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Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI
Jorge Ferrão

Jorge Ferrão

Para este natal, irremediavelmente, não desfrutaremos do comovente e eloquente sermão do Padre Giuseppe Frizzi. Ele fez outras opções. Será o orador de honra  para uma outra plateia distinta, onde se encontra o Beato José Allamano, Beata Irene Stefani e outros de privilégios santificados,  calmarias abençoadas e eternas redenções e dos seus colegas combatentes crónicos Namúlicos: Franco Gioda e Francisco Lerma Martínez.

 

Nesta ausência anunciada de Padre Giuseppe Frizzi, sobram as lembranças, as memórias de um  irreverente pensamento filosófico, de um crítico linguístico e abnegado defensor da cultura Macua-xirima. A tríade Frizzi, Gioda e Lerma engajou-se para a personalidade cultural do povo Macua. Nas nossas preces, recordaremos das missões de Mitucué, Cuamba, e Maúa. Faremos uma noite de consoada, no seu centro de investigação Macua-Xirima, relendo o seu dicionário Xirima-português, a gramática de alfabetização, a antologia bilíngue da biosofia e biosfera xirima, e louvaremos o Senhor com os livros de Canto feitos por ele como Mavekelo ni Itxipo (Oração e Cantos). E contemplaremos a beleza da arte Macuana que nos conduz ao mistério da encarnação que ele, traduzindo o Evangelho de João “E o Verbo se fez carne” (João 1, 14), na língua Macua todos repetirão: “Muluku ahipaka Muthu”- num acto de memória e memorial que toda a criatura possa louvar a Deus em todo tempo e lugar.

 

Louvar a Deus sim, diz o Padre Frizzi, mas na sua própria identidade cultural. Onde o africano-Macua é Cristão sem deixar de ser africano Macua. Porque o espirito de Deus já se manifestou antes do missionário chegar naquela cultura africana-Macua. É nesta lógica dialógica que o padre Giuseppe Frizzi coloca-se na esteira de Justino, filósofo e mártir (Logos seminal), Karl Rahner (Os cristão anónimos), José Filipe Couto (a Salvação dos não Cristão) e Raimon Panikkar (O Cristo desconhecido do Induísmo). Por isso, para Frizzi, a missão é recolha e não é semear. Ser missionário é viver com o povo através do instrumento linguístico performativo é um autêntico agir comunicativo com a cultura. A cultura aprende-se, vive-se e precisa fazer-se parte integrante da cultura. É isto que o padre Frizzi foi. Tornou-se macua entre os macuas. Viveu macuano entre os macuas e valorizou a personalidade da cultura macua entre os macuas e para os macuas e de consequência para a humanidade inteira.

 

Frizzi foi Missionário da Consolata, muito ousado, engajado e sobretudo, soberbo amante da língua macua-xirima. Escreveu um dia que, em África, se perpetra a extinção de uma das espécies de fauna e flora, mas do ponto de vista antropológico seria, ainda, mais trágico constatar que se esta marginalizando e condenando à morte todo o capital das inúmeras línguas maternas, porque consideradas atraso de vida e inúteis, elas parecem significar um impedimento ou condicionante para uma entrada da localidade e oralidade na modernidade, como se essa globalização enfatizada, implicasse, necessariamente, a exclusão da localidade, da oralidade e de sua história.

 

O Doutor e investigador Giuseppe Frizzi pode não ter sido dos mais aclamados e famosos padres que chegou, viveu, trabalhou e seguiu para o encontro com o Senhor, em Moçambique. Porém, convenhamos, foi um dos que mais pesquisou, bebeu dos capitais antropológicos guardados na oralidade e converteu-se num militante e combatente consequente e apaixonado pela riqueza linguística e cultural dos macuas-xirimas. Nessa oralidade redescobriu expressões axiomáticas de quase todas as flexões macuanas existentes, Niassa, Nampula, Zambézia e Cabo Delgado. Pode-se afirmar, sem reticências, que G. Frizzi fez uma revolução copernicana à filosofia Africana com os seus conceitos de “Biosofia e biosfera Macua-xirima” para buscar os segmentos e fragmentos da mesma cultura africana-Macua Xirima, sem os próprios filósofos africanos aperceberem-se, pois introduziu um modo de filosofar no silêncio onde a dialéctica é dialógica e não a hodierna forma de filosofar que é uma autêntica dialéctica conflitual. E nesta forma, Frizzi coloca-se na linha traçada por Fabien Eboussi Boulaga, segundo a qual a filosofia africana deve ir além dos conflitos, e buscar a cultura africana como base para o próprio filosofar.

 

Giuseppe Frizzi, à semelhança de tantos outros missionários da Consolata, pregou e evangelizou esse distante e esquecido Niassa. De origem italiana, nascido a 14 de Maio de 1943, mas que nunca quis, sequer fazer alarido, era e identificava-se como moçambicano e falava, regra geral,  em macua com quem lhe cruzava o caminho e tornou-se Moçambicano, portanto, é Moçambicano. Entrou para o Instituto das Missões da Consolata em 1954, tendo sido ordenado sacerdote em Dezembro de 1969. Foram mais de 52 anos de serviço bíblico e, principalmente, de pesquisa da sua língua favorita o macua-xirima.

 

Dizia, com frequência, que os estrangeiros se enamoravam da língua macua, portanto, seria incompreensível que isto não acontecesse com os donos desta cultura e desta língua, que em sentido contrário assumiam, em muitos casos, uma atitude passiva e até de indiferença. Vivia preocupado e assombrado com o facto de quase todas as traduções, pesquisas etnográficas e etnológicas publicadas serem feitas, grosso modo, por missionários e missionárias, agentes pastorais da igreja. Isto, dizia, tinha um valor cultural imensurável, porém, sem sinais evidentes de continuidade destas pesquisas e estudos pelos donos da língua.

 

Em 1998, o Presidente Joaquim Chissano visitou o distrito de  Mauá, Niassa, e travou contacto com o Padre Giuseppe Frizzi, no coração do seu centro cultural e bibliotecário designado CIMX. Uma espécie de santuário de repositório de pesquisas que nunca publicou. Este centro realizava palestras, cursos, traduções e publicações em xirima. Não tardou para que o Presidente  constatasse que o Padre vivia em condições difíceis. Pareceria alheio ao essencial e ao conforto. Uma espécie de ser aculturado, que dormia numa esteira e tinha o mínimo de conforto. O padre explicou que ele adoptara aquele modelo de vida, desde que havia chegado a Moçambique, em 1972 depois de ter obtido o doutorado em Exegese Bíblica em Múnster - Westfália, Alemanha, mesma universidade onde doutorou-se o Padre José Filipe Couto em Teologia.

 

A sua preocupação, explicou ao Presidente Chissano, era que as igrejas mostravam uma sensibilidade linguística e pastoral bem superior que todos os empreendimentos do Estado juntos. Deveria ser o Estado que se deveria preocupar com a política linguística, com o ensino bilíngue e com a valorização do património linguístico de que o país era possuidor, porque para o Frizzi a língua é o veiculo cultural de identidade de uma cultura e de um povo. Em outras palavras, podemos dizer que Frizzi concorda com o filósofo Martin Heidegger quando diz que a língua é o pastor do ser, e com o antropólogo maliano Amadou Hampâté Bâ que afirma que a língua em África é criadora e a palavra recria a cultura dentro do processo histórico cultural.

 

Durante o período da guerra civil, e até a actualidade, afirmava que as publicações litúrgicas, catequéticas, bíblicas e científicas, além da sua específica tarefa, haviam sido responsáveis pelo trabalho de alfabetização de adultos, novamente, bem superiores aos empreendimentos das instituições públicas. Milhares de homens e mulheres haviam aprendido a ler e a escrever, a sua própria língua, e até em português, frequentando a catequese na língua local. Parecia uma utopia metodológica funcional.

 

Foi durante esta visita que ousou provar ao Presidente que não se deveria olhar para Moçambique artístico como limitado às esculturas Macondes, e um pouco mais. Existiam outras expressões artísticas e culturais como as esculturas e pinturas Macua-xirima, que embelezam igrejas, museus e habitações em Moçambique  e no estrangeiro. A sensibilidade artística xirima quer sob a perspectiva sintética, como simbólica e monumental, recordava o romântico medieval que conquistava os interessados pela arte. Mas, o valor mais importante residia nos provérbios que ele considerava como possuindo um valor de literatura oral, sapiencial e poética. Era, então, essa dignidade estética e consistente  da oralidade macua.

 

Com outros missionários no distrito de Mauá e, em particular, com o Padre Francisco Lerma, seu melhor amigo,  dedicou-se ao estudo da língua e da  cultura Macua-Xirima e criou o Centro de Investigação Macua-Xirima. Em 3 de Dezembro de 2009, a Pontifícia Universidade Urbaniana de Roma conferiu-lhe o doutoramento honoris causa em Missionologia. Nesta ocasião falou sobre as ínguas ocidentais, comparando ao macua-xirima. Era o princípio de um teorema namúlico , em tonalidade feminina, matriarcal e nocturna lunar. Uma espécie de antropologia do domínio do masculino sobre o feminino. Para ele, era uma simbiose sinergética dos dois hemisférios antropológicos.

