem saída

 

numa escuridão fru fru

 

saia que já não esconde

 

o leve tremor da coxa

 

antes abrigada

 

E beijei o silêncio

 

dos lábios da Guida.

 

Fernando Manuel

 

Poeta, contista, cronista, uma das plumas mais esplendentes do nosso jornalismo e da nossa literatura, autor de algumas das mais belas páginas que, em épocas distintas, se redigiram na “Tempo” ou no “Savana”, comemora, neste dia 20 de Janeiro de 2023, 70 anos de vida. Aqui lhe deixo o meu humilde preito.

quarta-feira, 18 janeiro 2023 08:54

Governação de Filipe Nyusi: segundo Mandato!

Adelino Buque min

"A nossa agenda é desenvolver Moçambique, é fazer com que esse desenvolvimento não seja feito a custo da injustiça, da prepotência e da desigualdade. A inclusão é muito mais do que acomodação de um grupo restrito de compatriotas, seja qual for a sua origem. Incluir é ouvir os que pensam diferente, incluir é dar oportunidades iguais a todos, incluir é exercer justiça social, é promover o emprego"



In Filipe Nyusi, no dia 15 de Janeiro de 2020, tomada de posse.



O Presidente Filipe Jacinto Nyusi fez, no dia 15 de Janeiro de 2023, o terceiro ano do seu segundo mandato como Chefe do Estado moçambicano. Os discursos de Filipe Nyusi, no primeiro e segundo mandatos, foram sempre de consenso e alvo de escrutínio público pela positiva. Muitos desafiavam Nyusi para ver e avaliar a sua Governação entre as promessas e a realidade e isso faz-se através de avaliação de meio-termo e final. Mas então, como é vista a Governação de Filipe Nyusi neste segundo mandato!



Os dois mandatos de Filipe Nyusi como Chefe do Estado são caracterizados por desafios que, muitas vezes, não estavam equacionados. Se no primeiro mandato o maior desafio foi governar sem apoio dos parceiros de cooperação devido às despoletadas dívidas não declaradas, ciclones que devastaram Moçambique, o segundo mandato inicia com a Pandemia da Covid-19, seguido de ciclones e continuação do boicote da comunidade internacional no apoio ao Orçamento do Estado. Estes desafios puseram à prova a capacidade de liderança do Chefe do Estado e, até provas em contrário, com sucesso.



Digo com sucesso porquê! Questionaram alguns leitores e amigos nesta e em outras plataformas e como resposta deve-se apontar os factos corelacionados com as acções da Governação de Nyusi. Como todos sabemos, moçambicanos e não só, Moçambique vivia duas Guerras diferentes, a Guerra de desestabilização movida pelas forças residuais da Renamo, que não se conformavam com a eleição de Ossufo Momade para Presidente e o terrorismo a norte de Moçambique, mais concretamente em Cabo-Delgado.



Filipe Nyusi geriu estas duas guerras com alguma mestria. Por um lado, accionou o DDR como meio de colocar o ponto final às exigências da Renamo e, por outro, acionou o apoio internacional através do Ruanda e da SADC para fazer face ao terrorismo no norte de Moçambique, mais concretamente, em Cabo-Delgado e muito cedo se evidenciaram sucessos. No centro de Moçambique, onde a Guerrilha da Renamo actuava, cessou as hostilidades e a população retomou com sucesso as suas actividades, enquanto isso, no norte de Moçambique, as Forcas de Defesa de Moçambique com apoio do Ruanda e da SADC desbaratavam o inimigo!



As populações deslocadas, quer no norte quer no centro de Moçambique, retomaram as suas actividades e vive-se hoje com relativa tranquilidade, ou seja, no capítulo de segurança e estabilidade nacional, apesar de parcos recursos, Filipe Nyusi conseguiu manter o País estável e uno do Rovuma ao Maputo e do Zumbo ao Índico. Ainda neste capítulo, noto muita preocupação de Filipe Nyusi na formação de pessoal para fazer face à desestabilização e ao terrorismo em Cabo-Delgado. Noto igualmente a melhoria nas infra-estruturas das FDS e o exemplo é do Quartel de Boane que está a ser vedado em toda a sua extensão. Parabéns!



