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terça-feira, 19 janeiro 2021 09:44

Mário Ferro

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Um dia, tinha eu 20 anos, a idade da minha filha Mayisha hoje, desci a pé pela Vladimir Lenine abaixo e fui ter ao mítico jornal Notícias, na vetusta Joaquim Lapa. Pedi para falar com o Chefe de Redacção e este recebeu-me de imediato. Ouviu-me com parcimónia. Creio, a esta distância, que fui bastante ousado: propunha-me a ser colunista do jornal. Levava comigo duas laudas.

 

Mário Ferro assentiu e deu-me uma coluna. Advertiu-me que seria na página 3. Ele cogitava abrir portas para jovens escritores e fê-lo com denodo. Na última página pontificam os nomes estelares, entre eles o Albino Magaia, o Leite de Vasconcelos ou o Mia Couto.

 

Aprendi a batucar prosas literárias com velhos mestres brasileiros. Carlos Drummond de Andrade, antes de todos. O seu livro Fala, Amendoeira serviu-me de viático para a jornada. Lia-o com método. Lia outros tantos cronistas: Rubem Braga, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. Quase todos mineiros, à excepção do velho Braga. Outro grande mestre no género foi o meu amigo Baptista-Bastos. Provavelmente, o maior cronista português do século passado. O livro Cidade Diária foi um verdadeiro manual.

 

Aqueles dias aturdidos, aqueles meses longos, aqueles anos intermináveis, vívidos e sofridos. O quotidiano, o nosso quotidiano, enchia-nos de vozes que habitavam os nossos textos. Era um quotidiano duro, difícil, dias do fim de um tempo, dias do fim de uma era. Mas havia uma coisa que não vejo hoje: humanismo. Éramos solidários, próximos, humanos.

 

Porfiávamos, naqueles textos breves e urgentes, a nossa esperança. Escrever, naqueles dias, por aqueles dias, era uma espécie de um sobressalto de quem apostava no futuro. Eram dias duros, disse-o. Os de hoje não são menos. As nossas crónicas, as nossas histórias, recortavam-se nessa gente anónima, viviam dessas vozes sussurradas, de gente humilde.

 

Vivíamos, escrevíamos, amávamos sem um manual de sobrevivência. Contudo, éramos lidos. Hoje quem nos lê? Com o advento da televisão e as telenovelas, primeiro, e, depois, com a revolução dos telemóveis e de seus avatares, a leitura tornou-se obsoleta. A esta distância, digo, éramos felizes e não sabíamos. Que belos e pungentes tempos!

 

Devo ao Mário Ferro a realização daquele sonho de Escrevedor de Destinos. Num livro que leva esse título, redigi um texto em sua homenagem. Num país onde praticamos o descaso em relacção aos nossos melhores, quis lembrar-me dele em vida. A omissão, o olvido e a desmemória são práticas comuns na Pátria. Cá por mim, curvo-me ao Mário Ferro. Obrigado, meu velho Mestre, por teres acolhido a minha canhestra “tabuleta da oficina”, que saía justamente às terças-feiras, como hoje, no dia em que te lembro e exulto, comovidamente, a tua memória.

 

Nelson Saúte

Sir Motors

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