 

Por ser de uma cultura não sexista, esta língua tinha a possibilidade de apresentar uma proposta complementar a comum concepção do religioso e do teológico. Padre Frizzi participou no processo para a beatificação da Irmã Irene Stefani na apresentação do milagre: da multiplicação da água (1989), e que foi o motivo pelo qual a irmã foi beatificada. Padre Giuseppe Frizzi não foi jamais referenciado como milagreiro, porém, seus feitos, sem dúvidas, fizeram dele um dos maiores responsáveis pelos novos percursos e itinerários teológicos e linguísticos, não só possíveis, mas, também, imensamente desejáveis. Também nunca foi mencionado como filósofo, mas as suas obras contribuíram para a mudança do paradigma filosófico africano.

 

Para os Macuas o dogma é: Ninkhuma Onamúli! Onamúli Innotthikelawo! -Do Namúli viemos! Ao Namúli regressaremos! Portanto, o padre Giuseppe Frizzi encontra-se no Namúli onde sempre foi crónico e sempre desejava regressar ao Namúli sendo um Macua fiel.  E cada macua onde quer que ele se encontre deve saber que do Namúli viemos e ao Namúli regressaremos! Por isso, como ele, só podemos dizer : Pwiya relihani Africa! Amém Aleluia

Nas primeiras duas décadas do século XIX, a ciência conseguiu obter uma quantidade incalculável de conhecimento sobre a psicologia e, convenhamos, sobre a biologia dos humanos. Mas, esse património não está ao alcance da maioria dos cidadãos. Todavia, se por um lado, as elites políticas e económicas são detentoras desse conhecimento e usam-no conforme sua conveniência; por outro, a maioria das pessoas continua alheia e negligenciada. É só observarmos como a neurociência é usada para incrementar as vendas e para influenciar politicamente as tendências de voto e controlar o comportamento humano. É evidente que a ignorância facilita a acção do poder sobre a sociedade.

 

As estratégias de manipulação, em larga escala, têm o pressuposto da manutenção do controle sobre as massas e do poder.  Reduzir, no máximo, a capacidade analítica e crítica e, principalmente, a autonomia da maioria das pessoas. Estas são algumas das constatações de Noam Chomsky, que estuda as estratégias de manipulação em massa.

 

Pensando nestas posturas, nos populismos e populistas, na manipulação de informação, que assolam o mundo, em diferentes escalas e situações, torna-se recomendável reler 1984, um dos mais aclamados livros de George Orwell. Em abono da verdade, este livro é uma narrativa recomendável, tendo sido, inclusivamente, considerado como uma das melhores obras para  entender a manipulação de massas e o controle da vida das pessoas. 1984 não é, apenas, a mais reconhecida, mas uma das mais fascinantes descrições desse fenómeno que se ramificou, um pouco, por todos os quadrantes, nos últimos tempos. Não é por acaso que as edições europeias voltam a publicar hoje, em massa, e a ganhar dinheiro com isso. É porque, em todo o Mundo há aquilo que o filósofo Rob Riemen chama eterno retorno do fascismo.

 

George Orwell, numa espécie de ficção utópica e distópica, reflectiu o que poderia ocorrer numa sociedade altamente vigiada, sobretudo, quando essa obsessiva vigilância transforma-se numa forma de controlar as pessoas e as suas liberdades individuais. Em 1984, o autor descreve um Estado autoritário que impõe um regime de vigilância sobre a sociedade. Para o efeito, foi criado um partido designado “Ingsoc” que impunha essa vigilância à praticamente todas as pessoas. Ninguém ficava imune a essa cerrada vigilância.

 

O lema do partido era “guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força”. Concomitantemente, existia um Ministério da Verdade, que advogava a infalibilidade partidária, portanto, nunca errava. Depois, o Ministério da Paz, responsável pela guerra, o Ministério da Fartura, responsável pela economia e, finalmente, o Ministério do Amor, cuja responsabilidade recaía no controlo da população através da espionagem.

 

Na descrição, a população vivia em silêncio. Era uma forma de estar, e muito conveniente. Era uma espécie de coragem para o silêncio, que tipifica a maioria das pessoas, que preferem um resguardo do que colaborar com propostas e ideias para fortalecer as suas sociedades e países. Era uma espécie de dar voz ao silêncio, num modelo de silêncio do período da inquisição, quase roçando a cobardia. Esta é postura de muitos que, mesmo querendo dar uma opinião, qualquer que seja, encontram todos os receios para assim não o fazer.

 

A estes silêncios, se juntou uma certa tendência para a paralisia da acção social. Portanto, se consolida uma espécie não de silêncios, mas de uma certa coragem necessária para exercer o direito a voz do silêncio. Exige-se coragem para o silêncio e para a inacção. Paradoxos de um pós-modernismo amorfo.

 

A voz e a coragem do silêncio nos recordam até da razão populista. Quer dizer, redefinir e ressignificar estes silêncios, inactividades e os populismos que usam o discurso democrático com outros propósitos. Estes são os silêncios que não se conseguem opor à manipulação, pois, este transformou-se num método de construção retórica do povo e do político, do inimigo e dos fiéis, enfim, de todas estas construções sociais que poderiam ser designadas por “ideologias” de coragem para os silêncios e para a paralisia à acção social.

 

Cooptamos a liberdade em nome de princípios e regras que só nós mesmos acreditamos e fazemos delas indiscutíveis. Ganhamos crenças de que as nossas teorias são as melhores e as únicas possíveis. Na realidade, falamos muito e escutamos pouco. Nasce aqui este debate sobre a coragem para o silencio, tão necessária como treinamento pedagógico para assistirmos o erro sem ter que falar. Quer o silêncio, como o próprio populismo viraram essa forma complexa de articulação de demandas em determinada formação social e da representação simbólica designada vazio. (X)

Por: Jorge Ferrão[1] e Patrício Langa[2]

 

Em 2022, o ensino superior em Moçambique completa 60 anos. Com efeito, foi a através de um decreto-lei 44530 de 21 de Agosto de 1962, que foram criados os Estudos Gerais Universitários em Moçambique e de Angola. Surgiam assim as primeiras instituições do ensino superior (IES) nos países africanos de língua oficial Portuguesa.

 

Seis décadas passadas podem representar um tempo histórico significativo para um país fundado em 1975, mas incipiente para o ensino superior como instituição milenar competindo apenas com a igreja em termos de antiguidade. O termo ensino superior, aqui, é tomado como se referindo a todas as formas de educação terciária, pós-secundária, incluindo a do tipo universitária, e politécnico. De facto, se nos atermos a história do ensino superior antigo, a África pode até reclamar-se o berço deste tipo de educação antes de mesmo de Cristo, com a Academia de Alexandria no Egipto fundada em 331 AC. 

 

As famosas Universidades de Timbuktu, no actual Mali, fundada em 1100, a Universidade do Cabo, na África do Sul, fundada em 1829, mas também as universidades de Cartum, no Sudão (1902), Makerere no Uganda (1921), Ibadan (1948) na Nigéria, e Nairobi (1956) no Quénia são a evidência de que o ensino superior nos países de expressão Portuguesa fora de Portugal (PALOP) ainda esta no seu despontar.

 

Com a excepção do Brasil, cuja historia indica que a primeira instituição de ensino superior foi a Escola de Cirurgia da Bahia, criada em 1808 e a posterior as faculdades de Direito de São Paulo e de Olinda, em 1827, os PALOP tiveram que esperar até ao inicio da década de 1960 pelo ensino superior.

 

Nos casos de Moçambique e Angola o percurso inicia com um processo respaldado na mudança da política colonial em relação às colônias, a crescente demanda dos colonos e assimilados, associada a pressão inestimável das Nações Unidas que apelava a criação de mais condições de ensino, nas então colónias portuguesas do ultramar. Ainda assim, o ensino superior nestes países nasce com o pecado original da exclusão dos nativos. Pecado este cujo legado, seis décadas depois ainda se procura redimir.  

 

Assim, celebrar seis décadas de ensino superior constitui em si um acto de regozijo, particularmente, quando se faz num contexto de independência política do jogo colonial relativamente consolidado. Não obstante, os avanços, os desafios são reflexo de um subsistema da educação ainda emergente, num país que ainda busca seu rumo no concerto das nações. Em 60 anos em média criamos 6 novas universidades a cada década. Os desafios que temos em seis décadas muitas vezes olvidam que se equiparam as mesmas aspirações de sistemas nos quais cada década nossa equivale a um centenário. Alias, no Hemisfério Norte, de onde nos inspiramos e herdamos a ideia moderna do ensino do superior, as IES são até milenares. Sem ser cáusticos, precisamos ser condescendentes em qualquer que seja a avaliação das seis décadas. Até porque mais do que a própria avaliação é dos critérios que mais precisamos nos ocupar para análises concernentes a projecção das próximas décadas. 

 

Os desafios do ensino superior incluem um sistema que procura definir o seu caracter, com IES com maior pendor para o magistério em detrimento da pesquisa, corpo docente em processo formação, necessidade de estudos específicos sobre o desenvolvimento do subsistema, e melhoria dos processos de formulação de políticas públicas mais assertivas, entre outros. Tal como Angola, não admira, pois, que tenhamos percorrido a mesma trajectória, experimentando desafios muito semelhantes e, fundamentalmente, que o processo de consolidação se mostre, ainda, muito distante do seu final.