Na função pública, apesar de se ter decretado a não contratação de mais funcionários públicos, o certo é que os sectores de Educação e Saúde têm beneficiado de quotas periódicas e fazem a contratação. Que seja público, nenhum serviço ficou paralisado devido a dificuldades de origem orçamental, pode se falar de dificuldades, mas todos os serviços funcionam e razoavelmente. Ainda na função pública, a ousadia do Governo na criação da Tabela Salarial Única em meio de tantas dificuldades revela o interesse de promover a justiça laboral no seio da função pública. Pode-se criticar e apontar-se erros, mas só se aponta erros onde há trabalho e, mais uma vez, parabéns Filipe Nyusi.



Na área económica, destaco a produção alimentar através de programas promovidos pelo Ministério de Agricultura e Desenvolvimento Rural. Não haja dúvidas que a escolha do timoneiro para esta pasta foi um grande sucesso. Celso Correia, gostemos ou não dele, mostra serviço no sector e revolucionou a Agricultura como um todo e sobretudo na produção alimentar. Aqui, quero referir-me à produção de hortícolas diversas, cereais, carne bovina e de frangos, para além de outras espécies. Por isso, Moçambique não sofreu mais de fome aguda ou bolsa de fome consideráveis neste período.



Pessoalmente, considerando margem de erro mínimo, considero o sector Agrário de Moçambique aquele que mais resposta deu aos actuais desafios de Moçambique, mas devo fazer menção a outros sectores de actividade, como seja o de extracção mineira, com realce na primeira exportação de Gás liquefeito da Bacia do Rovuma, o que torna Moçambique um País exportador de Gás no Mundo. Julgo que, em meio de dificuldades e de boicote internacional, é urgente reconhecermos isto como um feito sem precedentes.



Depois vem a área de infra-estruturas públicas. Refiro-me à água, energia, estradas entre outras. Devo recordar aqui e agora que, no início deste mandato, o Presidente Filipe Nyusi inaugurou várias infra-estruturas de abastecimento de água, contrastando com quem está no início de mandato. Na verdade, poderia ter feito inauguração daquelas infra-estruturas no período de pré-campanha por forma a conferir maior simpatia pública, mas não foi assim. Nyusi agiu ao contrário, mostrando que não era necessário impressionar o público para ganhar votos e venceu e bem nessas eleições. A energia para todos é outra aposta de Filipe Nyusi, pode-se criticar a forma como a EDM materializa esse projecto, mas o projecto está aí e tem estado a dar conta da electrificação de Moçambique, desde as Cidades até ao mais recôndito espaço territorial.



As estradas e pontes estão a ser erguidos no País, a opção pelo utilizador pagador foi a decisão tomada neste último mandato, através da concessão de gestão das estradas nacionais e colocação de portagem ao nível das principais vias de comunicação, uma iniciativa ousada para uma sociedade que não tinha o hábito de pagar pelos serviços públicos. Existem desafios ainda, nem tudo está as mil maravilhas, como é óbvio, mas é dever de quem critica também reconhecer aquilo que é bom. Por isso digo, à entrada deste penúltimo ano de Governação de Filipe Nyusi, o balanço é francamente positivo. Recomendo ao Presidente Filipe Nyusi que não deixe o DDR a meio. Finalize Caro Presidente. Ficará na história deste País!



Adelino Buque

Adelino Buque min

Qual é a agenda política da República de Moçambique para os próximos tempos?! Esta é a pergunta que se faz de esquina em esquina, onde se encontram pessoas interessadas na vida pública de Moçambique. Outras pessoas ocupam-se de outras banalidades que não são poucas. A essa pergunta, de forma peremptória, a resposta é:

 

1)      Eleições autárquicas de 2023;

 

2)      Eleições Gerais de 2024, para as Legislativas, Presidenciais e das Assembleias Provinciais e;

 

3)      Eventualmente, as eleições para as Assembleias Distritais em todo o território nacional.

 

Dito isto, parece-me que muitas pessoas esqueceram da existência de um número quase “insignificante” de Guerrilheiros da Renamo nas matas da Gorongosa, os tais que adiaram a sua desmobilização, desarmamento e reintegração em cima da hora, alegadamente, porque o Governo de Moçambique não está a cumprir com as promessas feitas para a materialização deste programa.

