Um centenário parece uma eternidade que esta imerecida lógica da vida impõe sobre a humanidade e nos condicionou às ausências infinitas. A mão invisível persuade-nos a abdicar da presença dos líderes que pavimentaram os caminhos de verde para deixar passar a liberdade e o futuro. De forma prematura, teríamos adorado seguir a revolução, ainda devotados pelas memórias e serenidade poética de Agostinho Neto. Foi como se uma estrela se tivesse escurecido no espaço celestial.
Fiz parte do grupo que saiu para as ruas para receber o Presidente Agostinho Neto, na sua última visita a capital moçambicana. Ele era discreto e exagerado nas suas aclamarias. O oposto de um Samora vibrante e extrovertido. Vimo-los abraçados e em franca cavaqueira. Algumas vezes, mais comprometidos e serenos. Uma cumplicidade que escondia uma amizade que se reconfigurava em irmandade. Meses depois, a força desse inapelável destino roubou, de todos nós, esse lutador intransigente, com visão profética e mobilizadora. O líder que frequentou mais cadeias e celas políticas, que qualquer outro da sua época. Como prisioneiro político, deambulou por Luanda, Lisboa, Cabo Verde, entre Santo Antão e Santiago e, novamente, Lisboa. Mas não era a ele que se prendia, mas sim aos seus poemas. Como se pudessem colocar algemas nas suas palavras.
Nenhuma masmorra, ainda assim, o privara de escrever esses proféticos poemas que denunciam as amarras e amarguras de um povo que vivia subjugado e oprimido. As prisões de Agostinho Neto desencadearam uma incontestável onda de protestos e de petições, de inúmeros intelectuais, de entre os quais o célebre filósofo francês Jean Paul Sartre; quem diria. Outros celebres intelectuais e artistas, apelaram, igualmente, a sua libertação, como se uma onda de grandes proporções e comoções tivesse invadido os corações de André Mauriac, Aragon e Simone de Beauvoir e, ainda, do prestigiado Nicolás Guillén, poeta cubano. A indignação não deixou de fora o pintor mexicano Diogo Rivera. Tamanho reconhecimento ditou que António Agostinho Neto fosse eleito o prisioneiro político do ano pela Amnistia internacional.
Já nos trajes de Presidente da República de Angola, Neto Kilamba, pseudónimo que o consagrou esse médico de profissão, poeta por vocação e iconoclasta líder revolucionário por missão, colocou Moçambique no topo das suas prioridades. Com Machel, sofreram juntos as agressões belicistas da África do Sul racista e da Rodésia de Smith.
As visitas de Estado entre Angola e Moçambique se regavam sob o manto da fraternidade. Por isso, Agostinho Neto tem o seu nome associado a toponímia nacional moçambicana, numa auspiciosa avenida no coração da cidade de Maputo. Igualmente, centenas de aldeias mais recônditas ostentam seu nome. Pelo menos, 36 escolas primárias e secundárias de Moçambique tem Agostinho Neto como seu patrono. A empatia e simpatia que granjeou no seio dos moçambicanos alimentaram esse caudal, tão devoto, de memórias que continuaram sendo invocadas entre distinções e designações. Agostinho Neto vive e se imortaliza como líder estrangeiro, patrono do maior número de escolas em Moçambique. Não deve ser obra do acaso.
O poeta e presidente que trouxe a independência à Angola foi dos mais proeminentes e carismáticos líderes africanos. Ombreia nesse estatuto com tantos outros intelectuais e líderes como Eduardo Mondlane, Samora Machel, Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos ou, ainda, com Léopold Senghor, Patrice Lumumba e Kwame Nkrumah. Também eles, rendidos e impregnados de veia e pensamentos utópicos, com uma dose de pragmatismo e humanismo. Agostinho Neto, sonhou Angola e todas as antigas colónias portuguesas como territórios e espaços livres e independentes, como Estados de justiça social, nações prósperas e unidas pela irmandade e solidariedade, educadas e, sobretudo, democráticas.
A meio da azáfama das eleições no seu próprio país, das cerimónias fúnebres de seu sucessor José Eduardo dos Santos, da fatídica guerra da Ucrânia e de outras intermináveis reuniões partidárias, ficamos, todos, devendo uma homenagem ao saudoso António Agostinho Neto, no seu centenário. Uma espécie de missa reconciliatória e purificadora. Um reencontro com os fundamentos dos nossos Estados e com os sonhos que seguiram outros rumos e horizontes. Ele próprio escreveu, em tantos poemas, que nunca se esta só e nem se deve ignorar a presença do outro; todavia, parece abandonado e sem convicções, no mausoléu que o alberga para que jamais desapareça do nosso imaginário.
Parece, pois, imperdoável que esta amnésia colectiva e ausência de pronunciamentos públicos e de outra índole, não sejam, por conseguinte, merecedores da indignação. Como nos alheamos a esse espírito revolucionário que serviu de menu para a nossa caminhada inicial? Não creio que seja, simplesmente, pela cultura de esquecimento que esta celebração ficou invisível, pois, não pode existir tanto descaso, sem razão, que omita a celebração deste centenário. Fomos presunçosos e, marcadamente desatentos, por quaisquer que sejam as razões.
Mesmo que não queiramos fazer-lhe aqui a biografia, seria incontornável reviver seu percurso, desde esse longínquo 17 de Setembro de 1922. Foi no Município do Icolo, Bengo, arredores de Luanda que tudo começou. Ali foi enterrado o cordão umbilical e o jovem António viu a luz do sol pela primeira vez. Oriundo de uma família já assimilada e com créditos evidentemente reconhecidos, seu pai, Agostinho Neto, era pastor metodista e catequista da mesma missão metodista americana, em Luanda. Sua mãe, Maria da Silva Neto, por outro lado, era professora primária. Se aglutinavam os condimentos para que o jovem António enveredasse e revelasse sua apetência pela literatura e rigor escolar.
Ele foi educado para saber usar o verbo na sua plenitude. Esse mesmo poder da palavra o transformou e marcou profundamente a sua personalidade e irreverência. Do poema à utopia revolucionária foi um passo subtil e mágico. Essa utopia o personificou e fez dele jovem inconformado, atento as dinâmicas do seu povo, alguém que não se evadia da realidade e do sofrimento, e que referenciava, nas suas quadras e estrofes, a realidade que o circundava. Emancipou-se e jurou usar essa mesma palavra para combater, sem tréguas, a descriminação e o colonialismo. A deambulação de seus escritos e a tonalidade de suas palavras, converteram-lhe naquele sujeito poético que a humanidade testemunhou e que lutou contra a ordem existente até a independência de Angola.
Amadurecido pelas circunstâncias e com o apoio da igreja metodista, foi uma lança que desferiu golpes contra o regime colonial português. Importante salientar a igreja Metodista como a mesma igreja que ajudou tantos outros nacionalistas a prosseguirem seus estudos para melhor combaterem a presença colonial em seus países. Nem mesmo a Congregação dos Padres Burgos ou mesmo Jesuítas teve tanto impacto na preparação e financiamento de estudantes nacionalistas. Eduardo Mondlane teve e recebeu o mesmo apoio. Não se pode, portanto, dissociar o papel e a responsabilidade da igreja metodista no apoio aos processos revolucionários nas ex-colónias portuguesas.
Neto Concluiu o Liceu “Salvador Correia”, em Luanda, onde terminou o 7º ano em 1944, e partiu para Coimbra, Portugal, onde frequentou a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e depois Lisboa. A capital portuguesa fervilhava e transbordava a lava de vulcão da revolução. As dinâmicas propiciaram o momentum e os espaços para que a militância política ganhasse suas letras de ouro e glória. Por ironia do destino, o controlo da polícia política portuguesa fraquejou e permitiu que Lisboa se convertesse na sede embrionária da subsequente revolta anticolonial.
Em 1947, António Agostinho Neto integrou o movimento dos jovens intelectuais de Angola, cujo lema era vamos descobrir Angola. Associou-se aos não menos carismáticos Lúcio Lara e Orlando Albuquerque, publicando seus textos iniciais nas revistas Momento e Mensagem, que pertenciam aos órgãos da associação dos naturais de Angola. Casou-se, mais tarde, com Maria Eugenia Neto, seu maior amor e mulher, com quem partilhou todas as cumplicidades que, igualmente, visitou Moçambique, passeando todo o ar da sua descrição, generosidade e sabedoria. Eles tiveram três filhos, sendo Mário Jorge Neto, o primogénito, depois, Irene Alexandra Neto e, finalmente, a Leda Neto.
Os seus exímios poemas e a colectânea de textos publicados, insuflaram as mentes e o sentimento libertador. Pelos seus dedos e caneta, transfigurava a vontade de libertação. Neto foi esse esclarecido homem de cultura para quem as manifestações culturais tinham de ser, antes de mais, a expressão viva das aspirações dos oprimidos e a arma para a denuncia da injustiça e crueldade colonial. Um exemplo a seguir pelo simbolismo que representa e pela multiplicidade de acções que desenvolveu.
Em 1956, fundaram-se, nos arredores de Luanda, em Angola, vários movimentos patrióticos para formar o MPLA. A 4 de Fevereiro de 1961, as prisões de Luanda foram assaltadas por homens munidos de catanas e armas de fogo. Algumas das quais capturadas em acções anteriores. Mesmo sem lograrem os intentos, estava lançada a primeira salva da luta armada que se alastraria pelo solo angolano. A resposta dos portugueses foi cruel. Bombardearam aldeias e milhares irmãos angolanos sucumbiram aos métodos mais horrendos do colonialismo.