 

Sendo que o ensino superior se caracteriza não só pelo ensino, mas também pela pesquisa, extensão e inovação para a produção de conhecimento com impacto na sociedade, a comemoração dos 60 anos deste subsistema em Moçambique é uma oportunidade ímpar para se repensar o subsistema, as instituições e o seu papel na transformação da sociedade. Nesse repensar, cabe um debate profundo sobre as políticas do ensino superior, o lugar da pesquisa e extensão na formação dos estudantes, a formação de docentes, que, conjugados, e num contexto de inovação, concorrem para a qualidade almejada neste subsistema.

 

Entre avanços e retrocessos, desafios e oportunidades o ensino superior passou por diferentes processos de continuidade e rupturas. O esforço e empenho de jovens académicos, com todas as limitações, esteve sempre presente e tem sido o garante das mudanças, aprimoramentos e paradoxalmente dos problemas correntes. Não existem dúvidas e nem reservas que as IES nacionais foram as grandes responsáveis pela formação da maior parte do capital humano em Moçambique, que providencia e garante serviços essenciais ao Estado, sector privado, familiar e noutras esferas económicas, culturais e até na manutenção dos serviços dos ecossistemas.

 

Todavia, prevalecem questões estruturais, de governação e coordenação do sistema, atitudes autocráticas e de poder discricionário dos gestores, tanto nas IES públicas como nas privadas.  Os investimentos em infraestrutura, planos temáticos e curriculares são fundamentalmente desenquadrados, o tempo de formação questionável, esquemas de corrupção, e, coincidentemente, a ascendência e precedência da política sobre a academia ou, por outras, a politização da academia que desvirtua o sentido da autónima “real” (e não apenas no papel) das IES que, noutros contextos, paradoxalmente tende a ser protegida pelo Estado. 

 

Apesar dos avanços em termos de acesso ao ensino superior, com a expansão numérica e geográfica de IES um pouco por todo país, fruto da visão de política pública dos diferentes Governos, a base de conhecimento que sustenta os processos decisórios sobre o ensino superior assenta em convicções fortes, com princípios normativos – do dever ser – em contraste com a fraca evidência produzida através de estudos de base. 

 

Os quadros normativos e reguladores do sistema revelam um problema fundamental dum sistema político descentralizador apenas na retórica, mimético (do Copy & Paste) de modelos exógenos mal re-contextualizados, mas também com tendências centralizadoras e autocráticas na prática.  Com efeito, trata-se de um sistema que emula a sua insciência na medida em que se desenvolve num ciclo vicioso de relatórios técnicos comissionados e produzidos por agências de consultoria generalistas e profissionalizadas, que subcontratam, a preço rendeiro, académicos cuja autoridade e legitimidade radica do simples facto de advirem das IES e conectados aos circuitos do lóbi da consultaria.  

 

Assim, documentos estruturantes da Governação do sistema são produzidos através de esquemas em cima do joelho, com um teatro das auscultações no Norte, Centro e Sul, dos parceiros, apenas para legitimação politica do processo, e com o beneplácito de agências de financiamento que justificam a sua existência através da reprodução da nossa mediocridade enquanto nos endividam. Sim, é, do algoz Banco Mundial e entidades congéneres que concorrem para a reprodução da incapacidade interna de produção de política pública das próprias instituições do Estado através de seus projectos de desenvolvimento de capacidade e assistência técnica. É um sacrilégio para o ensino superior que em pleno 2021, os Planos Estratégicos e outros documentos directores sejam produzidos em esquemas de consultoria, que promovem a exploração de académicos moçambicanos por empresas parasitárias que dominam os espaços do lóbi das consultorias, relegando as próprias IES ao mero papel de entidades auscultadas.

 

O ensino superior vive, portanto, copiosas encruzilhadas. Por um lado, a pressão das demandas duma sociedade cada vez mais ciente e crente dos benefícios do retorno do investimento no ensino superior, apesar duma apreciação e avaliação baseada no bom senso, informada por uma visão redutora e instrumentalista do ensino superior como o trampolim da mobilidade social através do emprego formal, no Estado, e nas Organizações não Governamentais (ONGs), mercado preferencial para a transação da reputação dos títulos e credenciais académicas. Por outro lado, a saturação prematura dos lugares de emprego, particularmente, no aparelho do Estado, mas também nas ONG com maior proeminência, que prematuramente desfazem a ilusão da empregabilidade, dos graduados, num sistema cuja taxa de participação entre Jovens dos 18 aos 24 anos não atingiu sequer 10% em sem mil habitantes, reforça o estado de crise do sistema. Este paradoxo gera a ilusão da escassez, mobiliza empreendedores educacionais a criarem novas IES, por razões adversas a educação como bem-público, mas funcionam na propalada lógica neoliberal da mercantilização e co-modificação da educação, abordada por um de nós (PL), noutros escritos.

 

As IES, e, em particular a universidade, no conceito mais genérico, sempre tiveram um sentido de utopia e de um espaço de encontro de tradições e quebra de horizontes do conhecimento humano. A universidade é, igualmente, um espaço onde se cultivam a sociabilidade com a diferença de pensamento, com o pluralismo democrático, e igualmente, a esperança da humanidade. Esperança porque a sociedade deposita confiança nos processos deliberativos associados ao pensamento crítico, em principio, que radica da formação superior.

 

Assim, as universidades seriam, também, ao longo destes 60 anos, parte do projecto de consolidação da nação com representatividade dos diferentes grupos sociolinguísticos, suas tradições e utopias. As IES constituem espaços convencionais onde a expectativa seria a criação do designado ‘bildung’, quer dizer, à preparação da pessoa humana visando produzir cidadãos responsáveis, maduros, autônomos e capazes de refletirem sobre os seus próprios problemas, e da sua sociedade.

 

Este exercício constitui o lançamento de um repto. O repto que ocasião que se aproxima da efeméride do sexagenário nos oferece para repensar o etos ensino superior no país. Lançamos o repto neste mês de novembro, demasiado simbólico e representativo para o ensino superior, quando celebramos o dia mundial da ciência e o dia dos estudantes, que enfrentam as vicissitudes de um sistema de ensino superior emergente. O impacto da pandemia que escancarou, em 2020, as fissuras e fragilidades do sistema diante das restrições, incapacidade e outras aporias que provaram o quão longo será o caminho a percorrer na edificação de um ensino superior robusto.

 

No entanto, mas do que lamentar a ausência do óbvio, que a pandemia apenas veio desnudar, este tempo oferece-nos a possibilidade, de outras possibilidades, isto é, da reinvenção. Sim falta tudo para muitos, e há tudo para poucos, mas há também a oportunidade da ausência do padrão, da tradição, pois tudo se tornou experimental e não há espertos (experts) em matéria de sobrevivência melhor que nós. Portanto, se a inclusão digital parece ser um problema de fundo, não poderemos negligenciar o potencial da reinvenção social. Se existe algo para o qual poderíamos prestar atenção só celebrar o sexagenário é a capacidade recreativa, inventiva, dos Moçambicanos, mesmo em condições adversas.

 

Ao celebrar os 60 anos do ensino superior teremos de, entre outras, pensar que tipo de ensino superior queremos para que tipo de sociedade. Celebrar estes 60 anos tem de assumir um papel bem mais profundo e incisivo. Redefinir o papel e a função do ensino superior num contexto de múltiplas necessidades sociais e humanas, para que as IES continuem impondo-se e respondendo aos desafios da sociedade com recurso ao pensamento crítico tão caro a sociedade.

 

Não poderemos continuar dissociados dos adventos que movimentam o mundo da quarta Revolução Industrial, do advento da ciência artificial, da robótica e nem a redefinição da grelha de cursos que mais condicentes com as novas profissões. Não podemos ser apenas vitimas de mudanças climáticas, sem que sabíamos debater suas origens e consequências diferenciadas. Estes tempos apontam para cenários verdadeiramente desafiadores, e que obrigarão Moçambique a repensar na direcção do seu ensino superior de forma geoestratégica e mais estruturada.

 

Nos próximos anos, os desafios serão acrescidos. Os impactos das sociedades de conhecimento colocam competências tecnológicas e digitais como activos ultra importantes. Seguir as novas tecnologias e os efeitos da revolução cientifica e tecnológica, evitará que sejamos marginalizados e esquecidos pelo tempo. (X)

 

[1] Reitor da Universidade Pedagógica de Maputo

[2] Sociólogo, Faculdade de Educação, da Universidade Eduardo Mondlane

quinta-feira, 28 outubro 2021 14:55

Ungulani, o irreverente desarrumador de ideias

De cada vez que me debruço sobre a literatura moçambicana, de forma deliberada ou fortuitamente, parece impossível não mergulhar nesse imaginário de palavras e sons dos mais talentosos escritores moçambicanos e, claro, desse iconoclasta amigo Ungulani. Cultivo uma inqualificável empatia com a maior parte dos escritores da sua geração, também minha, porém, nutro especial e inquebrantável respeito e admiração pelas anteriores gerações de escribas.