 

Estranho que, depois de proceder ao DDR para mais de 4 mil homens residuais da Renamo, o nosso Governo não consiga a desmobilização, desarmamento e reintegração de menos de 400 homens, ou seja, 10% do que já conseguiu fazer e todos nós achamos isso normal.

Pois então eu não acho normal, seria de todo aceitável que o representante do Secretário-geral da Nações Unidas viesse a público, como entidade imparcial, dizer o que de facto se está a passar com o DDR.

 

O Presidente da República, Filipe Jacinto Nyusi, investiu tanto, no primeiro e no segundo mandato, para o alcance da Paz em Moçambique. Não creio que, estando próximo da meta, esteja a desistir de todo um trabalho de sucesso realizado, incluindo o risco pessoal que assumiu, ao embrenhar, mata adentro, à procura do Líder da Renamo, o saudoso Afonso Macacho Marceta Dhlakama, para com ele debater a Paz em Moçambique, com sucesso, sublinhe-se. Não pode estar a perder vigor e força quando estamos quase a “cortar a meta”!

 

Os políticos da nossa terra não se mostram preocupados com o adiamento do DDR, não se pronunciam sobre este facto e parece-me que não estão a ver a importância que tem a conclusão, com sucesso, deste processo. O Partido MDM apareceu há dias a falar da sua predisposição de participar nas eleições autárquicas e anunciou alto e bom som que estava em processo de selecção de candidaturas, falou das eleições Distritais, mas não falou de um processo tão importante quanto crucial para a Paz em Moçambique, que é o DDR!

 

Questiono-me, afinal, qual é o papel dos partidos políticos em Moçambique?! Participarem de actos eleitorais e depois desaparecerem! Ou é intervir para a melhoria da vida dos moçambicanos? E se sim, não se apercebem que a falta do término do processo de DDR constitui em si uma ameaça à Paz e pode não parecer hoje, mas, depois das eleições e dependendo dos resultados, as coisas podem mudar. Vamos imaginar que o partido Renamo averba uma derrota daquelas que chamam de “retumbante, asfixiante e demolidora” e, como nos habituou, não reconhecer os resultados…

 

A primeira coisa que fará é reconstituir as células de guerrilha e ameaçar as populações, seguido de recrutamento de mais jovens para as suas fileiras, jovens que, estando sem emprego e nem futuro à vista, não se importarão em seguir a guerrilha e criar-se o caos total.

 

Para piorar, porque não podia deixar de ser, o Governo irá responder às intenções da Renamo e aí se instalará a guerra de novo. O que nos falta para unirmos esforços em prol da Paz em Moçambique, o que nos falta para quebrarmos as diferenças e unirmo-nos por Moçambique e salvar a Paz neste território. Existem acções que são pertença do Governo do dia, mas também se pede a intervenção da sociedade para que a Paz seja efectiva.

 

Finalmente, não estou a dizer que as eleições autárquicas não sejam importantes, que as eleições gerais para as Legislativas, Presidenciais e Assembleias provinciais não sejam importantes, mas, mais do que olhar para esses actos de forma isolada, penso que seria importante olhar num quadro mais geral em que pontifica Moçambique primeiro e, se assim acontecer, a desmobilização, desarmamento e reintegração de menos de 400 homens será a prioridade das prioridades em Moçambique. Na forma como vão as coisas na “Pátria dos Heróis”, parece-me que a Paz e Estabilidade podem estar adiadas ou nem por isso!

 

Adelino Buque

sexta-feira, 13 janeiro 2023 08:33

Juventude Moçambicana abandonada!

Adelino Buque min

A reflexão de hoje é, por si só, bastante complexa e, certamente, muitas individualidades sentir-se-ão tocadas pela mesma, pois, pretendo reflectir em torno das políticas da Juventude em Moçambique. Espero que compreendam a minha reflexão como um contributo para que haja uma reflexão mais ampla e institucional, que inclua a própria juventude, de modo que, paulatinamente, os problemas se resolvam.