Em 1962, sai, de forma clandestina, de Portugal e se estabelece em Léopoldville, Kinshasa, onde o MPLA tinha já a sua sede. O primeiro congresso do MPLA elegeu Ilídio Tomé Alves Machado como seu primeiro presidente, permanecendo em funções até ser preso, em 1959. Foi substituído pelo secretário-geral, Mário Pinto de Andrade, que exerceu o cargo entre 1959 e 1960. Em 1963 foi declarado Presidente do MPLA, substituindo Mário Pinto de Andrade. No interior de Angola, outros movimentos libertadores faziam já a sua luta, a UNITA, de Jonas Savimbi e o FNLA, de Holden Roberto.
Ao poeta António Agostinho Neto foi-lhe atribuído, em 1970, o prémio Lótus, pela Conferência dos Escritores Afro-asiáticos. Publicou vários livros cujo substrato e pendor exaltavam o sonhar e lutar pela independência. Ainda hoje, guardo um dos seus poemas, a bom rigor, dos meus substratos favoritos. Este poema foi musicado por Rui Mingas. Minha Mãe/tu me ensinaste a esperar/como esperaste paciente nas horas difíceis/mas a vida matou em mim essa mística esperança/eu não espero/sou aquele por quem se espera. Agostinho Neto revelava e recorria a metáfora da Mãe, como representação da pátria e como o centro de toda a sua narrativa.
Tive o ensejo e prazer de ler um texto escrito por Beto Van-Danem, enquanto encerrava minhas memórias sobre António Agostinho Neto. O autor recorda episódios pitorescos que mostravam a grandeza e personalidade de Agostinho Neto. Era existente e transparente. Só isso permitiu que se mantivesse leal a uma gestão digna, criteriosa, rigorosa e exemplar. Ele entendeu a liderança partidária como uma forma de servir ao povo e não de se servir do Estado. “O Neto era um homem honesto, não vivia deste país e é por isso que morreu pobre”, comenta Van Dunem. Saudades desse tempo e da justeza do movimento pós-colonial.
Ninguém ousou jamais questionar, ao longo dos anos, sobre a possibilidade de Agostinho Neto ter deixado contas no estrangeiro. Elas simplesmente nunca existiram. Neto morreu com a roupa que tinha no corpo. Não tinha dinheiro, concluiu Van Dunem. Era, convenhamos, um Machel numa versão Atlântica.
Neto partiu quatro anos depois de ter sido proclamado Presidente. Para trás, uma única mancha que pode ter marcado seu brilho: 27 de Maio de 1977. A forma como os revolucionários responderam a um movimento interno e uma alegada tentativa de golpe de Estado. Angola já se retractou, mas as mágoas ficaram muito para além do por do sol. Aqui estão os 100 anos de uma vida plena e tumultuada, uma poesia profética, porém, verdadeiramente, instigante.
António Agostinho Neto e seus camaradas e amigos de sempre, Amílcar Cabral, Lúcio Lara, Eduardo Mondlane, Samora Machel, Marcelino dos Santos, Orlando Albuquerque, Ilídio Tomé Alves Machado e tantos outros, incluindo Jonas Savimbi, já tiveram tempo de prestar as contas a divindade e recebem as últimas notícias de José Eduardo dos Santos. Os tempos são adversos onde a revolução e os revolucionários perderam a centralidade e os novos ventos aniquilam os anseios de outrora. Os líderes revolucionários, parafraseando Machel, nunca morrem, porque ganham o tamanho e estatuto de um povo. Povo nunca morre. (X)
A luz com que vês os outros é a luz com que os outros te vêem a ti. Provérbio africano
Este primeiro de Junho tem de ir além das comemorações, para ser, igualmente, um momento de reflexão sobre o quanto crianças com deficiências precisam ser olhadas, respeitadas e incluídas em todos os espaços da nossa sociedade. Na realidade, independente do que julgamos ser, saber e possuir, temos todos, grosso modo, uma deficiência temporária ou permanente. Esta deficiência se revelará em algum momento das nossa vidas. Quando isso suceder, as experiências podem ser mais ou menos marcantes, mas não deixarão de ser histórias de vida, de amor e de compaixão.
O leitor tem, em suas mãos, a primeira experiência literária de uma jovem mãe, guerreira, destemida, obstinada e que não se conforma com fatalismos e desigualdades. Uma mulher que conquista nossos corações e ganha estatuto de mulher solidária. Percorrendo estas páginas, reencontramos alguém que se predispõem a partilhar suas privacidades, contrapondo com o ostracismo e silêncios. Um exercício de reconstituição de memórias e convulsão de sentimentos. Benilde Mourana encontrou na deficiência todas as razões para interagir com o grande público leitor.
As facetas mais fascinantes da vida são, quiçá, as mais simples de serem descritas. As outras, mais complexas, obedecem e sugerem roteiros distintos. Temos de conformar a dor e o sofrimento, para reencontrar o caminho do alívio e da tranquilidade. Porém, a vida, este dom divino que desfrutamos na plenitude ou em partes, nos ensina fundamentos e lições diversas. Revelar estas facetas pode ser uma experiência fenomenal ou traumática. Mas, ignorar as diferentes dimensões da vida parece ser inconsequente. Então, reencontre nesta narrativa a revelação da inquietude e do amor, do sofrimento e da paz, a retoma pelos modelos de superação, reinvenção das memórias e a alucinante vontade de estabelecer uma comunicação horizontal.
A autora deste livro, nesta primeiríssima viagem descritiva, não cuida apenas de uma filha com problemas, trata de várias dezenas de crianças e jovens. Ao assim proceder, ela não só repõe a esperança aos familiares, mas, também, devolve um sorriso às crianças, jovens e até adultos com deficiência. Nesta relação, fica escancarada a certeza de que o amanhã se escreve com as cores do arco-íris de hoje. A autora converte-se numa espécie de Madre Teresa de Calcutá, que vence as emoções e empenha-se no essencial. Uma mulher de causas, recriando ou ressignificando os caminhos da indiferença e da negação da felicidade e do futuro.
As famílias moçambicanas mais carentes enfrentam, em diferentes em períodos históricos, a questão moral e ética de como lidar, incluir e apoiar, com mais perspicácia, com ou sem recursos, as pessoas com deficiência. Essa tarefa torna-se, cada vez, mais premente com o avançar da idade destas crianças e adolescentes. Em causa esta a tipologia e a demografia deste grupo populacional. A situação está longe de fácil, compreensível e aceitável. Em jogo estão cuidados primários, alimentares, apoio psicológico e moral. Em causa está a vida e a qualidade de vida que tem de ser providenciada. Enfim, a vivência nos limites da capacidade emotiva, física e emocional. Porém, estas famílias não vergam e nem viram, nunca, a cara a luta. Cada dia tem sido um dia, e em cada sorriso infantil rebuscam das cores invisíveis dos raios solares, a energia e foco para levarem a bom porto a sua missão.
Ao longo da obra, entendemos o sentido primário e ético de vocação; o sentido superior de missão; a face da virtude. Pela história de Luana, essa jovem menina que agora beijou os seus dez aninhos de vida, reencontram-se estes conceitos associados a crença e a fé. Este escrito, ainda que force a leitura com os olhos embaciados, leva-nos de volta ao sentido de chamamento. Benilde e seu grupo de colegas e profissionais, aqui superiormente narrados, repõe uma espécie de despertar, refazendo o convite para ampliar o valor intrínseco de sua vida, abandonando a inércia ou a zona de conforto, abraçando, deste modo, essa causa que faz dela e delas, verdadeiramente, pessoas especiais. Ao cuidar de crianças e jovens com deficiência, elas próprias se transformam em pessoas especiais, perseguindo novos sonhos, objectivos e, na maior parte dos casos, transformando-os em realidade.
A deficiência perpassa a estabilidade familiar e emocional, colocando-se num plano da inserção dos portadores de deficiência, ao nível societário na estabilidade e no próprio desenvolvimento de Moçambique. Existem evidências de que pessoas com deficiência experimentam os piores resultados socioeconómicos e pobreza, se comparadas com as pessoas não deficientes e mais independentes. Todavia, apesar da magnitude desta situação, carecemos tanto de consciência, como de informação científica das reais causas ou consequências da deficiência. Não existem consensos sobre definições, nem credíveis informações, que permitam comparar, com exactidão, a incidência, distribuição e tendências da deficiência. São escassos os documentos com análises comprovadas, sobre como lidar com a deficiência e, sobretudo, sobre as respostas para abordar as necessidades das pessoas com deficiência.
Historicamente, as pessoas com deficiência têm, em sua maioria, sido atendidas através de soluções segregacionistas, tais como instituições de abrigo e escolas especiais. As pessoas com deficiência apresentam piores perspectivas de saúde, níveis mais baixos de escolaridade, participação económica menor e taxas de pobreza mais elevadas em comparação as pessoas sem deficiência. Naturalmente, isto acontece pelo facto de as pessoas com deficiência enfrentarem barreiras no acesso a serviços que muitos de nós consideram garantidos, como saúde, educação, emprego, transporte e informação. Tais dificuldades são exacerbadas nas comunidades mais pobres.