 

Revisitando emblemáticos escritos na delícia do conforto de que proporcionam a alma, se tornou quase impossível escalonar as melhores obras, sob o risco de omissão de outras. São todos produto da emancipação deste país, do sonho azul da revolução e dessa esteira literária de combate. De um modo, ou de outro, devemos gratidão aos instauradores da literatura moçambicana, e que a transformaram num movimento único, assumido e memorável. Independente das épocas e períodos históricos, cada uma das gerações impregnou a manipulação da palavra e da imaginação, tatuou a resistência a escritos não panfletários e a renegação do seu próprio destino. Enfim, sem eles, não teríamos embarcado na sobriedade, credibilidade e honestidade. Na libertação do pensamento livre e descomprometido.

 

Cumpliciei com Francisco Cossa, Chico, nome mais familiar, ao longo de décadas. Por vezes, com mais proximidade, noutras, nem por isso. Nada que tenha beliscado esta amizade. Na panóplia de momentos pitorescos, nas tertúlias, no santuário de bebedores, guardamos inesquecíveis e insuperáveis momentos de inigualável convergência. Ele, como Mestre, e eu, como aprendiz. Uma amizade que se reconstruiu em irmandade, com esse implacável recurso à negação da fatalidade e do senso comum. Já nessa altura, ele demonstrava uma capacidade de imaginação e um poder efabulatório muito acima do normal. Estava escrito nas estrelas que ele terminaria escritor.

 

Não tardou que se agigantasse, e se transformasse em Ungulani. O Ba Ka Khossa. Esse trocadilho de nome, que representa um país e suas raízes literárias. Ungulani Ba Ka Khossa, esse talentoso homem de Inhaminga, região central de Moçambique, se assume como moçambicano de todas as províncias. Uma espécie de um gigantesco polvo, cujos tentáculos se confundem com as metástases da cultura de cada grupo étnico. Nesta convocação, o revejo como parte das minhas amizades iniciáticas. Formando como professor de história, com um substracto assente em obras literárias.

 

Ungulani foi céptico sobre os caminhos da literatura moçambicana num dado momento histórico. Sentia descaso com as autoridades, insensibilidade das escolas e instituições gestoras. Entendia que o rumo não seria a poesia fácil, despida de técnicas, rigor, e outros atributos convencionados. Fincava sua fé na prosa e na ficção. Mas, nunca perdeu as esperanças. Hoje, já fala da literatura moçambicana com paixão e optimismo. Poderia ser melhor, mas já sente um reviver do compromisso com o discurso sóbrio, com os escritos inspirados na tradição oral, com a exploração dessa originalidade Bantu e suas múltiplas línguas nacionais. Essas são as marcas que farão a identidade da nova vaga de escritores.

 

Eventualmente, nos conhecemos naquele invulgar movimento, anunciado por Samora Machel, a 8 de Março, que concentrou no Maputo jovens estudantes que se converteram em ousados professores circunstanciais. Anos mais tarde, reencontrei-o, assumindo postura burocrata no ministério da Educação e Cultura. Partilhava a sua sala com Ana Elisa Santana Afonso. Ela seguiu a carreira na UNESCO, Ungulani ficou-se por aqui e com seus livros. Na época, Ungulani e Ana Elisa ajudaram a resolver pepinos de colegas que não souberam ler e nem entender o sistema. A juventude não permitia outros entendimentos da revolução e nem imaginavam os riscos associados ao pensar e sonhar diferente.

 

Anos mais tarde, Ungulani já estava engravidado do consagrado Ualalapi. Esse livro se converteu num dos 100 melhores do século, no continente africano. Merecidamente. Esta foi a obra que exacerbou os entendimentos sobre as lanças dos guerreiros do Império de Gaza. Reavivou Gungunhane, sua astúcia e malícia, explorou o papel de suas esposas. Mas, foi o livro do apocalíptico império de Gaza com suas virtudes e defeitos e personagens que se imortalizaram.

 

Ainda nessa época, ele falava da sua paixão sobre o escritor colombiano Gabriel García Márquez. Essa apreciação pode ter ajudado a reafirmar um laço que estava escrito pelo destino. “Cem anos de solidão” é considerado o maior exemplo do género literário do designado realismo mágico. Gabriel Garcia Márquez retracta, no livro, eventos sobrenaturais, num tom objectivo e pragmático, enquanto, os normais e factos históricos, como pura fantasia.

 

Acredito, firmemente, que Francisco Khossa, o Chico, repensou no apelido Ungulani, como o próprio nome fictício do vilarejo Macondo, do livro de Márquez.  Mas, a Agustina Bessa-Luís e Jorge Amado nunca saíram do seu vocabulário. Para Ungulani, qualquer grande escritor precisa de ser um bom leitor.

 

Ungulani nunca se preocupou em defender a investigação histórica, mas tem na essência o mérito de lhe conferir credibilidade e prazer de leitura dessa narrativa histórica. Como historiador e escritor, Ungulani coloca todo o seu saber naquilo que produz e pretende transmitir, tornando a história em verdadeira representação literária e, ao mesmo tempo, em arte de encenação. Esta é a conclusão de um amigo comum, o Marcelo Panguana.  Mas, o Ungulani encerra, em si mesmo, várias facetas, estórias e personalidades. Um homem inspirado e, insofismavelmente, ligado às grandes leituras da sua época.

 

A crítica literária tem sido muito complacente e assertiva para com o Ungulani. Ba Ka Khossa foi consagrado como contista de reconhecido mérito, amadurecido pela diversidade e abordagem na sua inquestionável produção literária. Ele se transformou em alguém que recorre ao metaforismo e à magia na recriação de personagens. Ungulani fará parte do distinto grupo dos mais nobres escritores do seu tempo, com essa capacidade de reconstruir, como ninguém, a saga que têm sido os anos de conflito armado no país.

 

Ungulani, fazendo alguma justiça é, igualmente, um devoto e apaixonado fiel de Luís Bernardo Honwana. Ele o considera o Pai da literatura moçambicana. Tem as suas razões e não ousamos questionar esta distinção. Aliás, também defende que a charrua é a melhor revista literária do mundo. Assim tem sido Ungulani, um destemido provocador, um desarrumador de ideias e um iconoclasta, como o define Nelson Saúte. Ungulani, enfim, será sempre o símbolo-mor da nossa geração, um desalinhado; alguém que pauta pela sublevação, desapegado dos ditames desta e outras épocas. Permanece alheio às lides do aparelho ideológico e discordante das ideias que reprimem a liberdade de criação.

 

Temos uma particularidade. Amamos o Niassa, a Sibéria moçambicana. Ele, porque passou algum tempo para se auto-educar, e eu porque aprendi a amar a natureza e seus animais. Acreditamos na magia deste pedaço de terra. Um dia, Niassa se converterá no melhor espaço do mundo. Quando não existir mais água, o lago vai matar a sede de toda humanidade e saciar a sua ganância. Até lá, seremos gratos por ter convivido, desfrutado e beneficiado dessa veia literária tão mordaz quanto profícua. (X)

quinta-feira, 30 setembro 2021 13:25

Paulo Freire e a Pedagogia da Revolução

Setembro tipifica os virginianos marcados pela objectividade e organização. Os que, de forma incessante, revisitam a perfeição. Este tem sido o apanágio no mês de todos os recomeços. Coincidentemente, o mês em que líderes das lutas de libertação nas colónias portuguesas, em África, viram a luz do mundo. Samora Machel de Moçambique, Agostinho Neto de Angola, e Amílcar Cabral da Guiné-Bissau. A estes virginianos, se junta o filósofo e educador Paulo Freire, brasileiro, porém, com um coração e uma intelectualidade espalhada pelos países, falsamente assumidos, como falantes da língua portuguesa.

 

Paulo Freire, o pedagogo brasileiro, e que se revestiu de utopias para a revolução anticolonial, envolveu-se, de forma profunda, no processo de descolonização das colónias portuguesas, estudando profundamente a gestação desses movimentos de libertação e, mais importante, teorizando sobre esses processos políticos e pedagógicos que se estabeleceram na década 60 e 70.

 

Paulo Freire capitalizou a experiência de ter convivido com os povos da Guiné-Bissau; por um lado, por ter estudado todas as obras de Amílcar Cabral e, por outro lado, por ter tido contacto directo ou indirecto com outros revolucionários da época. Existem algumas evidências de sua passagem por Moçambique e, em particular, por ter lido e abordado o posicionamento humanista de Eduardo Mondlane e, igualmente, desfrutado da visão política, acção militar do MPLA e desse romantismo poético de Agostinho Neto.

 

Ainda neste emaranhado de coincidências, não nos equivocamos sobre a forma como estas lideranças, incluindo o próprio Paulo Freire, inspiraram-se e foram influenciadas por Frantz Fanon, o psiquiatra, filósofo e militante anticolonial da ilha Martinica; autor das obras “Os Condenados da Terra” (1961) e “Pele Negra, Máscaras Brancas” (1952), e que marcou gerações de activistas de direitos civis.