A minha afirmação, que é o título desta reflexão, é sugestiva para essa reflexão. Repito e reitero, a juventude moçambicana está abandonada. Não existe, no país, políticas consistentes que olham para a juventude como um activo importante para o desenvolvimento deste país, desde a educação, emprego, habitação e saúde, para não falar de coisas que, na ausência destas, podem considerar-se um autêntico luxo.



Vou dar um exemplo com relação à educação. Estamos  num período em que se fazem matrículas e exames de admissão para as Universidades Públicas, ou para a Universidade Pública, Eduardo Mondlane. Fala-se de mais de 25 mil candidatos para menos de 5 mil vagas e isto não é nenhuma novidade. Os números de candidatos crescem a cada ano enquanto as vagas “definham” e pouco se faz para inverter a situação, pelo menos que seja público, por exemplo.



Existindo várias Universidades Públicas por todo o país, para diminuir a pressão sobre a Universidade Eduardo Mondlane, porquê todas essas Universidades não adoptam um determinado período para fazerem em simultâneo os exames de admissão! Sim porque, na minha opinião, evitaria que os mesmos jovens deambulassem de um lado ao outro e repartia-se oportunidades. Um jovem de Maputo, com alguns recursos familiares, facilmente se desloca a uma província para fazer exames e retornar a sua zona de origem, mas, infelizmente, o jovem naquela província perde a oportunidade a favor de quem tem melhores condições, claro, relativamente!



No ensino profissional, igualmente, adoptar-se-ia a medida sobre os ingressos. Deste modo, dava-se sentido à descentralização do ensino. Mas no que hoje se observa, parece-me que o jovem desfavorecido continua cada vez mais desfavorecido e o favorecido vai levando vantagem cada vez maior. Eu penso que a ideia de descentralizar foi boa, mas que cada Universidade tenha o seu calendário Académico parece-me desajustado com a realidade actual de Moçambique. Deixo à reflexão!



Sobre o emprego, hoje em dia fala-se muito de empreendedorismo. Tudo bem,  mas quem absorve o produto do jovem empreendedor? Quem contrata o jovem empreendedor saído das escolas do Ministério do Trabalho e Segurança Social!? Qual é a instituição que nos pode dizer que para a manutenção da canalização deu-se prioridade aos cursantes do ano X ou Y, a existir, porque também não devo dominar tudo. Por favor elucidem-me, qual é a instituição que deu prioridade a empresas de jovens e sem favoritismo!



Esta questão de emprego e oportunidades deu um passo significativo aquando da adopção da Marca “Made in Mozambique” em que a prioridade era dada a empresas nacionais, quer para fornecimento de bens e serviços, como para aquisição de produtos por si manufaturados e as empresas cumpriam com determinados indicadores. Eram distinguidas com a Marca “Made in Mozambique” que passava a ostentar nos seus produtos. Quer queiramos quer não, foi um grande incentivo e, com o tempo, novos desafios se iriam criar para a Marca, onde está!



A habitação para Jovens! Muito se fala, mas pouco se faz por uma habitação para os jovens e aqui não me refiro exclusivamente à construção e posterior venda de habitação do tipo social. Refiro-me à construção de habitação para venda a jovens com capacidade para o efeito, aqueles que possuem rendimento fixo, mas também quero me referir à infra-estruturação da terra para posterior atribuição de talhões a jovens com indicação sobre o tipo de casas a construir e com uma planta tipo disponível ao nível do Município e ou Administração Distrital, onde, por valores simbólicos, o jovem pode adquirir essa planta completa e erguer sua habitação.



Isto não é utopia, eu próprio adquiri um terreno na Matola C. Na altura, aquele espaço tinha plantas tipo de 2 e 3, com características evolutivas, onde o beneficiário poderia adquirir e começar por construir o quarto ou a sala e ir evoluindo até concluir a sua habitação. É verdade que essas plantas não se destinavam a jovens embora na altura fosse jovem. Era uma planta disponível para quem tivesse adquirido o terreno naquela zona.



Dito isto, devo dizer que, mesmo a boa experiência que a Cidade da Matola tem, já não faz seu uso. Neste momento, não existem plantas Tipo disponíveis à venda no Município da Matola, uma coisa que se fez no passado, hoje, se adquires um terreno naquela zona deves recorrer a um arquitecto para fazer o desenho e posterior submissão ao Município para aprovação e posterior construção. Um processo longo, caro e moroso, o que faz com que as pessoas construam de forma desordenada e sem licenças de construção, levando a sanções Municipais!