O relatório Mundial sobre a deficiência múltipla, de 2012, dava conta de que mais de um bilhão de pessoas em todo o mundo convivia com alguma forma de deficiência, dentre os quais cerca de 200 milhões experimentam dificuldades funcionais consideráveis. A previsão era de que, nos próximos anos, a deficiência seria uma preocupação ainda maior, porque a sua incidência tem aumentado exponencialmente. Este aumento tem a ver com o aumento global de pessoas expostas ao risco de deficiência crónica, tal como as diabetes, doenças cardiovasculares, canceres e distúrbios mentais. A saúde humana também tem sido afectada por factores ambientais, tais como água potável e saneamento do meio, nutrição, pobreza, condições de trabalho, clima, ou até acesso a atendimento de saúde. Mas, a desigualdade tem sido das principais causas dos problemas de saúde e, por conseguinte, da deficiência.
Em Moçambique, estas razões encaixam na sua plenitude. Porém, existem, ainda, as causas sobrenaturais ou espirituais. Não admira que um país que continua tendo mais de metade da sua população recorrendo a tratamento fora de unidades hospitalares, socorra-se a espiritualidade para explicar o fenómeno da deficiência. Assim, a explicação mais lógica tem sido o fenómeno da reencarnação dos espíritos. Os defuntos das famílias nem sempre são tratados com a devida dignidade e, assim, eles regressam à terra para se instalarem em determinadas pessoas. Esta crença explica uma relação difícil e complexa entre as famílias e seus filhos com deficiência.
Existem casos de filhos com deficiência que são retirados da família para serem enviados para o campo ou para as periferias, longe do núcleo central da família. Famílias que exerçam lideranças tradicionais convivem mal com o fenómeno deficiência e imputam as culpas às suas esposas por estas ocorrências. A autora foi acusada de ter cometido adultério. Esta é uma explicação comum e despropositada, não tem nenhuma prova nem racional científico.
Benilde Mourana quis partilhar a narrativa da sua trajectória e desmistifica e desconstrói factos complexos da deficiência, conferindo um carácter de humanismo, simplicidade e uma bênção divina. Deus, como ente superior, determina o caminho de cada ser e sabe qual o papel que cada um de nós precisa de seguir e desempenhar na terra. Com mestria de quem quer transmitir e escrever a meio de tantos outros afazeres, ela sugere que são estas crianças e jovens que fazem e convertem a todos nós como pessoas especiais.
Na sua descrição sobre Luana, sua filha de quem teve uma gravidez normal, e que embora não estivesse disposta a seguir com a gravidez, ela revela que a mesma não aparentava nenhuma complicação até ao nascimento. Seguiu as recomendações médicas e fez as consultas pré-natais com a devida regularidade. Só descobriu e tomou consciência da gravidade do problema da sua Luana, depois de ter visitado diferentes médicos no país e na África do Sul e em Portugal. Portanto, um caso de doenças raras, mas, que mudou de alguma forma a sua rotina e o modo como lida com a situação. Por isso, estas páginas pincelam essa angústia, mas, e sobretudo, a certeza de que o mundo foi feito para todos e, cada um a seu tempo, seguirá trazendo felicidade ou infelicidade para os que acreditam e para os menos crentes.
Esta narrativa nos transporta para outras facetas e para a essência de uma trajectória que faz questão de não esconder ao mundo. Fá-lo com orgulho e com uma capacidade de escrever e expurgar a dor. Exorcizar os fantasmas e colocar a divindade no centro do destino e da criação humana. Porém, tem sido claro que a maioria das pessoas com deficiência no mundo, tem extrema dificuldade até mesmo para sobreviver a cada dia, quanto mais para ter uma vida produtiva e de realização pessoal. Enquanto, algumas poucas pessoas, pelo mundo, tem a sorte de ter apoios e recursos para viver uma vida que vale a pena, a autora não tem perspectiva de que o seu pequeno espaço possa beneficiar de meios eficazes para levar a bom termo o seu trabalho. Mas, ela encontra algo bem mais significativo e importante: a superação, o apoio dos amigos e uma legião de pessoas que abraçam a causa da cidadania.
Embora a autora reconheça que, nas últimas décadas, o movimento das pessoas com deficiência ganhou novos contornos e atenção, a sua obra não tem o efeito de chamada de atenção, mas o de educar e transpor o papel das barreiras físicas e sociais vis-à-vis a deficiência. Para a autora, as pessoas são vistas como deficientes pela sociedade, porém muito para lá destas incapacidades, esta uma vida, um sorriso e o amor incondicional que eles oferecem a todos sem excepção. Portanto ela apela a uma abordagem conceptual mais equilibrada, que deveria dar mais ênfase ao enquadramento social, dos que propriamente ao estado físico.
A autora tem o mérito de explicar, de forma simples, que a deficiência afecta seja a criança recém-nascida com uma condição congénita, tal como paralisia cerebral, como também afectaria vítimas de acidentes, de guerra, pessoas que sofrem de artrite ou alguém que passa por algum infortúnio, que sofra de demência, de entre muitas outras causas. Um enxoval em cadeira de rodas como sugere o título. Quando terminar esta leitura entenderá que os problemas de saúde podem ser visíveis ou invisíveis, temporários ou de longo prazo, estáticos, episódicos ou em degeneração, dolorosos ou inconsequentes. No final estas crianças, como a sua Luana, natalina, e as dezenas de Luanas, que estão sob seus cuidados nem sequer se consideram pessoas com deficiência ou enfermas, são os seres que nos fazem especiais. (X)
Existe uma história de um animal pequeno, chamado porco-espinho. Conta a lenda que num dia de frio, alguns destes porcos-espinhos juntaram-se para se aquecerem com o calor dos seus corpos. Mas, logo, viram que se espetavam e se afastaram. Ficaram com frio. Na tentativa de reaproximação, descobriram a distância adequada.
Assim, também, acontece na nossa sociedade. O vazio, a descrença, a pobreza, a mingua e as amarguras existenciais, aproximam as famílias e o cidadão comum. Porém, muitos de seus defeitos desagradáveis os repelem. Por outras palavras, toleramos a proximidade dos outros só quando é necessária à nossa própria sobrevivência e bem-estar, porém, de outro modo, evitamo-nos.
É comum a abordagem dos nexos e conexões que se estabelecem entre os diferentes grupos religiosos, pois é nesses nexos e conexões que se encontram as linhas estruturantes para o diálogo intra-religioso, elemento fundamental para uma convivência pacífica entre eles. Para Moçambique, em particular, intriga e fascina rever o processo de construção do Estado moçambicano e a interacção com os diferentes grupos religiosos. Com a implantação do Estado colonial, viu-se que, por exemplo, a igreja católica era parte integrante do processo de espacialização, territorialização do aparelho burocrático-administrativo, nos espaços assumidos como Moçambique. É certo que a igreja católica teve essa relação íntima com o Estado colonial, porém, outras confissões religiosas, os protestantes e os de confissão islâmica, em particular, foram parte integrante da construção do Estado.
As relações entre o Estado colonial e as duas confissões retrocitadas nunca foram pacificas, ou seja, foram de desconfiança, de conflito e de confrontações. Este tipo de relações conflituosas ou de desconfiança manteve-se durante a primeira República. Foi, portanto, uma relação com rupturas, mas, desde os finais dos anos 1980, mormente, depois da constituição de 1990, muito esforço e empenho para entendimentos foram feitos, com o fito de aproximar as confissões religiosas, na sua diversidade, ao Estado.
Em boa hora, foi celebrada, a jornada Mundial da Religião, que teve o beneplácito das Nações Unidas, apelidada como dia internacional da fraternidade humana. Esta celebração serviu, para o nosso país rever os diálogos que englobam as diferentes confissões religiosas, repensar suas raízes e percursos. Foi, sobretudo, uma reflexão sobre a multiplicidade de religiões e o seu papel no processo de pacificação de um país que tarda a encontrar os caminhos da paz, da tranquilidade, da justiça social e da reconciliação.
Considerando a diversidade religiosa em Moçambique, subdividida entre cristianismo, islamismo e animismos, e outras formas de religiosidade, constatou-se que os distintos grupos são constituídos por pessoas de fé e, até, inegável alcance espiritual. Os discursos podem, salvaguardadas as devidas proporções, seguir na contramão dessa religiosidade e espiritualidade sã e estruturante para o bem do nosso país. No fundo, os diferentes discursos das confissões religiosas ainda ajudam a amolecer os corações, encaminham seus rebanhos para o bem supremo, veiculam união, fraternidade e amor entre os homens.
Acedi, gentilmente, o desafio de debater a fraternidade humana e o diálogo religioso, no contexto moçambicano, à semelhança dos vários seminários e conferências que ocorrem, um pouco pelo país, promovidos pela academia ou pelas organizações da sociedade civil. Convocar o diálogo religioso, ou a utopia de um diálogo religioso, que englobasse mais do que a fé, mas, que tivesse subjacente a reconciliação nacional, a paz efectiva, a concórdia e harmonia social. Quer dizer, revisitar a ideia da ausência de hierarquias entre as profissões ou confissões religiosas, a inexistência, portanto, de religiões superiores ou inferiores, de convicções mais ou menos comuns e incomuns, que perpassam a vontade de aglutinar os seus fiéis.