 

Fanon foi crítico do momento histórico colonial, dos processos de alienação e da presença colonial nos países africanos. Adoptou o título de alienação e liberdade ou patologias da liberdade, para se referir a inevitável necessidade da libertação de África. Essa seria a única forma de afirmação das identidades e dos ideias da emancipação. Verdade que Fanon era radical. Aliás, como se transformaram em radicais os movimentos negros fora do continente africano. Fanon estava seguro das formas impostas pelo colonialismo, as suas subjectividades e como usaria o conhecimento, e a própria cultura, como elementos que perpetuariam a presença colonial e criariam divisões entre a sociedade africana. Para ele esta actuação subjectiva conduziria, inclusivamente, a perpetuação desse colonialismo muito para além das independências, se a leitura correcta não fosse  dimensionada.

 

Paulo Freire, embebido de uma postura mais latina, enraizado na vivência brasileira, incorporou inúmeras destas reflexões de Fanon e, sobretudo, dos movimentos da negritude, que começaram por surgir nas Antilhas, no próprio Brasil e nos EUA, fundamentalmente. O movimento da negritude permitia a revalorização da herança ancestral africana e contribua para que o negro tivesse uma auto-imagem positiva de si próprio, para além de propiciar maior visibilidade as suas acções e teorias.

 

Paulo Freire explora este momento e as experiências de sua interacção com os líderes africanos e retracta de forma inspiradora, nas suas principais obras, nomeadamente, “Educação como prática da Liberdade” (1967), e “Pedagogia do Oprimido” (1968). Convenhamos que Paulo Freire poderia ser indexado como um pan-africanista que ressurgia desse sentimento de solidariedade e consciência de uma origem comum entre os negros do Caribe e dos Estados Unidos e que lutavam contra a violenta segregação racial.

 

No seu livro “Pedagogia do Oprimido”, que é considerado como o terceiro livro mais citado em publicações académicas de ciências sociais no mundo, Freire revela, de forma inequívoca, o seu entendimento profundo sobre a objectividade e subjectividade desse movimento protonacionalista ou nacionalista, alicerçado na educação como factor dinamizador, assente na cultura como o alicerce que dinamizaria e engendraria uma nova fórmula de revolução, de libertação do povo e de transformação dos países africanos.

 

Nesta condição, e concomitantemente, Paulo Freire transformou-se, ele próprio, no grande teórico das experiências educativas das regiões libertadas da guerra colonial e modernizou, inclusivamente, a sua estrutura conceptual. Esta é a maior contribuição que, eventualmente, deu aos movimentos de libertação. Portanto, na sua interpretação, os processos de libertação e emancipação dos povos e países africanos, estes não passariam apenas pela via de acção e combate armado, mas, e sobretudo, por uma visão sobre a educação e cultura como imperativos e elementos indissociáveis.

 

Paulo Freire advogava, na sua teorização, uma educação que libertasse corações e mentes, e que colocasse aquele que aprende como sujeito produtor do próprio conhecimento, contrariando métodos mais retrógrados e que induziam, apenas, a repetição infinita de enunciados. Parece ponto assente que colocar o educando no centro do próprio ensino configurava a práxis que respaldava os programas de alfabetização dos guerreiros e dos jovens recrutados ou que aderiam a luta. Eventualmente, pelas teorias de Freire, estas práticas educativas e revolucionárias se converteram na base dos programas de alfabetização de adultos, quer no Brasil, como nos nossos países que adoptaram Freire como um orientador educacional de excelência.

 

Neste centenário, revemos a relação que Paulo Freire estabeleceu com Amílcar Cabral. Esse líder marxista e que, de acordo com Freire, fizera uma leitura africanizada de Marx, para arquitectar a dimensão e visão da luta de libertação anticolonial que conduzia. Ambos defendiam que não existia ninguém mais culto do que o outro, pois, as culturas eram paralelas, distintas e que se complementavam na vida social e cultural.

 

Nos nexos estabelecidos entre os dois pedagogos e libertadores, destacamos a avaliação negativa que acreditavam estar patente nos modelos e práticas coloniais de educação, porque o povo não deveria apenas compreender, abstractamente, a interacção das forças por detrás do desenvolvimento da sociedade, mas, antes, deveria formar uma pátria anticolonial, colocando a resistência numa espécie de expressão cultural.

 

Cultura em Cabral, Freire até em Fanon era, então, um denominador comum e dos mais importantes, quer na luta como na formação dos guerreiros. Seria impossível combater a presença colonial, renegando os valores culturais e não permitindo a aculturação das práticas sociais existentes.

 

Esta interacção e trajectória de Paulo Freire, junto dos líderes revolucionários africanos, ficará eternamente associada ao desenvolvimento teórico dos programas de educação nos nossos países. Deste modo, celebrar o seu centenário equivale a ressignificar a educação no século XXI, mesmo considerando as vicissitudes e os graves problemas estruturais, equidade e de auto-estima. Recordá-lo, neste centenário, parece ser obrigatório, proporcional e muito apropriado. É, igualmente, oportuno recordar as lições mais importantes como a de que “o educador se eterniza em cada ser que educa” ou que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para a sua produção”.

 

Como defensor da descolonização e da reafirmação determinista e criativa, as teorias educativas de Freire continuam a fazer sentido, sobretudo, quando argumenta que deveremos formar para a autonomia. Eventualmente, esse  é seu maior legado. Os nossos países vivem ancorados em métodos ortodoxos e pouco evolutivos. A educação continua refém da ausência de investimentos e os professores cada vez menos valorizados e sem auto-estima.

 

Nestes tempos que se esfacelam os fundamentos de perspectivas de novos pactos em favor de novos entendimentos, e diante da crise na educação, um novo contracto social mais equitativo e abrangente será um marco referencial fundamental para se virar a história da consolidação das nossas independências.

 

Freire, Machel, Neto e Cabral, como testemunhas de um tempo, ainda podem ser lidos como um libelo contra o esquecimento, alheamento insensível para os fundamentos da libertação e moralização da sociedade. Que neste seu centenário, tão envolto em controvérsia no seu próprio Brasil, Paulo Freire possa voltar a ser fonte de inspiração que auxilie na união de esforços, recursos e talentos para enfrentarmos a batalha por um lugar ao sol e no trilho do progresso e desenvolvimento. (X)

segunda-feira, 19 julho 2021 14:03

O triunvirato de Messumba

Três Humanistas, Três Ciências, Três Pedidos

 

Por José P. Castiano e Jorge Ferrão

 

Ninguém, no melhor dos seus sonhos, poderia imaginar que, da distante, inóspita e diminuta missão anglicana de Messumba, na igreja de S. Bartolomeu, no Niassa, três jovens tocariam os sinos da vida e seguiriam caminhos tão equidistantes, impactando nos corações de milhares de seguidores.  Depois da formação inicial, seguiram para a escola de artes e ofíciosde Massangulo. Carlos Machili virou carpinteiro; Filipe Couto, sapateiro; e Brazão Mazula, encadernador de livros.

 

Pode não ter sido a missão de Messumba que criou neles o sentido primário e ético de vocação. Todavia, o sentido, talvez superior, de “missão” foi propiciado pela forte formação teológica e filosófica que foram recebendo. Depois, partiram o Mundo, i.e., Itália para o caso de Machili, Alemanha para o padre Couto e Brasil para o Brazão Mazula, sem descurar outros universos por onde passearam sua classe e virtudes. De certa forma, esta formação superior proporcionou-lhes uma relação mais racionalizada para com as suas crenças e Fé. Daí terem assumido as suas crenças temporais com o sentido de “missão”.

 

Os alemães, pela boca de Max Weber, têm um encanto especial pelo termo “vocação”. A vocação não está, somente, ligada ao seu sentido prático e profissional, porém, e sobretudo, ao espiritual. A “missão” que cada indivíduo recebe, uma vez terminada a sua formação, se transforma num chamamento para a perfeição, honestidade e, principalmente, no sentido de um servidor do outro. Não é por acaso que, em alemão, a palavra Beruf significa profissão. O verbo beruffen significa mesmo chamamento.

 

Convocar e celebrar estes três “iluminados” de Massangulo, num mundo conturbado e em agitação plena – terrorismo em Moçambique, “free Zuma”, Bolsonaro, Ndhlavela, vitória da Itália – foi um acto proporcional e de pura nobreza. Existirão, sempre, infinitas razões para “vasculhar” as pontas que mais os uniram, e os que os dividem. O denominador comum, convenhamos, assenta nessa “trindade” oriunda de uma educação missionária de um local “esquecido”, e que transcendeu e se afirmou como referência obrigatória no panorama mundial.

 

Se estas razões forem insuficientes, teríamos, então, de apelar ao nacionalismo, ao contributo para a causa e luta de libertação nacional e, no pós-independência, ao aficando empenho na educação das novas gerações. Um “triunvirato” que continuará presente em nossas consciências, nesta e futuras gerações.

 

Esta trindade não é santa. Aliás, gerou, ao longo de anos, consensos e descensos, empatias e apatias, animosidades e hostilidade. Não obstante, se reconhece uma trajectória e um percurso, que transcendeu do reduto Niassa, perpassando o mundo, para assumir missões maiores num mundo designado Moçambique, e para uma universalidade por via de uma academia universalista. Todos eles, oriundos dessa formação teológica-filosófica, abraçaram, posteriormente, a academia moçambicana como produtores de pensamento e como gestores/reitores nas duas maiores instituições públicas e estruturantes – a Universidade Eduardo Mondlane, para os casos de Brazão Mazula e Filipe Couto; e a Universidade Pedagógica para o caso de Carlos Machili.