Apesar das vantagens claras de Autarcização, não me parece existir um Município sequer que se tenha dignado a parcelar espaços para a juventude. Trago aqui uma excepção do Distrito de Marracuene que ensaiou parcelar e distribuir, mas, devido à demanda, era único local onde os Munícipes de Maputo recorriam para adquirir espaço, creio terem parado de momento ou pelo menos não se tem feito publicidade que se fazia antes. Ainda assim, não ofereciam planta Tipo e nem estava definida a tipologia de casas a construir. Tudo isto, meus caros, é a falta de política de habitação para jovens.



Muitos poderão analisar este artigo de opinião a olhar exclusivamente para a Secretaria do Estado da Juventude e Emprego. Mas não é esse o propósito desta reflexão. Essa entidade não tutela terra, essa entidade não possui poder sobre os concursos públicos a serem feitos nas instituições públicas, essa Secretaria não possui poder sobre Ministérios para determinar quem deve fazer este ou aquele trabalho. Este artigo propõe uma reflexão global dos problemas da juventude moçambicana.



Dirão outros amigos, o que tem feito a juventude para merecer essas políticas!? É verdade que nada, mas o Governo de Moçambique, uma vez eleito, deve proporcionar esses direitos, não é preciso a reivindicação de grupos juvenis para ver seu direito realizado. Eu penso que não porque seria o mesmo que incitar grupos a fazerem essa reivindicação e as políticas de um Estado não devem depender de rebelião de grupos específicos! Caso para se dizer: a nossa Juventude está abandonada.



Adelino Buque

sexta-feira, 13 janeiro 2023 08:24

FERNANDO COUTO

NelsonSaute

“Elegância devia ser o teu nome

ou mesmo graça e harmonia

ou ainda leveza, etérea leveza.”

 

Fernando Couto

 

Convivi inicialmente com o poeta Fernando Couto quando entrei para a Escola de Jornalismo em 1987, que ele dirigia, com a ajuda da mulher, Maria de Jesus, ambos de grata memória, pela excepcional e afetuosa forma como nos acolheram e nos trataram. Fernando era acanhado quanto aos afectos, Maria de Jesus era explosiva e arrebatadora na afeição. Muitos de nós éramos miúdos e encontrávamos neles um verdadeiro arrimo. Um ano depois, no rescaldo de uma vivência de 35 anos em Moçambique – onde vivera grande parte da sua vida, tivera filhos e escrevera livros –, ele despedia-se do país. Foi motivo para que eu realizasse uma longa e, talvez, uma das primeiras entrevistas literárias de que me lembro na minha vida.

 

No intervalo das aulas, muitas vezes, eu ia ao gabinete do Fernando e ficávamos horas a fio a conversar sobre o ofício da poesia. Sobre os poetas e o sobre o seu destino.  Quando em Maio de 1988 fui entrevistá-lo eu tinha lido quase tudo o que ele até então publicara e seguira algumas das suas sugestões de leitura. Fernando era um grande leitor de poesia.  Hoje, quando passam 10 anos sobre o seu desaparecimento, quero aqui evocá-lo.

 

Fernando Couto chegara à Beira em 1953 e fora na Beira, em 1959, que se estreara com o livro “Poemas junto à fronteira”. Nesse mesmo ano, Rui Knopfli publicara “O País dos Outros”, também livro de estreia. Couto haveria de editar à altura dessa memorável entrevista, sucessivamente: “Jangada do Inconformismo” (1962), “Amor Diurno” (1962), “Feições para um Retrato” (1971). Nas muitas conversas que tínhamos era frequente falarmos de Eugénio de Andrade, um poeta que povoou a minha juventude, e que era um dos poetas portugueses que ele mais admirava e o haviam influenciado.  Era dos seus autores electivos. Aliás, não esqueço nunca estes versos de Eugénio de Andrade – no dia 19 de Janeiro assinala-se o centenário de seu nascimento - que eram igualmente caros ao Fernando Couto:

Estou de passagem: / amo o efémero”.