Comecei, precisamente, por uma revisão conceptual sobre a misantropia, quer dizer, como se posicionariam as nossas congregações e confissões religiosas diante de tantas desilusões, planos económicos e sociais falidos ou falhados e, até, pelo crescente vilipêndio pelas liberdades civis e pela vida. Indaguei se o diálogo religioso serviria de trampolim para libertar os crentes e fiéis das desconfianças, do sarcasmo do pessimismo e das aporias de um Moçambique que tarda a se reencontrar com o destino que deveria ser o seu, um Moçambique onde reina a concórdia, a justiça social e o progresso económico inclusivo.
Iniciei as minhas reflexões retomando conceitos clássicos sobre a fraternidade humana, rebuscando diferentes autores e o próprio “frater”. Concordamos que essa fraternidade era um pouco mais que irmandade, pois, abarcava aspectos relacionados com os direitos humanos, o respeito pela dignidade da pessoa humana e, sobretudo, a igualdade de direitos e deveres. Ou seja, a consagração da própria ideia de ser Homem, tanto no plano filosófico como no antropológico.
Revisitamos outrossim as encíclicas do Papa Francisco, que exalta a “Fratelli Tutti”, uma ideia que ele buscou em São Francisco de Assis. A propósito, o Papa Francisco afirma que a humanidade “cresceu em muitos aspectos, porém continuava analfabeta no acompanhar, cuidar e sustentar os mais frágeis e vulneráveis nas sociedades desenvolvidas”. Então, essa fraternidade não se reflecte num convívio social são, muito menos no amor, na convivência ou no reencontro são e fraterno. O Papa Francisco, ao voltar ao século XII para buscar as raízes da ideia que encerra a “Fratelli Tutti”, indaga-se sobre o sentido de humanidade nas sociedades pós-modernas, onde o individualismo excessivo, a indiferença e as desigualdades sociais tornaram-se a característica fundamental dos tempos hodiernos.
O livro a “Origem” do romancista e escrito americano, Dan Brown, ajuda-nos a percorrer os caminhos das religiões abraâmicas, ou seja, religiões monoteístas. Concebidas por Abraão, e com tradições e identidades e princípios muito aproximadas. Elas, à semelhança das religiões asiáticas, sobretudo, a Indiana, Darma, se espalham por todo o mundo e dominaram as diferentes crenças humanas que se estabeleceram.
O Cristianismo, o Judaísmo e o Islamismo converteram-se nas religiões com o maior número de seguidores e espalharam-se globalmente. Neste século são contabilizados mais de 3.8 biliões de seguidores das três principais religiões monoteístas. Cerca de 54% da população mundial. Portanto, se 16% da população não professa uma religião, significa que os restantes 30% professam outras religiões.
Extrapolando estes indicadores no contexto Moçambicano, em particular, podemos dizer que as tendências globais podem ter algumas parecenças. Moçambique é, também, monoteísta, sem descurar o animismo que mora em todos nós.
Numa conversa que fluiu, e na qual fomos unânimes em muitos aspectos, discordamos noutros, fomos fundo nalgumas questões fundamentais, sobretudo, na utopia, no sentido que o cultor do deste termo, Thomas More, quis dar, de um diálogo mais consentâneo, mais inclusivo e pacífico.
Um primeiro questionamento, cingia a obrigatoriedade de entender a comunhão do diálogo religioso, e ao surgimento de uma teologia contemporânea africana centrada, tal como nos foi proposta por Mbog Bassong no seu livro “La réligion africaine: de la cosmologie quantique à la symbologie de Dieu (2014). Como seria que os africanos poderiam criar uma fraternidade religiosa, sem deixar de ser africanos; como é que essa fraternidade, poderia ser evocada, sem deixarmos de ser moçambicanos. Estas duas interrogações integram-se nas primeiras interrogações, da primeira e segunda gerações dos que desenvolveram a teologia africana, a teologia que assumia que se o cristianismo é único, ele é vivido de forma diferente, em função das praticas culturais de cada contexto. Há aqui questões de ordem meramente teológico-religiosas, mas igualmente de ordem epistemológicas profundas.
Em segundo lugar, tocamos nas nossas crenças animistas e avaliamos como elas conflituam com o processo de evangelização que foi apanágio dos diferentes missionários e pregadores, geralmente vindos do ocidente, que criaram as diferentes seitas religiosas no nosso país. Vivemos com o animismo impregnado em nossas consciências, em nossas práticas culturais e sociais. Podemos, por isso, dizer que o animismo é parte integrante da nossa percepção sobre o mundo, no geral, e do mundo religioso, em particular. É habitus, no sentido que lhe dá Pierre Bourdieu. Os momentos mais difíceis nos levam de volta às origens, porque é nelas que se encontram as estruturas e as potenciais respostas às nossas principais indagações existenciais e religiosas.
Aliás, os escritos de Desmond Tutu testemunham uma variedade de teólogos africanos que estudaram essa transição de interculturalidade entre as religiões monoteístas e as religiões animistas africanas. Existem precursores bem conhecidos como Joseph-Albert Malula, Meirand Hegba, Vicent Mulago, Engelbert Mveng, Jean-Marc Ela, John Mbiti e Fabien Eboussi Boulaga.
Uma terceira questão estava relacionada com a questão da misantropia, nas relações humanas, e como este espírito de fraternidade religiosa, que nos deveria unir, por vezes, nos separa. Diante de tantos problemas, pobreza, guerras e terrorismo, esse espaço de religião converteu-se num refúgio. Então, a normalidade da vida e da produção vai retirar os fiéis de suas igrejas?
Em quarto lugar, verificamos que uma postura misantropa e pouco solidária, já adoptada, tem feito dos moçambicanos concidadãos pouco solidários com as angústias e vicissitudes vividas dos outros. Dividimo-nos por questões de ideologia ou, ainda, por uma questão de supremacia de determinados partidos sobre os outros, ou ainda de aspirações pseudo-religiosas sobre os outros. É a própria ideia de Moçambique que tem sido desafiada quando estas clivagens se tornam normais e comuns na nossa sociedade, pois somos, como país, um projecto cujo sucesso depende do que formos capazes de fazer, e que a ideia de ser moçambique signifique aceitar e aquiescer o outro como sua própria continuidade. Somos solidários tão somente em casos de desastres naturais.
E esta postura que desperdiça oportunidades, convívio fraternal e um assumir de não fazermos parte do mesmo grupo. Mantemos um diálogo estéril e de desproveitos. Por vezes, consideramos que os contactos, para além dos mesmo grupos, são contaminação ou violação, o que é contrario aos fundamentos fundacionais da ideia de Unidade Nacional, elemento que nos é muito caro como moçambicanos.
Não poucas vezes, olhamos para irmãos e concidadãos, de diferentes ideologias e ideais, e achamos a aproximação inaceitável e perigosa. Acontece no plano politico, social, étnico e, agora, no religioso. Atitudes que são exacerbadas por discursos inflamados e produtores de rupturas e conflitos entre as pessoas. Aqueles jovens que passam pela doutrinação, sobretudo no norte do país, respaldam-se num discurso religioso fanático, teologicamente irracional, socialmente inconcebível, antropologicamente diruptivo e violento. Essas escolas religiosas, cuja liderança, assente em pessoas nacionais e estrangeiras mais radicais, têm fabricado fanáticos religiosos perigosos para a nossa unidade, para o nosso contrato social, para a fraternidade que tentamos, tão bem construir e consolidar.
As confissões religiosas necessitam de prestar mais atenção a estes processos que criam problemas até de sua própria legitimidade, de sua imagem social. Existem relatos assustadores de promoção de ódio e vingança, com base no sentimento de pertença religiosa. A questão da religião é hoje, como nunca foi, um problema central no processo de construção e formação do Estado moçambicano, de construção e consolidação da Unidade Nacional, do aprofundamento no nosso contrato social.
Existe muito interesse, em muitos de nós, em procurar o espírito da tradição para que possamos encontrar o espírito da reconciliação. Isto tem sido parte das subjectivações, quer das nossas classes mais esclarecidas, como do cidadão comum. Será que o diálogo inter-religioso e intra-religioso da paz, irmandade e reconciliação, ajudaria na difusão dos valores essenciais dessa narrativa de fraternidade humana?
Encerrei a conversa, com os líderes de todas as confissões religiosas ali presentes, regressando aos tempos de infância e adolescência. Passei uma parte da adolescência na cidade de Nampula, convivendo com jovens cristãos e islâmicos. O meu discernimento juvenil jamais encontrou diferenças entre um lado e o outro da fé e espiritualidade.
Numa das missas, na S. Catedral, ainda com o Bispo Dom Manuel Vieira Pinto, dei conta de um jovem cujo nome era Omar Momad, que foi chamado para uma das leituras sagradas. Só, anos mais tarde, dei conta do significado desse gesto.
Este foi dos exemplos que mais e melhor me remeteu à questão da solidariedade humana e do convívio religioso que perpassa todos os valores e preceitos. Mas foi, também, um ponto de partida e de ruptura, para entender como nos podemos reconciliar e aniquilar preconceitos, como moçambicanos, e manter os exemplos de convivência religiosa que nos tipificam. Abraçar essa fraternidade como um dos principais factores nas nossas relações.
O nosso país tem muito mais conflito e muito mais dissonância entre políticos, do que propriamente entre religiosos. Precisamos de uma nova utopia, de uma moçambitopia, e de um diálogo que nos una, não apenas como moçambicanos, mas como irmãos e pessoas de fé e espiritualidade. A fé africana de Desmond Tutu, que despe de preconceitos e desconfianças. (X)
Por Jorge Ferrão e José P. Castiano
Talento é quando um atirador atinge um alvo que os outros não conseguem. Génio é quando um atirador atinge um alvo que os outros não vêem. Nyerere pode não ter sido nem um génio, nem uma pessoa extraordinária, porém, foi uma notável figura da África pós-colonial e um sábio, no sentido ancestral da sociedade africana.