 

Não temos ilusões sobre os efeitos dessa caminhada na personalidade e carácter de cada um. A unicidade, aliás, teria sido nociva e perversa.  Então, quais seriam, as crenças temporais através da quais, cada um deles, enriqueceu a sua fé e personalidade?

 

 

Na sua actividade como intelectual, Brazão Mazula é um profundo crente da possibilidade de Democracia, em África, baseada no uso da “palavra” (ou do “agir comunicativo”, tomando o sentido habermasiano). Ao mesmo tempo que fazia um diálogo profundo com filósofos como Hegel, Heidegger, Eric Weil, mas, sobretudo, com Marx e Habermas, Mazula foi também incansável em buscar, nos pensadores, africanos como Mulago, Hountondji, Eboussi-Boulaga, ou seja, na “esteira académica” africana, inspiração para fundamentar uma democracia baseada no uso da palabre e na “criação da riqueza”.

 

Mazula desempenhou um papel fulcral para que as primeiras eleições democráticas tivessem lugar. Assim, tem sido ao longo da sua carreira, e nos momentos mais sensíveis e de desassossego. Pelas obras que publicou, provou sua versatilidade e capacidade de negociar, construir pontes e essa identidade democrática, que continua distante de ser a ideal, finalizada, ou mesmo a mais reconciliatória.

 

Por seu lado, Carlos Machili, na palavra e em acto, foi, e ainda é, um grande crente da ideia de que “a qualidade da educação em Moçambique, somente pode (pro)vir da quantidade”. Não é excluindo uns ou uma parte da sociedade, ou seja, apostando numa educação e formação elitista e elitária, que vai se garantir a qualidade: “uma universidade deve ser mordida por mosquitos”. Ouvimos ele, inúmeras vezes, a defender. Às vezes mesmo sozinho, no meio de muitos experts em “educação de qualidade”.

 

 

Machili, pois, é um fervoroso crente da expansão do ensino superior para todo o país. Não quis ficar refém de uma linha elitista, emergente, que contra-argumentava suas pretensões. Contra tudo e todos, foi abrindo delegações da Universidade Pedagógica, por todas províncias. O que foi específico nele é que a quantidade, a expansão, não era algo que se deveria fazer em detrimento da qualidade, daí a sua insistência, quase que de forma insurgente – e ele é mesmo um insurgente intelectual – na necessidade de uma boa formação de professores (recusou e insurgiu-se, oficialmente, contra a formação 10+1 ou 12+1, esquemas inspirados pelo Banco Mundial).

 

Por fim, o Padre Couto, talvez por ter sido sapateiro, combinando com o facto de ser fervoroso admirador de Martin Lutero, o reformista alemão, é um fervoroso crente das potencialidades da juventude moçambicana. Ele deposita fé na capacidade que a geração mais jovem tem em ser irreverente, no seu sentido positivo. Isto é, de ela própria reconhecer os desafios do seu tempo-vivido. É por isso que insiste muito, nas suas aparições públicas, na não-glorificação e não deificação de actos humanos do passado recente da historiografia de Moçambique, por mais “gloriosos” ou “heróicos” que nos pareçam e apareçam. O que interessa é o futuro e a forma como a juventude estará preparada para actos naturais neste futuro.

 

É somente a partir desta trindade de crenças, iluminadas pela fé no futuro, que podemos entender os três “pedidos” que expressaram no acto da sua homenagem na UP-Maputo: “Não matem a filosofia nas escolas moçambicanas, pois a falta dela pode ser uma das razões principais para prevalência da violência que vivemos hoje” – ouvimos Mazula a pedir, para logo acrescentar alguma ironia: “não sei dar, só sei pedir”. O Carlos Machili, igual a si mesmo, expressou da seguinte forma o seu desejo: “uma universidade que não produz dinheiro, morre” para depois acrescentar que “deixem que este dinheiro produzido, internamente, seja gerido pelos departamentos e faculdades”.

 

Por seu lado, Filipe Couto, já cego, mas atento às dinâmicas actuais, pediu à juventude para, por via da Universidade Pedagógica de Maputo, fazer um trabalho profundo na compreensão da História e da historicidade de Moçambique. Só assim é que o futuro não será uma repetição, em forma de tragédia, do passado que nos parece e aparece como sendo heróico. Nunca houve, não há e nem haverá homens infalíveis. A grandeza humana na História, só se avalia pela forma como os homens e cada um, se confrontam com as suas próprias contingências e fraquezas de momento – parecia querer dizer ao evocar as personalidades de Urias Simango, Mateus Gwendjere ou Lázaro Nkavandame. Não se tratou de acender a chama dos esqueletos, mas de proporcionar uma revisão histórica, genuína e descomprometida, mesmo considerando que alguns se tenham posicionado do lado “reaccionário” da revolução.

 

 

Resumindo, de uma coisa temos a certeza: os três humanistas que viveram as suas crenças como “missão” da vida, não foram e nem formaram uma “santa” Trindade; bem pelo contrário, tiveram as suas angústias, emoções, talvez até erros, resultantes destas suas crenças. O certo é que todos foram forjados no “Niassa”, para o mundo. (X)

Por José P. Castiano e Jorge Ferrão

 

 

terça-feira, 29 junho 2021 08:24

Os caminhos da encruzilhada e da esperança

terça-feira, 22 junho 2021 07:03

KK: Duas mortes anunciadas num só Homem

Por Jorge Ferrão & José Castiano

 

O comboio que anunciara a sua morte apitou duas vezes. Nestas ingentes palavras, comecemos pelo último apito. Oficialmente, o anúncio da sua hospitalização dava conta de que “não se tratava de Covid-19”. Não obstante, sobraram dúvidas sobre o seu estado de saúde. Ainda repercutia, em nossas recordações recentes, a odisseia do vizinho Presidente Magufuli. Para a nossa geração, nós, que crescemos contemplando a parte final dos nacionalismos e pós-independências, sabemos, como parte de uma cartilha, que nunca se anunciam os mal-estares e muito menos as patologias das lideranças.  A rigor, quando se trata dos progenitores ou Heróis das Lutas de Libertação.

 

Entre mitos ou tabus, recebemos duas heranças, se não forem mais, a saber: a das teorias de conspiração socialista, onde Kremlin ou Havana, escondiam os internamentos dos seus líderes. Era comum inventar artefactos, duplos, ou sósias, para os substituírem em ocasiões públicas.  A segunda herança é da própria tradição africana: não se devia saber que o Rei padecia, nem que sofria, como qualquer humano, de outras fraquezas. Nem mesmo depois da morte. Quem já visitou Emankhosini, lugar onde foram enterrados os Reis Zulus (menos o Shaka Zulu, é claro), saberá como aquele lugar foi mantido em segredo pelos Nkhosis. Devia manter-se o mito de uma existência ancestral.

 

A hospitalização de Kaunda foi um pré-anúncio da morte anunciada. Com Magufuli poderíamos estar distraídos, mas com um homem de 96 anos, nem tanto. Talvez a sua longevidade se devesse a vida austera que levava, pois, não bebia álcool, não fumava, vinha de uma família religiosa, fora professor, levava a sua guitarra por todo o lado onde ia (incluindo em visita oficial ao Kremlin) e, com ela ou sem ela, sempre cantava.

 

E aqui passamos à segunda parte da dupla-morte anunciada. Em 2013, nas cerimónias fúnebres de Mandela, seu companheiro na luta contra o apartheid, mantemos vivas aquelas imagens da correria desenfreada que iniciou, pelo meio da sala, para discursar e provar que estava em forma. Depois, puxou pelos pulmões entoou a música-predilecta (quiçá uma das suas inúmeras composições), tiyende pamodzi na n’tima umodzi, esse hino nacionalista que apelava à união de todos num só coração.  Nesta cerimónia fúnebre, porém, já poucos o seguiram. Era o prenúncio da sua caminhada para o final, como o último nacionalista que pregou uma era inteira de libertação, afirmação e identidade, na África Austral.

 

 

Como último dos memoráveis nacionalistas africanos, Kaunda, tinha algo em particular que o distinguia. O simbolismo com que se fazia presente em cerimónias oficiais e eventos públicos, que tipificava as glórias das lutas. Os outros líderes seguiam os mesmos exemplos. Mobutu Sese Sekou levava uma bengala-talismã, talhada de leão e outros animais; Kamuzu Banda trazia sempre consigo um rabo-de-leão; até mesmo o pacífico mwalimu Nyerere, do Ujamaa, trazia sempre uma “bengala” da sabedoria; o Mandela inaugurou as “madibas”; Samora Machel especulávamos sobre o seu relógio “mágico”. No entanto, a semelhança e, ao mesmo tempo, a diferença do Kaunda estava no seu talismã, um lenço branco, muito branco, com o qual acenava às pessoas em qualquer momento.

