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segunda-feira, 23 janeiro 2023 08:17

Fernando Manuel/70 anos: uma bóia luminosa que sigo há anos

Escrito por

AlexandreChauqueNova

Se eu tivesse que escrever uma carta ao Fernando Manuel, tinha que fazê-lo com a certeza de que sou digno de tal acto, não só devido a minha incapacidade conjuntural, mas porque estou diante de uma figura de porte intelectual honesto e indiscutível. É por isso que tremo ao tentar rabiscar algumas linhas em homenagem ao “Nandinho”, cuja escrita pujante esconde um homem tímido, eivado de cultura e conhecimento, demonstrados nos textos que ele vem publicando incansavelmente, e que o vão tornar num dos mais importantes cronistas do nosso tempo.

 

Escritor e poeta de verbo sólido e vocabulário caudoloso, Fernando Manuel completou este mês o seu septuagésimo aniversário natalício e eu, na impossibilidade de o abraçar em carne, fiz-lhe uma chamada telefónica com o intuíto de lhe desejar muitos parabéns e aproveitar a ocasião para rememorarmos momentos intensos que vivemos juntos em vários lugares, sem qualquer compromisso que não fosse o de dar azo à vida.

 

Falei-lhe da sua cegueira na cavaqueira telefónica que durou cerca de quinze minutos e fiz-lhe uma pergunta que nunca tinha feito antes nas várias tertúlias que temos tido por via do celular, e que seria descabida num dia como este, se não fosse o conhecimento profundo que tenho do Fernando Manuel. Pode ser que haja algumas feridas dolorosas dentro deste homem, provocadas pela impossibilidade de voltar a ver as coisas mais belas que já observou na vida, mas toda essa limitação é suplantada pela imensa poesia e extraodinária capacidade de sublevação que moram em “Nandinho”.

 

Qual é a sensação de se ser cego? Fernando Manuel desatou às gargalhadas, como se a cegueira lhe desse alegria, mas é mentira, ele tem a indismentível saudade da liberdade, quando caminhava segundo um inabalável cicerone que são as palavras. Escritas e buriladas no silêncio das noites e muitas vezes no ram-ram das Redacções para onde  jamais voltará, nem que o deseje ardentemente.

 

Perguntei-lhe ainda assim: não tens saudades das tuas putas? Fernando Manuel voltou a troar uma gargalhada que desta vez pôs a nu toda a rusticidade da sua voz, que muitas vezes cantou em paródias, em celebração da existência, e a resposta ficou-se por esse riso comovente de um ser condenado pela cegueira a nunca mais contemplar o azul do céu e os pássaros planando nos finais de tarde, na despedida do dia.

 

“Agora vivo de sons!” Na verdade será a música e o tacto, os maiores companheiros do Fernando Manuel, que me ofereceu há dois anos o livro da sua lavra, “O Homem sugerido”, que fiz questão ler para ele, no dia do seu aniversário, um excerto da crónica “Alucinações” , Abandono o brilho ténue das flores que tremulam à luz no cimo das acácias e perco-me no restolhar das folhas sob o ligeiro contacto dos seus pensionistas, pássaros procurando abrigo para mais uma noite e faço-me à trégua.

 

Atrás, na varanda, na coluna, fiquei eu. Aguardo.

 

Este é o presente que dei ao Fernando Manuel, no último domingo, com um abraço profundo e no fim ele disse: muito obrigado por teres te lembrado de mim!

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