Existe um fascínio exacerbado quando retractamos líderes africanos que marcaram o continente, na década 60. E nesse sentido, Julius Nyerere converte-se em referência obrigatória e consensual. Nyerere será, continuamente, recordado como um homem de grande sabedoria, que evitou o derramamento de sangue e confrontos violentos, no seu período político mais activo. Isto foi graças a essa sabedoria e ao seu alto sentido de humor, onde colocava a sua luta pela independência, sem guerrilha, e com uma apologia permanente sobre a paz.
Nyerere, conhecido pelo seu nome suaíli, Mwalimu, que significa professor, tinha uma paixão incessante por uma África unida que contrapunha, até a Nkrumah, do Gana. Ele traduziu William Shakespeare para suaíli e assumiu a sua política Ujamaa, que nem por isso foi bem-sucedida na mudança do panorama económico da Tanzânia. Ujamaa revelava a sua experiência como filho de uma grande família e toda a sua imersão no pensamento socialista da sociedade.
Apesar dos erros, que esta política económica representou, dois factores fundamentais marcaram o perfil de Nyerere enquanto dirigente da Tanzânia. Em primeiro lugar, o seu não alinhamento, expresso no seu bem elaborado discurso, de Outubro de 1967, na conferência da União Nacional Africana do Tanganica (TANU), onde afirmou que ele jamais seria anti-ocidental e, muito menos, anti-leste. O segundo factor esta relacionado à sua capacidade de articular as negociações; procurar privilegiar os valores africanos e assumir os valores do humanismo e do africanismo. O facto de nunca ter constituído uma fortuna pessoal e de se ter retirado do poder, em 1985, por livre vontade, fizeram dele um líder diferente cuja preocupação centrava-se apenas no seu povo.
No dia 13 de Abril celebraremos 100 anos de Julius Kambarage Nyerere, se ele estivesse ainda vivo. Nascido em Butiana, este homem marcou e atravessou todo um século libertário da África, com o seu pensamento e acção, e viria a morrer, ironicamente, em hospitais de Londres, a 14 de Outubro de 1999.
Presidente, escritor, sábio e intelectual, Nyerere usou a política para difundir os seus ideais. Poucos, que o viveram como Presidente da República da Tanzânia, sabem que ele foi um prolífico escritor do seu pensamento político[1], mas, sobretudo, um homem de acção política, de uma visão estratégica que ia para além do seu tempo. O Mwalimu dizia o que pensava e pensava, profundamente, no que dizia; também agia segundo o seu pensamento e pensava, profundamente, também nas suas posições e acções políticas.
No centro do seu pensamento esteve sempre a busca da Paz e não-violência, mesmo que admitisse uma fase de “violência organizada”, na luta pela liberdade. Por isso, recebeu, ainda em vida, condecorações e prémios tanto do Ocidente (Canadá, Suécia, etc.), como do Leste (Prémio Lenin da Paz, Prémio Gandhi da Paz).
Para Moçambique, a mais marcante acção de Nyerere foi o seu apoio à Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) (também apoiou as lutas da África do Sul, Uganda, Angola, Guiné-Bissau e Namíbia), permitindo que o seu país albergasse bases militares. E este apoio à violência armada organizada aos países vizinhos, não foi sem conflitos morais que precisavam de ser reflectidos: Como um pacifista, que sem dúvidas ele era, pôde apoiar grupos armados de libertadores, tanto mais que, na altura, eram conotados com o terrorismo.
Numa palestra sob o tema Stability and Change in Africa, em 1969, na Universidade de Toronto, convidado para a recepção de um doutoramento honorário, Nyerere reflecte sobre o sentido e significado da liberdade para os povos africanos, em particular na África Austral. Primeiro, preocupava-lhe a questão sobre como alcançar a liberdade (by peace or violence?) e, segundo, preocupava-lhe estabelecer uma clareza teórica sobre a dialéctica entre liberdade e desenvolvimento. De uma forma mais pronunciada, o livro Uhuru na Maendeleo (Liberdade e Desenvolvimento, 1974) é uma confrontação teórica sobre ambos dilemas.
Reflectindo sobre se a liberdade deveria ser alcançada por meios pacíficos ou violentos, Nyerere deixa claro, numa argumentação ímpar, a seguinte posição: primeiro, a batalha de todos os africanos é de alcançarem a Independência (que tinha o sentido na sua profunda convicção, da liberdade colectiva dos povos em decidirem por si mesmo o modelo de desenvolvimento a seguir).
É neste contexto que ele cria a teoria das portas para o diálogo. “Há muitas pessoas” – dizia ele – “que parecem acreditar que há uma virtude (heróica) na violência e que somente se a luta pela liberdade for conduzida em forma de uma Guerra e derrame de sangue pode conduzir à uma (verdadeira) liberdade”.
E acrescentava Nyerere, logo de seguida: “Eu não sou uma dessas pessoas” que pautam pela violência, porque nutria um respeito profundo pelas formas pacíficas de transferência de poderes, daí se explique o Prémio da Paz Gandhi.
A partir daqui, Nyerere desenvolve a sua teoria de portas abertas e entreabertas para um diálogo pacífico entre o colonizado e o colonialista, ou racista, em torno dos caminhos para a Liberdade. Se a porta para as negociações pacíficas estiver fechada, os movimentos de libertação deveriam, primeiro, no seu entender, fazer esforços para a abrir. Se, em contrapartida, a porta estiver entreaberta, ela deveria ser empurrada de tal modo que fique completamente escancarada. E acrescenta: “Em nenhum dos casos a porta deveria ser explodida à custa dos que estão do lado de dentro”[2].
Entretanto, Nyerere continuava dizendo que “se a porta, em contrapartida, estiver fechada à chave e, ainda, por cima disso, aparafusada (ou gradeada), e os porteiros se recusarem abrir a fechadura e a retirar os parafusos, então, a nossa escolha deve ser clara: ou aceitamos continuar a viver na opressão ou arrebentamos com a porta”. Portugal era um desses gate keepers, que não aceitava abrir a porta para um diálogo civilizado[3]. Não restava mais nada à Tanzânia, senão apoiar aos movimentos de libertação que lutavam contra os teimosos colonialistas. Mas, esse apoio da Tanzânia era bem específico e à medida das suas possibilidades: “nenhum tanzaniano vai participar directamente nesta Guerra. Também reconhecemos que não poderemos fornecer armas aos freedom fighters. Mas, nós não podemos chamar atenção (ao Mundo) para a necessidade da libertação na África Austral e ao mesmo tempo negar a assistência (…) sabendo que as portas para as negociações estão fechadas e aparafusadas”.
O segundo significado de Liberdade, que Nyerere tratava de sublinhar, denominava-o por Principle of Self-determination and of National Freedom. Cada país faz ou decide fazer o que bem achar com a Liberdade alcançada. Nyerere tratava de sublinhar que, uma vez independente, a escolha do modelo de desenvolvimento é um affair dos povos que habitam os mesmos países, e não de potências ocidentais e de outros países africanos. Pois, escolher se cada país africano independente devia seguir a via socialista, comunista ou capitalista de desenvolvimento não competia aos países europeus, nem americanos, nem asiáticos. Portanto, sublinha-se, aqui, a ideia da Liberdade enquanto opção para o desenvolvimento. (Mais tarde, Amartya Sen e num plano mais teórico, viria a vincar uma tese complementar à de Nyerere, nomeadamente Development as Freedom de 1999).
É na sequência desta última ideia que devemos ler o sentido e o significado da luta de Nyerere, no plano internacional, por consolidar a ideia da União Africana e do não-alinhamento. Ele foi muito activo na luta pelas relações comerciais Sul-Sul, membro-fundador da OUA e organizador acérrimo das conferências internacionais dos países não-alinhados.
O seu colega e amigo, do movimento pan-africanista, Nkrumah, presidente do Ghana, viria, talvez, resumir melhor este pensamento de Nyerere quando dizia que “em questões de desenvolvimento não nos interessa se a direcção é o Este ou o Oeste: caminhamos para a frente[4]. O “para frente” significava, para Nkrumah, duas frentes de luta: internamente, um investimento massivo na educação e formação, na construção de infra-estruturas e de um Estado nacionalista independente; externamente, entretanto, o “para frente” significava um trabalho alinhado de todos os povos e nações africanas com os objectivos da organização continental, a OUA.
Para Nyerere, em contrapartida, a frente imediata, antes da OUA, era, por um lado, mais concentrada na concepção de uma agenda endógena e nacional de desenvolvimento (neste quadro ele desenvolve a teoria e a prática do Ujamaa e education for self-reliance); e, por outro, no plano regional, a consolidação da SADCC, sem com isto querermos dizer que Nyerere era menos pan-africanista do que Nkrumah.
Neste ano das celebrações do seu centenário, não seria despropositado celebrar este filho prominente da nossa África no seu pensamento e na sua acção. Como pensador, ele preocupava-se por fundamentar as condições e possibilidades para não se fecharem as portas do Diálogo, da Paz e da Reconciliação; todavia, quando se tratasse de conquistar e defender a Liberdade, ele admitia a “violência organizada”. E, mesmo já nos anos 70, Nyerere alertava para o perigo de Guerras posteriores às independências na região Austral da África devido à acumulação de armas na zona.