 

Que simbolismo arrastava aquele lenço branco no meio de uma tradição africana de leões, leopardos, elefantes, etc.? Recordemos que o Shaka Zulu se sentava sempre em cima da pele de um leão que ele próprio matava, numa luta preparada, quase que anualmente. Quando visitamos o santuário dos Macheis, em Chókwè, o nosso guia-historiador do Museu deleita-se em contar a história da luta de Machel com um crocodilo que queria comer um dos bois que ele apascentava.

 

Na autobiografia épica de Kaunda, Zambia shall be Free, conta-se da aparição de um leão enorme, ao qual ele afugentou com a sua bicicleta. Apesar da época de heróis e de misticismos nacionalistas independentistas de pais-fundadores, por quê, este homem, escolheria um “lenço branco”, tão assim que se distinguia de todas as cores?

 

Neste infausto momento, nos assalta à memória a solidão que o acompanhou, antes desta partida, cantando e dançando, sozinho, o seu tiyende pamodzi. Alguns factos ajudam a entender o enigma do lenço branco. Basta, para o efeito, que nos recordemos das imagens das negociações dos Acordos de Lusaca, assinados entre o Governo Português e a cúpula da Frelimo, chefiada por Samora Machel, em 1974. Por trás destas negociações de Paz, estava Kaunda com seu lenço branco.

 

Um ano mais tarde, em 1975, voltamos a ver o mesmo lenço branco, mítico, quando mediava a questão Zimbabwe, encontrando-se com Ian Smith e John Voster nas conversações de Victoria Falls. Ali, naquela carruagem vetusta colocada, exactamente, numa fronteira imaginária, em cima do Rio Zambeze, ele não deixou de acenar. Respondia, com humildade, às maníacas exigências dos brancos Smith e Voster, que assumiam, ainda, dominar o território “branco” da Rodésia e os nacionalistas “negros” na parte zambiana. Antes, o mesmo Kaunda tentara mediar a união entre um Mugabe e um Joshua Nkomo, dois nacionalistas relutantes, para se unirem (em abono da verdade, deve dizer-se que Kaunda inclinava-se mais para o movimento chefiado por Joshua Nkomo, que pelo seu irmão Mugabe).

 

Em 1982, voltamos a ver o lenço branco, num encontro em Botswana, desta vez com o Pik Botha, da África do Sul, com Kaunda a exigir a libertação imediata de Nelson Mandela. E, nos tempos difíceis para todos nós, nos anos oitenta do FMI e suas políticas de “austeridade” e “Estado Mínimo” do Consenso de Washington, Kaunda voltaria a exibir o seu lenço branco, recusando as imposições tanto dos Estados Unidos como da União Soviética, acenando a sua porta aberta para a China. Aliás, esta posição já era antiga. Recorde-se que ele mandara os chineses construírem o Grande Projecto Zambia Rail Ways (há uma foto famosa em que Nyerere visita este empreendimento austral).

 

Quando Mandela saiu da prisão, viajou de imediato  para Zâmbia para se encontrar com a direcção do ANC, no exílio, para eventuais  acertos  sobre as transições de poder e de reconciliação que se seguiriam; uma parte daqueles guerrilheiros tinha saído de Moçambique por causa dos Acordos de Incomáti. Lusaca e o iconoclasta Kaunda voltavam a ser a capital do lenço-branco.

 

 

Qual era a fonte desta convicção “nacionalista” de que as independências também se podem fazer em cima de um lenço branco? Kaunda lera e admirara-se profundamente por Gandhi, pela sua luta pacifista. De certa forma até tentou adaptar a non-violence politics às nossas condições afro-austrais de colonialismos e de regimes minoritários de racismos brancos, na África do Sul e da Rodésia. Hoje, como já foi especulado ontem, podemos dizer que ele queria agradar aos atenienses e aos troianos, ao mesmo tempo. O certo é que Kaunda soube estar e manter-se vivo até se tornar no último nacionalista a quem nós podemos mostrar à “geração da viragem”.

 

Como qualquer ser humano e líder, Kaunda, foi um homem com defeitos, controvérsias e outras nuances. Isso foi. Em plena onda multipartidarista, ele preferiu continuar a ver o seu partido independentista como o “único”. E pagou caro por isso: o Chiluba, perante a iminência do regresso de Kaunda às eleições e, talvez, temendo o triunfo do “histórico”, mandou instaurar um processo que o proibia de contestar as eleições por ser “estrangeiro” (nasceu de pais naturais de Niassalândia, Malawi). Uma certa teimosia, em defesa da “Soberania de Estado”, fez-lhe arrastar o povo por uma crise do cobre que, até hoje, a Zâmbia, ainda, tenta recuperar-se. Sofreu tentativas de assassinatos.

 

Mas uma coisa é certa: pelo facto do seu filho mais velho ter morrido de SIDA, continuou a sua luta nacionalista levantando o seu lenço branco contra esta doença e em prol dos zambianos. Com o seu lenço-branco foi a todos os funerais de seus antigos camaradas (Nyerere, Machel, Mandela, Mugabe, etc.) até que chegou a sua vez. Foi assim o último nacionalista de lenço-branco, o lenço da libertação e da paz negociada. Parte para a eternidade o percursor de Mandela, mas que soube fazer da sua Lusaca, a capital da paz.

 

KK continua um nome indefectível e embrenhado em nossas consciências, neste infausto momento. Não saberemos desvendar o que a eternidade o reserva. Todavia, temos a convicção de que KK perdurará como homem livre, insubmisso, fraternal e muito atento. Será sempre o fiel servo das memórias da sua revolução e dos movimentos revolucionários dos países vizinhos.

 

Com o lenço, este símbolo de Paz, Kaunda nos deixou três livros, nomeadamente The Riddle of Violence, A Humanist in Africa e Letter to my Children que agora vamos desfrutar com leituras e olhos diferentes. De uma coisa nós temos a certeza, a luta vai continuar!

sexta-feira, 04 junho 2021 06:48

A epidemia do desligamento dos espíritos

Este ano completam-se os 102 anos desde o começo da Primeira Guerra Mundial, a única na qual Moçambique participou, directamente, por intermédio da intervenção portuguesa. O livro A Guerra que Portugal quis esquecer, de Manuel de Carvalho, jornalista português, recorda essa desastrosa campanha. Dos cerca de 20.000 soldados portugueses enviados para Moçambique e Angola, com o intuito de precaverem-se dos ataques alemães, aliados aos mais de 50.000 soldados moçambicanos, trazidos dos designados Prazos da Coroa, Niassa, Zambézia e Moçambique, mais de 2/3 pereceram. Portugueses e moçambicanos sucumbiram na frente de combate, sem sequer terem disparado alguma bala. As fatalidades ocorreram devido ao despreparo, ausência de logística, fome, malária, sede e disenteria, e até à própria incúria.

 

Tudo isto aconteceu na Baía de Tungue, no triângulo de Quionga, actual vila de Palma, que herdou o nome de um Administrador colonial, em Negomano, Namoto e Mocímboa da Praia. Portanto, Cabo Delgado, hoje, a braços com uma nova guerra, tem sido palco de outras tantas desgraças. Esta província, de incontestável mixagem cultural, vive predestinada a sofrer os efeitos da barbárie, chacina e infindáveis traumas humanos. Por estes distritos, se mistura, ao longo de décadas, o sangue de europeus, africanos e asiáticos, numa espécie de cemitério a céu aberto. A saga do desligamento dos espíritos que vagueiam errantes por todos os cantos, procurando uma oportunidade para um dia poderem repousar, tornou-se cíclica, dolorosa e ortodoxamente preocupante.

 

Se a entrada de Portugal para a primeira Guerra Mundial significou uma oportunidade para os grupos étnicos mais organizados de Moçambique, em busca de mais direitos humanos e sociais, o custo social e familiar foi abismal e inqualificável. A descida dos alemães às margens do Rio Licungo permitiu várias revoltas. A mais significava foi a de Barué. Ao reivindicarem seus direitos e liberdades, contra o domínio português, estes povos sofreram um extermínio.

 

A história é repleta de exemplos de guerras, negação da soberania, da harmonia societária e paz, aliadas à fragmentação política, a exclusão das identidades e a expurgação do mal, em oposição aos direitos fundamentais dos povos. Hannah Arendt, no seu livro A Condição Humana, aborda o conceito “solução final” de Adolf Eichmann. Esta teoria serviu de substrato para o extermínio de milhões de judeus, ciganos e homossexuais, nos célebres campos de concentração nazis. Era a Europa a negar a liberdade que defendia para dentro dela mesma, atirando violência para fora.

 

Ela explorou essa brutalidade do mal, associada ao facto de, ao longo da história, as guerras que sempre tiveram a anexação de territórios como substrato, usarem as pessoas mais mesquinhas e ambiciosas para cometerem atrocidades. Humanos que se convertem em selvagens, displicentes e sanguinários. Personificados em sádicos monstros e desrespeitando a vida e sentimentos humanos. Para a guerra no Noroeste de Cabo Delgado, nem as vinganças, ganância, fortalecimento de seu próprio poder, ou visões messiânicas do mundo, podem explicar esta forma atroz, maligna e sevícia de matar seus concidadãos.