 

Da lavra de poetas portugueses que o tinham entusiasmado poderia incluir Antero ou Pessoa. O Fernando era de uma grande erudição, embora não fizesse gala nisso, nem a exibisse. Paul Éluard era a grande influência dos poetas franceses que ele sofrera, a par de Louis Aragon ou Supervielle (Jules Supervielle, poeta francês nascido no Uruguai, que eu não ouvira falar até à data). Mas havia muitos, muitos poetas que ele admirava, que ele lia, que ele admirava e alguns tantos que ele traduzia. E ele os traduzia primorosamente.

 

Naqueles anos em que a revolução catapultava todos os entusiasmos e estava na origem de muitos equívocos – como definir funções iminentemente patriotas para a poesia – ele ensinou-me que esta (a poesia) deveria dar livre curso à experiência mais profunda do ser humano. E disse-me algo que até me deixou estupefacto: “os poetas são loucos”. A poesia para ele resultava desse ímpeto interior, dessa necessidade de dar voz ao mais profundo do ser humano, muitas vezes às cegas e de forma imperiosa, impetuosa posso eu acrescentar agora. A poesia era algo que vinha do mais arraigado do seu ser.

 

Disse-me o Fernando Couto e eu anotei: “Acredito, como Maomé, que os poetas são loucos, que fazem e escrevem loucuras e andam por caminhos ínvios como cegos”. Eu o interrogava e o ouvia com profunda admiração. Ele falava-me como se me segredasse o mundo. Por vezes, sussurrava.

 

Falámos longamente da Beira onde coordenou um suplemento literário do “Diário de Moçambique” e onde foi, com Nuno Bermudes, impulsionador das coleções Prosadores e Poetas de Moçambique, levadas a cabo no “Notícias da Beira”. Foi uma actividade importante. Os livros de poesia eram de uma grande beleza. Editou poetas como Glória de Sant´Anna (“Poemas do Tempo Agreste”) ou Rui Knopfli (“Máquina de Areia”). Pertenceu ao grupo que criou o Cine-Clube da Beira, participou da criação do auditório-galeria da cidade, onde se realizavam exposições, recitais, conferências, na emissora do Aeroclube tinha dois programas semanais, um deles com o nome de “Luar da Terra”, título que pilhara a André Breton.

 

Mas também quis saber da sua vida como tradutor. Ele chamava-lhe vício. Traduzira, entre outros livros, o mítico “Rubayyat”, do poeta Omar Khayyam (1048-1131), que o Luís Carlos Patraquim me dera a ler, em 1985. Disse-me Fernando Couto que amava e admirava este poeta persa que se rebelou contra o Islamismo, adoptando um hedonismo que poderia dever muito aos poetas e filósofos gregos, mas também aos poetas e filósofos árabes pré-islâmicos. Deleitara-se a traduzir aquela poesia que é um cântico de amor à vida, lúcido, desiludido, amoroso, sensual e delicado. E, todavia, há quem pretenderia tomar “Rubayyat” como expressão do amor divino, quando, a seu ver, era exactamente o amor carnal e a sensualidade que o poeta persa celebrava.

 

Naqueles anos tentávamos atalhar um caminho da poesia lírica, do amor, da sensualidade, que estava nos antípodas do que fora o excurso poético moçambicano desde os primórdios da independência até então. Claro que havia excepções – Luís Carlos Patraquim (“Monção”) ou Mia Couto (“Raiz de Orvalho”), a meu ver, são paradigmas dessa excepcionalidade –, mas o tom geral e os ditames eram esses. Ouvi-lo discorrer assim era uma espécie de lenitivo.  Senti que Fernando Couto, de algum modo, dava-me os argumentos que sustentavam a via que nós, com alguma rebeldia, intentávamos. A esta distância, isto parecerá uma frivolidade, mas à época, o lugar da poesia chamada de combate, ou engajada, ou mesmo revolucionária, o lugar dessa poesia digo, era inequivocamente decisiva. Sendo que nós, alguns de nós, víamos na poesia lírica ou intimista, o percurso que queríamos fazer e, assim, estávamos a libertar-nos de um anátema. Um pesado anátema.