Se o Ocidente continuasse a fornecer armas a Portugal, África do Sul e Rodésia do Sul, na escalada que fazia, então não haveria outra chance de os Movimentos de Libertação para prosseguirem, senão também pedirem armas à China, União Soviética e outros países do Leste. Dizia Nyerere: Not even the most skilled guerilla movement can fight machine guns with bows and arrows, or dig elephant traps across surfaced roads. Tivemos que recorrer às armas do Bloco do Leste.
E assim foi escalando o nível de violência armada na nossa zona. E isto acontece, como diz, e não se cansou de ensinar-nos Nyerere, quando as portas para o diálogo e negociações estão não somente trancadas à chave, se não também gradeadas e aparafusadas.
No seu próprio país, em 1977, ele quis dar um exemplo de concórdia e de “portas abertas ao diálogo” que tanto pregava. Por isso unificou os partidos Tanganyika African National Union (TANU) e o Afro-Shirazi Party do Zanzibar para formar o Chama cha Mapinduzi (Partido da Revolução). Pensava, assim, alcançar uma maior harmonia, paz e reconciliação social na República que liderava.
Um homem de paz, sabedoria e acção que foi Mwalimu a quem vale a pena celebrarmos o seu centenário (X).
[1] 1968: Freedom and Socialism; 1974: Freedom & Development, Uhuru na Maendeleo; 1977: Ujamaa-Essays on Socialism; 1979: Crusade for Liberation; 1978: Development is for Man, by Man, and of Man.
[2] In neither case should the door be blown up at the expense of those inside (Cfr. Stability and Change in Africa. In: Nyerere, J. (1973): Freedom and Development/Uhuru na Maendeleo. A Selection from Writings and Speeches 1968-1973. Oxford University Press, Nairobi, London, New York. (pp108-125). Os que estão por dentro e não queriam abrir a porta são, na altura (1969), os regimes racistas da RSA, Rodésia do Sul e o regime colonialista português. Mas, a todos Nyerere chama por racialists.
[3] No mesmo tom, mais tarde, e durante os Acordos de Lusaka e perante a proposta portuguêsa de se fazer um referendum para aferir a Independência, Samora Machel viria a radicalizar esta tese dizendo que não se pergunta a um escravo se quer ser livre ou não.
[4] We face neither East nor West; we face Forward.
(Parte II e Conclusão)
Patrício Langa* & Jorge Ferrão**
A decisão pelo estabelecimento do ensino superior, nas colónias Portuguesas de Angola e Moçambique, foi, por um lado, tomada com muita hesitação e sob pressão interna dos colonos nessas províncias do ultramar colonial, e, por outro lado, externa, particularmente, pelas Nações Unidas, devido ao intensificar dos movimentos reivindicativos das independências dos povos Africanos que já tinham na independência do Gana em 1957, sob liderança do carismático Kwame Nkrumah, uma fonte de inspiração.
O ano de 1960 e subsequentes viram mais de 13 colônias africanas a ascenderem à independência. O ambiente interno, na colônia, como o externo, não era favorável ao status quo. Assim, o regime foi forçado a adoptar medidas de reforma do Estado, incluindo no sector da educação. No seu âmago, as reformas não visavam alterar o carácter colonial do regime, mas mistificá-lo ideologicamente com um rosto mais humanista, particularmente em relação ao tratamento oferecido às populações nativas não brancas.
As ideias do luso-tropicalismo, isto é, da celebração da miscigenação racial e cultural atribuída pelo Antropólogo Brasileiro, Gilberto Freyre, ao carácter idiossincrático do colonialismo Português, foram inicialmente rejeitadas por Portugal, nos anos 30 e 40 do Estado Novo. No entanto, o luso-tropicalismo passou a ser ideologia do Estado colonial implementada nos anos 60, particularmente, através de reformas propostas por Adriano Moreira, ministro Português do ultramar, como forma de mitigar a crescente contestação ao regime colonial fascista e ao status quo.
A pergunta fundamental sobre o estatuto e o papel do ensino superior na sociedade mostra-se aqui relevante. Numa altura em que Portugal ainda sonhava com água para a manutenção do status quo, é legítimo questionarmo-nos sobre para que projecto de sociedade a nova universidade estava a ser criada? Que função social a nova universidade iria cumprir? Seria a nova universidade o laboratório, por excelência, do experimento luso-tropicalista, no contexto das colônias africanas? A quem, então, o regime Salazarista iria confiar a gestão das novas instituições de ensino superior em Angola e Moçambique, sabendo do potencial que as universidades podiam representar para o despertar da consciência nacionalista e da necessidade de transformação profunda da sociedade? Parte das respostas a estas questões encontram-se nas lideranças que Portugal identificou para conduzir os desígnios das novas universidades em Angola e Moçambique.
Os Primeiros Reitores da EGUM e ULM 1962-1970/6
José Veiga Simão (JVS) foi o primeiro de três reitores coloniais, e aquele que mais tempo permaneceu no posto, quase oito anos, entre 21 Agosto 1962 e 15 de Janeiro de 1970. A sua saída da reitoria foi por via de uma promoção à Ministro da Educação Nacional. Simão foi um exímio equilibrista entre a academia e a política, granjeando simpatia em ambos os campus. Nascido em Portugal, em 1929, veio a falecer em Lisboa em 2014. Cedo formou-se em ciências físico-químicas na Universidade de Coimbra (UC), em 1951, com uma licenciatura e, depois, seguiu para o doutoramento em física nuclear na prestigiada Universidade de Cambridge, na Inglaterra.
De reitor da Universidade de Lourenço Marques (ULM), passou ao cargo de Ministro da Educação Nacional até à altura da Revolução dos Cravos que destronou o regime fascista em Portugal. Entre 1974 e 1975, foi embaixador de Portugal nas Nações Unidas e, mais tarde (1983-1985), deputado da Assembleia da República Portuguesa pelo Partido Socialista. Recebeu vários Doutoramentos Honoris Causa, incluindo um pela actual Universidade Eduardo Mondlane (UEM) que, quanto a nós, só pode ter sido resultado da amnésia histórica dos proponentes em relação ao papel de Simão na perpetuação mistificada e demagógica do status quo do regime fascista e colonial.
Os cerca de oito anos do mandato de Simão, definiram o carácter colonial da ULM, mas sempre envolto num discurso demagógico reformista. Simão foi sucedido em 1970 e, ao que tudo indica, por seu delfim escolhido a dedo, Vitor Pereira Crespo (1932-2014), cujo reitorado foi apenas de dois anos, até Janeiro de 1972. Crespo viria, mais uma vez, a tomar o lugar de Simão, desta vez, como Ministro da Educação Nacional.
Tal como Simão, Crespo tinha formação de base em ciências físico-químicas, tendo feito o doutoramento em Química na Universidade de Berkeley, Califórnia em 1962. Para além da gestão universitária, foi Director Geral do Ensino Superior no Ministério de Educação Nacional (1972-1973) e, posteriormente, Ministro, Crespo, foi deputado e Presidente da Assembleia da República (1987-1991), pelo Partido Social Democrata (PSD).
Entre Janeiro de 1972 e 25 de Abril de 1974, altura do golpe de estado em Portugal, que colocou fim ao regime fascista de Salazar, José Alberto da Gama Fernandes de Carvalho assumiu o leme da ULM. O derradeiro reitor da ULM foi o terceiro de nome José, desta vez, José Marques Correia Neves entre 25 de Abril de 1974 e Janeiro de 1976. Geólogo de formação, rumou para o Brasil onde fez carreira na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), após abandonar Moçambique com o advento da independência.
Neves assistiu à génese da EGUM e a sua elevação ao estatuto de universidade em 1968, passando a designar-se ULM. A confiança do leme de uma instituição de ensino superior nova na colónia, num contexto volátil, de crescente contestação ao regime fascista de Salazar, tinha que recair sobre figuras que inspiraram alguma tranquilidade ao regime. Com efeito, o pecado original da submissão dos reitores das IES públicas, mesmo quando a retórica sugere o contrário, tem origens coloniais, com a tentativa de mistificação da inclusão social e democrática.
Cada reitor tornou-se e manteve-se em função da habilidade de servir ao regime e à liderança política. Apenas em sistemas democráticos, nos quais a governação universitária se emancipou das pressões políticas modernas, como nos Estados Unidos da América e na Europa, vemos líderes de IES públicas sucederem-se sem um lobby directo com o regime político do dia.
O presidente dos EUA, seja este republicano ou democrata, exerce quase nenhuma influência na nomeação ou demissão de reitores das universidades americanas. Com isto não queremos sugerir que o acto de nomeação seja meramente académico e não político. O Estado vê na autonomia efectiva do sistema universitário uma das condições da sua própria existência e credibilidade. Não quer isto significar que as políticas públicas do sector e a gestão das instituições, particularmente as públicas, não estejam sujeitas ao beneplácito das autoridades do Governo. Todavia, no caso da ULM, a nomeação do reitor tinha a mão directa do Ministro do Ultramar e do Governador da Província, sendo o reitor membro do Governo colonial.