 

Relendo estas obras para contextualizar o descaso de Cabo Delgado, num período de neoliberalismo, mais do que as causas, procuramos entender o sentido da morte violenta e a pós-morte. A morte continua uma temática antropológica por excelência. Quando pensamos no teatro operacional Norte, não ficamos indiferentes à selvageria truculenta pela qual a população tem sucumbido. Nem conseguiremos entender como foi que se criaram os espaços para desenfreada e atroz crueldade, ruindade e falta de esperança e fé que se apossaram desta região.

 

Quando um ser vivo morre, não morre completamente, porque a sua forma, seu espírito, permanece vivo nos outros seres da sua espécie. Eles se tornam errantes, procurando um espaço definitivo para repousarem. Como dizia Darwin, o evolucionista, a morte de um ser vivo é uma continuidade interrompida e não representa o fim. Acontece, porém, que, com o ser humano, essa complexidade é ainda maior do que com os outros animais.

 

Vários escritores e teólogos versam sobre a necessidade de os espíritos poderem repousar quando se desligam dos corpos físicos. Por isso, os rituais consagrados a dar eterno descanso às almas e aos espíritos se revestem de muito simbolismo e santidade. De Mia Couto, no seu livro de ficção Terra Sonâmbula, a Paulina Chiziane, Calane da Silva e tantos outros, concordamos, sem excepção, no poder da comunicação entre vivos e mortos e na influência que os espíritos exercem sobre o bem-estar social e moral dos vivos.

 

Sem veleidades, os africanos são fervorosos e afectivos à paz dos seus espíritos. Em todas as gerações e épocas históricas, às famílias comunicam e recebem bênçãos dos espíritos dos antepassados. A eles são consagradas as homenagens que desencarnavam e transcenderam os espíritos dos organismos físicos. Esta transcendência, não importa o tempo que ocorre, tem um potencial de influência no estado psicológico e de tranquilidade, da esperança e da fé. Por isso, os rituais ancestrais representam uma irradiação mental e um conjunto de vibrações positivas significativas para quem continua na sua peregrinação na terra.

 

Moçambique e Cabo Delgado, de alguma forma, têm sido espaço para estes conflitos violentos, irracionais, inaceitáveis e de inimaginável perversidade. Os estudos que agora se multiplicam, apontam múltiplas razões. Ainda assim, há uma razão que continua a ser-nos negada historicamente. Naquele espaço do território, continuam vagueando demasiados espíritos, que carecem de tranquilidade e enterro condigno e encarecem a nossa reconciliação como nação. Eles procuram, como cada um de nós, dignidade, respeito e paz. Querem desligar-se do corpo físico, propiciando tranquilidade espiritual a comunidade, trazendo de volta a fé, a razão e a tolerância à diversidade. Em fim, a reconciliação connosco mesmos.

 

O impacto desta incapacidade de propiciar eterno repouso às vítimas cristaliza um sentimento de banalidade para com a vida e morte, e um desrespeito aos rituais essenciais. Estas adversidades fazem com que os espíritos procurem suas sepulturas, um pouco por todo este país. Esta é a nossa epidemia da descrença e do desligamento físico dos nossos espíritos. Precisaremos de fazer de tudo para salvar as vidas. Ter a capacidade para prover humanismo e conforto que merecem os que partem deste mundo. A espiritualidade e a fé, não podem ser negligenciadas. Essa fé começa por um desligamento dos espíritos dos seus entes queridos. 

 

Nas várias guerras que o mundo testemunhou, se criaram as praças ao soldado desconhecido. Nós precisaremos de fazer a praça do cidadão desconhecido, do pescador desconhecido, do camponês desconhecido. Onde o religamento colectivo com o transcendente seja possível. São desconhecidos e nem se quer culpados por ter vivido no triângulo da riqueza e da morte. (X)

Os nexos entre a celebração das datas das agendas mundiais e a temática doméstica, confere mérito à umas e desmérito às restantes. 28 de Abril, dia mundial da educação, passou quase despercebido para o grande público e até para as instituições com responsabilidades na administração educacional. No ano 2020, foi instituído o 28 de Abril como Dia Mundial da Educação. Foi sob proposta do Fórum Mundial de Educação, realizado em Dakar, no Senegal. Moçambique foi parte integrante deste momento e movimento. Assumiu e incorporou, inclusivamente, uma das suas recomendações mais importantes, a universalização do ensino, com acesso ilimitado predominantemente para as raparigas. Era a resposta que melhor condizia com os objectivos do desenvolvimento humano e de desenvolvimento sustentável.  É a partir da educação que conseguiremos ultrapassar os problemas alimentares, melhorar a qualidade da saúde e promover um desenvolvimento sustentável. A qualidade da educação de um país determina o seu nível de desenvolvimento.

 

Apesar dos progressos registados e dos resultados marcadamente encorajadores, quer em Moçambique, como em vários países signatários, muito em particular no que concerne a redução da exclusão escolar, falta de infra-estruturas, maior contratação de professores e grelhas curriculares mais ajustadas, se constatou, contudo, uma verdadeira encruzilhada. As instituições de educação migraram de problemas mais simples, para os mais complexos e, por vezes, insanáveis. Assegurar que todos têm ingresso e acesso, são conceitos, algumas vezes, irreconciliáveis. Ingresso significa a possibilidade de todos se poderem matricular e fazer parte do processo. Acesso, por sua vez, pressupõe uma aprendizagem com qualidade, usufruto dos recursos disponíveis, e o beneficiar desse conhecimento para o resto de suas vidas.

 

Um pouco pelo mundo, o 28 de Abril não se traduz, apenas, em momentos de reflexão. Os debates em conferências assumem uma dimensão mais estruturada e prolífica, com anúncios de grandes medidas e políticas que visam melhorar a qualidade da educação. Esta data, serve, igualmente, para expressar as estratégias e modelos tendentes a reverter as dissonâncias e incongruências típicas do sistema.  É, no entanto, importante que não se fique somente na identificação dos problemas e num elenco de intenções. É preciso que as intenções se materializem em acções!

 

A universalização será, sempre, um pau de dois bicos. O preço tem sido demasiado alto, sobretudo nos resultados da aprendizagem. Se inicialmente, os avanços iniciais eram acalentadores e moralizadores, posteriormente, geraram descrédito e índices de desconfiança em cadeia. A qualidade da educação passou a fazer parte do discurso corrente dos peritos e dos leigos. Mesmo considerando o uso e recurso às tecnologias, seria impossível disfarçar os resultados.

 

Os índices nacionais e internacionais que medem o desempenho da educação, revelam que existe uma incapacidade geral na aprendizagem, com mais de 90% das crianças incapazes de aprender a ler, escrever ou realizar cálculos simples, após três anos de escolaridade.  Mais grave, tem sido o desempenho dos próprios professores que, igualmente, não dominam a leitura e a escrita, pautam pelo absentismo, desinteresse pela profissão e por práticas de corrupção inqualificáveis.  Estes factos mostram como a qualidade da educação terá de passar, necessariamente, pela formação científica, pedagógica e ética dos professores.

 

Não admira, pois, que a cada 28 de Abril os educadores revejam os entraves e vazios que estão ocorrendo nos sistemas educativos. Escrevo estas linhas quando se celebra o dia da língua portuguesa, 5 de Maio. Comparo o frenesim deste movimento global, com os silêncios do 28 de Abril. A língua portuguesa, a bom rigor, se tornou no primeiro idioma do mundo a ter uma data oficial reconhecida pela UNESCO e, consequentemente, uma língua com mais de 265 milhões de falantes, em cinco continentes.

 

Porém, considerando que o nosso sistema de ensino se faz em português, para mais de 8 milhões de alunos do ensino básico, seria meritório que estas celebrações, se puderem associar e consubstanciar nesse quadro de referência entre ensino e língua. Não poderemos ignorar que existem mais moçambicanos que portugueses que se comunicam em português, e que o contexto multilíngue e multicultural que tipifica este país, tem a todo o custo que ser referenciado como parte desse esforço do sistema de ensino, pois, as dificuldades de aprendizagem se prendem às dificuldades em dominar a própria língua portuguesa.

 

Portanto, num momento em que se debate a língua portuguesa, por todo o mundo, as nossas reflexões vão no sentido de encontrar soluções para enriquecer a aprendizagem da língua portuguesa, mesmo considerando que a diversidade linguística já impôs as marcas das línguas nacionais no português falado em Moçambique. Portanto, assumir que estamos, muitas vezes, impedidos de comunicar com outros moçambicanos, caso não estejamos usando a língua portuguesa, como esse factor de unidade nacional. A qualidade que colocarmos no ensino desta língua terá reflexos imediatos na qualidade de ensino em Moçambique.  

 

O mote da actualidade não está dissociado da pandemia. Os resultados deste ano lectivo, longe das aulas presenciais, têm sido tímidos, pouco consistentes e reveladores de que os ganhos obtidos foram revertidos.  São vazios que não podem ser ignorados, num momento em que a esperança tem de suplantar o descrédito.

 

Por outras palavras, celebrar quer o 28 de Abril ou o 5 de Maio, terá de perpassar os limites das lições dos mestres nas academias e centrar-se nos falantes em todas as esferas da sociedade. Quando o cidadão tiver a consciência que existe um dia mundial da educação, como existe um dia da língua, fará mais sentido celebrar essas datas como um activo familiar, social e cultural.

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