 

Para mim, aquela conversa com o poeta Fernando Couto teve o condão de me animar, ainda mais, a prosseguir esse caminho. Aliás, Fernando Couto, que também coordenara, anos mais tarde, no “Notícias”, em Maputo, um outro suplemento literário, era um homem que prezava a exigência e a qualidade artística, por assim dizer, da expressão literária e não se deixava amarrar aos ditames da revolução. Era um exegeta. Nas páginas daquele diário ele publicou, entre outros, dois jovens promissores que morreram precocemente: Isaac Zita (1961-1983) e Brian Tio Ninguas (1961-1987).

 

Isaac Zita foi a primeira grande revelação na ficção no pós-independência. Morreu com apenas 22 anos quando frequentava a Faculdade de Educação. Nascido em 1961, publicou contos no “Notícias” e na revista Tempo (por iniciativa de Albino Magaia, que escreveu um esplêndido prefácio, anos depois, ao seu livro póstumo “Os Molwenes”). Morreu em 1983. Em Maputo, na zona da Sommerschield, há uma rua, com o seu nome.

 

Fernando Couto: “O Isaac Zita possuía um sentido de contista que considerei e considero espantoso, incomparável por se tratar de um jovem proveniente do ensino técnico, tão tímido quanto modesto, tão inexperiente da vida, tão quedado dos ambientes ditos culturais!”.

 

Brian Tio Ninguas, pseudónimo do jornalista Baltazar Maninguane, pertencia ao quadro do “Notícias” quando morreu prematuramente em 1987. Permanece inédito, há poemas seus publicados por Manuel Ferreira na revista “África” e está antologiado em Moçambique.

 

Este era o Fernando Couto que se revelava de corpo inteiro naquela ocasião. 35 anos depois de Moçambique ele retornava à Portugal. Não foi por muito tempo, felizmente. Em meados dos anos 90, Mia Couto, Manuela Soeiro (do Mutumbela Gogo), Ricardo Timane (perecido, infelizmente) e eu, formamos uma sociedade editorial que se associou à Caminho – a Ndjira. O Fernando regressara de Portugal e juntou-se-nos ao projecto. Quando foi preciso encontrar um editor a tempo inteiro, ali estava ele com toda a sua generosidade, a sua imensa cultura e o seu avisado saber.

 

Tive o prazer de lá editar, sob a sua responsabilidade, anos mais tarde, um livro de poesia, “A Viagem Profana”, título que ele dizia apreciar bastante. Um editor atento e dedicado. Um homem interessado pelo trabalho dos outros. Eu via nisso uma grande generosidade. Ele haveria, no entanto, de acrescentar à sua estante de autor: “Monódia” (1997) e “Os Olhos Deslumbrados” (2001).

 

A 10 de Janeiro de 2013, Fernando Couto apartou-se deste mundo. Tinha 88 anos. Não sei se o celebraram agora por esta efeméride. Felizmente, os seus filhos criaram, em Maputo, a Fundação Fernando Leite Couto, que honra a sua memória e está na origem de uma importante actividade cultural e cívica na cidade. Quanto a mim, guardo-o ciosamente na memória, sobretudo pelas conversas quase secretas e subversivas que tivemos, primeiro na Escola de Jornalismo, nos longínquos anos 80, mais tarde na Ndjira, ou noutros convívios literários, nas quais muito aprendi do ofício e da loucura de ser poeta.

 

O Fernando Couto era um homem de uma grande elegância, de uma incomensurável sabedoria e de uma humildade extrema. Não tinha soberba. Era um homem que amava poetas e partilhava esse amor ineludível pela poesia e pela vida. Era, eu diria até, de uma grande humanidade. Viveu até ao fim fitando a vida com “os olhos deslumbrados”. Também aprendi com ele a deslumbrar-me com os “milagres da vida”, como ele queria neste belíssimo poema:

 

São estes ainda,

os olhos da infância,

deslumbrados,

deslumbrando-se

aos milagres da vida:

a intacta pureza das crianças,

os luminosos rostos femininos,

a limpidez das nascentes,

os cambiantes do fogo...

tudo, tudo quanto é beleza

ou lhe deslumbram beleza

os olhos deslumbrados.

 

(Fernando Couto)

 

Cidade do Cabo, 12 de Janeiro de 2023

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