A Universidade de Coimbra (UC) granjeou respeito ao nível da Europa como um centro de conhecimento com alguma autonomia académica e intelectual. Era na Universidade de Coimbra e na Universidade Técnica de Lisboa (UTL) que o governo recorria para buscar quadros para gestão e implementação das suas políticas coloniais, incluindo as relativas ao ensino superior. Entretanto, era também para a universidade onde se refugiavam os desavindos, por alguma razão, com as políticas do status quo.
Marcelo Caetano, por exemplo, considerado um dos políticos reformistas do regime fascista e colonial de Salazar, fracassadas as tentativas de convencer o regime a ser mais condescendente, dialogante e menos beligerante no assunto da independência das colónias, após fracassada a tentativa de convencer Eduardo Chivambo Mondlane a integrar o governo de Salazar, retomou a sua cátedra na universidade de Coimbra. Portanto, a Universidade de Coimbra teve sempre uma relação ambivalente com o regime fornecendo os quadros para a manutenção do mesmo, mas também servindo de refúgio da actividade política directa.
O regime colonial procurou encontrar quadros e intelectuais, com habilidade de mistificar a continuidade da Portugalidade nas colónias, projectando um discurso de inclusão e alargamento das oportunidades educativas para os colonos e para os nativos, desde que assimilados à cultura Portuguesa.
A universidade criada e gerida em Moçambique pelos seus primeiros quatro reitores era uma universidade branca na sua composição demográfica e colonial na sua ideologia. Portugal, sob pressão das Nações Unidas e dos seus aliados, particularmente os Estados Unidos da América, insistia na integridade territorial e política entre a metrópole e os territórios do ultramar. Os documentos oficiais insistiam na ideologia de construção de uma sociedade multirracial, e pluricultural. Este discurso, no entanto, também era articulado pelas lideranças da ULM, mas não correspondia à realidade, como iremos abordar mais adiante ao falar da composição do corpo discente, docente e técnico administrativo.
O Currículo colonial
Um ano após da criação da EGUM, através do Decreto-Lei 45180, de 5 de Agosto de 1963, os “Ministérios do Ultramar e da Educação Nacional - Direcção-Geral do Ensino Superior e das Belas-Artes” promulgam o regime de funcionamento da nova IES. O artigo 8 do decreto indicava os cursos a serem ministrados, nomeadamente: a) Curso de Ciências Pedagógicas; b) Curso Médico-Cirúrgico; c) Curso de Engenharia Civil; d) Curso de Engenharia de Minas; e) Curso de Engenharia Mecânica; f) Curso de Engenharia Electrotécnica; g) Curso de Engenharia Químico-Industrial; h) Curso Superior de Agronomia; i) Curso Superior de Silvicultura; j) Curso de Medicina Veterinária. Os cursos de medicina e de veterinária teriam uma parte leccionada na colónia e uma outra parte na metrópole.
Com excepção das ciências pedagógicas, que visavam formar professores, nenhum curso visava formar pensadores críticos. Ironicamente, os cursos promovidos pelo regime colonial, na altura, actualmente são misticamente designados na sigla inglesa – STEM (Science, Technology, Engineering and Mathematics) – e promovidos pelo governo como prioritários para o desenvolvimento do país. Como se pode depreender pelos cursos aprovados, a universidade teria mais um carácter politécnico que propriamente universitário.
A universidade não foi criada para ser um lugar para promoção do pensamento crítico, típico de uma sociedade aberta e democrática. A universidade colonial era um instrumento, um veículo operativo para massagear e mistificar a continuidade de uma sociedade colonial cuja distribuição de oportunidades (incluindo as educacionais) era em função da origem social. O currículo e as áreas de estudo permitidas resumiam-se a aqueles que, na percepção do regime, permitiriam formar quadros úteis para o projecto colonial.
O Corpo Discente, Docente e Técnico Administrativo
O corpo discente da EGUM e, mais tarde, da ULM era, fundamentalmente, constituído por estudantes brancos. Imagens fotográficas de antigos estudantes e membros da Associação Académica de Moçambique são bastante ilustrativas do tipo de composição demográfica da universidade colonial. Se o corpo discente era quase que na generalidade branco, não se podia esperar diferente do corpo docente e do Corpo Técnico e Administrativo (CTA).
A nossa hipótese de trabalho para dar conta da ausência de uma população (negra) nativa na nova universidade segue a linha de pensamento do politólogo ugandês Mahmood Mamdani sobre a constituição de minorias pelos Estados coloniais. Com efeito, segundo Mamdani, o projeto colonial e imperial tinha um substrato ideológico de uma missão civilizadora. Dois mecanismos principais permitiam o processo civilizatório pelo Estado colonial, por um lado, a introdução de um quadro regulatório (leis do Estado) e códigos de conduta sobre como ser cidadão civilizado (neste caso Português) e, por outro lado, um sistema educacional de matriz colonial para educar os membros da sociedade.
Através destes processos, igualmente, descritos por Eduardo Mondlane, em Lutar por Moçambique, cria-se uma minoria de cidadãos colonos e nativos assimilados, educados e civilizados no padrão cultural colonial. Estes nativos assimilados, como diria Franz Fanon, de Peles Negras e Máscaras Brancas, que julgam pensar, agir e sentir como o próprio colono branco, servem de intermediários entre a metrópole e a colónia, na administração da colónia. A universidade serve assim de instrumento de reprodução da estrutura e estratificação social da sociedade colonial.
A educação rudimentar para os nativos e todo um conjunto de barreiras educacionais fez com que, até finais da década de 1960, apenas uma porção insignificante de negros tivesse frequentado o ensino liceal ou técnico de modo a que reunisse os requisitos mínimos necessários para estarem aptos ao ingresso no ensino superior. Com efeito, o ingresso ao ensino superior era baseado em exames de aptidão feitos na universidade de Coimbra.
Portugal não tinha como, do nada, inventar negros qualificados para frequentar o ensino universitário, pois muitos destes eram, por desígnio do sistema, eliminados pela estratificação do próprio sistema educacional para brancos, assimilados e nativos que durante décadas criou barreiras para impedir a educação dos nativos. É, em parte, por estas razões, que apesar de uma retórica para reforma do sistema educacional, a nova universidade nasce e continua, fundamentalmente, branca e colonial até ao êxodo massivo dos colonos com o advento da independência em 1975. Os brancos e os poucos negros assimilados que decidiram permanecer no país após a independência, tornaram-se a elite académica e intelectual da universidade e do país com a missão de construir uma nova universidade para a servir ao desenvolvimento do país independente.
Conclusão
O primeiro decenário do ensino superior em Moçambique (1962-1972/5) foi da instalação sob pressão da primeira instituição de ensino superior, fundamentalmente, com o intuito de amainar a crescente contestação interna (dos colonos progressistas), dos nativos (independentistas) e a pressão externa das Nações Unidas e dos países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em particular, os Estados Unidos da América (EUA) sob o regime fascista e o Estado Novo de Salazar.
As sucessivas lideranças da ULM cumpriram o papel de assegurar o trabalho da mistificação ideológica, através de um discurso de integração dos territórios do ultramar com a visão de uma Portugalidade como nação multirracial e pluricultural. No entanto, na prática, esta retórica não se refletia na composição demográfica do corpo docente, discente e técnico administrativo da ULM, até 1976, um ano após a proclamação da independência de Moçambique por via de insurreição armada.
O currículo e as áreas de estudo da ULM eram estabelecidos por dispositivos normativos (decreto-lei, portarias), controlados pelas autoridades coloniais, a partir da metrópole. Com forte inclinação para cursos das ciências naturais e tecnológicas, a ideia da formação superior era a de preparar quadros para administração colonial dos territórios do ultramar e não para formar uma possível intelligentsia subversiva, dai a total ausência de cursos nas áreas das ciências sociais e humanas.
Com o acelerar da Guerra colonial, e o advento da Revolução dos Cravos, que colocou término ao regime fascista de António Salazar, a gestão da ULM foi praticamente de crise e transição. José Veigas Simão foi praticamente o único reitor que fez quase dois mandados de 4 anos entre 1962 e 1970, quando foi promovido a Ministro da Educação Nacional. Os sucessivos reitores tiveram reitorados relativamente curtos de cerca de dois anos, sendo Vitor Pereira Crespo (1970-1972), José Alberto da Gama Fernandes de Carvalho (1972-1974) e José Marques Correia Neves (1974-1976).
Todos reitores coloniais estavam, de uma ou de outra forma, relacionados a figura de JVS e, provavelmente, tenham sido por este sugeridos como seus sucessores. Quase todos tinham alguma relação de afiliação com a Universidade de Coimbra ou com a comissão Técnica de criação da ULM, cujos quadros também provinham da Universidade Técnica de Lisboa.
Em suma, a universidade colonial em Moçambique representou o início titubeante do ensino superior, mas, acima de tudo, também representou um esforço das autoridades coloniais de manutenção ideológica do status quo. A independência de Moçambique do colonialismo Português, em Junho de 1975, veio encerrar o primeiro decénio e abrir espaço para uma nova realidade do ensino superior que iremos abordar no período de 1972/5- a 1982.
*Patrício Langa. Professor de Sociologia do Ensino Superior
**Jorge Ferrão. Reitor da Universidade Pedagógica de Maputo
Por José P. Castiano & Jorge Ferrão
A narrativa teológica de Desmond Tutu teve profundas mudanças nos anos 70, como resultado da sua confrontação com as temáticas levantadas pela African Theology e Black Theology. Para Tutu, havia uma posição não negociável: Teologia, como qualquer outra área do conhecimento humano, tinha que ser contextualizada. Dito de forma mais simpática, ela deveria tomar em conta as condições concretas e contextuais em que viviam os seus crentes. Nenhuma teologia deveria ter a prerrogativa de ser “universal”. A Teologia Negra tinha a ver com um interesse existencial do negro, pelo facto de este estar diariamente entre a vida e a morte: se Deus era todo-poderoso, por que seria que Ele permitia o sofrimento, somente, de uma parte do seu rebanho, os negros?
Tutu era defensor incansável de que a luta pela libertação cultural da Igreja deveria incluir a formação dos missionários porque, segundo ele, em África, antes de alguém tornar-se pastor ou padre, tinha, antes, que se converter ao cristianismo ocidental e à sua cultura. Por outra, antes de missionarem, tinham que negar a sua africanidade, incluindo a mudança de nomes tradicionais para, assim, obterem nomes verdadeiramente cristãos no acto do baptismo ou da ordenação.
Este princípio da dependência da mensagem da teologia para os seus crentes estava tão claro para Tutu que ele achava que, como exemplo, enquanto nos anos 70, na Europa, se discutia nas universidades se «Deus existe?» ou mesmo em alguma literatura se proclama a «Morte de Deus!», “a nossa população — escrevia Tutu — não duvida da existência de Deus e ela sabe perfeitamente bem o que quer dizer Deus. Ela (a população) não precisa ser convencida que Deus é bom e omnipotente”[1]. O exercício linguístico de saber se Deus existe ou não poderia ser interessante para o Ocidente, mas tornava-se “irrelevante” para os povos africanos, acrescentava.
De facto, aspectos da vida pessoal de Tutu, conjugados com o contexto, influenciaram para que a sua Teologia sofresse profundas transformações. Desde 1972, Tutu assumiu, em Londres, a posição de director da divisão africana do Theological Educational Fund. O seu trabalho era emitir pareceres ao Fundo Teológico sobre estudantes de teologia provenientes da África Subsaariana e para as instituições religiosas onde poderiam estudar. Num momento em que muitos países africanos completavam uma década de independência, as lutas armadas de libertação nas colónias portuguesas estavam praticamente na sua fase final e, no seu país de origem, o sistema do apartheid se encontrava ao rubro, Tutu na sua qualidade de promotor dos recursos humanos para a Igreja Anglicana, viajava por vários países africanos, tais como Zaire, a Nigéria, os Camarões, o Gana, a Serra Leoa, Quénia, Uganda, etc. Em três anos, visita mais de 20 países subsaarianos tipificados por uma diversidade de condições políticas. Isto permite-lhe obter uma perspectiva das narrativas religiosas e, sobretudo, contrapô-las com as respectivas condições políticas em cada caso. Nesses países já proliferavam, nos seminários católicos, fortes discussões sobre as condições e possibilidades de uma teologia africana.
No Zaire, os debates teológicos eram, vivamente, influenciados pelo dilema entre a fidelidade à política do Coronel Joseph-Desiré Mobutu da authenticité, e a fidelidade às doutrinas teológicas europeias. Na sua qualidade de “presidente”, Mobutu tinha obrigado às cerca de 80 missões e igrejas protestantes existentes no Zaire a juntarem-se numa só Igreja Nacional, a chamada Eglise du Christ au Zaire. A par disso, concedeu um reconhecimento oficial a poucas igrejas católicas e à Igreja de Jesus Cristo na Terra fundada pelo profeta Simon Kimbangu, esta última baseada na “doutrina indígena”, ou seja, praticando curas tradicionais. Uma das “orientações” da authenticité era a africanização da liturgia e das lideranças das igrejas.
Na Nigéria, Tutu confronta-se com a já crónica divisão entre católicos e muçulmanos, sendo estes maioritariamente do Norte do país. Tutu visita o país ainda antes da recuperação da guerra de Biafra. Pela primeira vez, ele se confronta com a necessidade de fundamentar um diálogo teológico entre as duas grandes religiões, daí a sua proposta para a criação de um Centro de Estudos para o Islão e para o Cristianismo na Universidade de Ibadan.
As viagens de Tutu incluíram, extensivamente, a África Austral em países como Tanzânia e Moçambique, para além de Zâmbia, Rodésia (hoje Zimbabwe), Suazilândia e Malawi. Sobre Moçambique, Tutu declarava que a política da assimilação era bem mais discriminatória que o apartheid dado que enquanto neste havia “clareza” das fronteiras entre negros e brancos, nas condições da assimilação, os negros que só poderiam ser dirigentes do seu povo, assim que estivessem a ser “seduzidos” para aceitarem as condições de ser branco ou assimilados. Values and personhood lies in whiteness. What blasphemy! — escreveria Tutu no seu relatório sobre Moçambique.
Nestas viagens, Tutu entra em contacto com a nata da academia e da teologia africanas do seu tempo, particularmente, nas universidades de Makherere (Uganda), Fourah Bay (Serra Leoa) e de Nairobi (Quénia). Nesta última tem encontros com Odera Oruka e com Ali Mazrui. Os encontros fortificaram suas convicções a favor da Teologia da Libertação latino-americana, com cujos líderes e teóricos Tutu mantinha contactos.
Um outro factor importante que, mais tarde, “formatou” as ideias de reconciliação de Tutu foram os contactos permanentes que ajudou a desenvolver e manter entre os negros da África do Sul e dos Estados Unidos. Alabama era o destino dos negros sul-africanos, desde o século XIX, em viagens facilitadas pela fixação dos missionários, primeiro da American Board, na zona da África Austral. Líderes do ANC, como John Langalibalele Dube, A. B. Xuma, Isaka ka Seme e outros receberam a sua educação na Tuskegee Institute em Alabama, uma instituição fundada por Booker Washington.
Assim, os debates sobre a libertação dos escravos, protagonizados principalmente por Washington e Du Bois, em torno do Black Souls, influenciaram-se mutuamente com os debates em torno da Teologia Negra e Teologia Africana, ao qual Tutu, mais tarde se mete no meio, principalmente após as viagens aos EUA, em 1973, por ocasião duma conferência sobre a Black Theology. Nesta conferência, participara John Mbiti que, na altura, ataca a African Theology como sendo a versão africanizada da Black Theology. Tratava-se, segundo Mbiti, de uma teologia praticada pelos negros americanos e não tinha legitimidade para qualquer adaptação ao contexto africano porque, na sua base, estariam o ódio, a amargura e o sofrimento dos escravos.
Por isso, ela expressava-se nos termos de um Deus negro, Igreja negra, libertação negra e tudo o mais “negro” possível. Este tipo de teologia baseia-se, acrescentaria Mbiti, na consciência sobre a cor negra. E, na óptica de Mbiti, nas escrituras sagradas, não se encontra nada sobre esta cor. Este tipo de Teologia poderia adaptar-se muito bem para o caso da África do Sul, onde os negros teriam o mesmo grau de “amargura” e “ódio” contra o branco, por causa do sistema do apartheid, mas não seria este o caso para o resto da África.
Naturalmente que Tutu defendeu a possibilidade da adopção da Teologia Negra, não tanto pela expressão black, senão, com base nos escritos do seu compatriota Steve Biko, como forma de mostrar o engajamento no repúdio à arrogância da Teologia Ocidental que foi produzida, principalmente com Paulo e suas epístolas, com a pretensão de ser universal. Segundo Alain Badiou, os esforços de Paulo consubstanciaram-se em evitar que o cristianismo se reduzisse a ser apenas uma seita judaica, por via da Ressurreição (Cfr. Badiou: São Paulo: A Fundação do Universalismo. Ed. VS, 2018).
Tutu viria a articular a sua teoria da reconciliação baseada nesta nova problematização da Teologia Negra Africana, algo assemelhada à política de reconciliação de inspiração de Mandela. O fim do apartheid na África do Sul, com a eleição de Nelson Mandela como o primeiro presidente negro, marca o triunfo, na sua plenitude religiosa e política, do espírito da reconciliação.
Desmond Tutu, bispo anglicano e Prémio Nobel da Paz, preside uma Comissão da Verdade e Reconciliação cujo princípio, uma justiça restaurativa, nos oferece exemplo, pelo menos por enquanto, da corporificação do espírito de reconciliação num contexto em que se devia evitar, a todo custo, o temido banho de sangue pós-apartheid.
Tutu declara que há um outro tipo de justiça, cujo propósito central não pode ser punitivo; deve ser sim restaurativo, dedicado à “cura” das feridas. Ela tem como o centro a humanidade do causador das mais vis atrocidades. Este tipo de justiça acredita, diz-nos Tutu, na bondade essencial de todas as criaturas de Deus e que, na base dela, existe, em todos, a possibilidade latente de se tornarem bons e justos. Portanto, os perpetradores das injustiças devem ser reabilitados e não, em primeira linha, punidos ou ostracizados pela comunidade.
A comunidade tem, aos olhos da justiça restaurativa, o dever de reintegrar os que cometeram estas atrocidades. Tutu chega a declarar que uma ofensa (racial neste caso) deve ser considerada como um “distúrbio do equilíbrio social”. Por isso, o processo da restauração deve permitir que o ofensor e a vítima se reconciliem e a paz seja restabelecida. Era preciso buscar um ponto reconciliatório dentro das mesmas narrativas religiosas, ou seja, do interior da chamada espiritualidade originária africana (ubuntu). Algo que fosse tão engenhoso a ponto de evitar o que lavaria à uma derrota de todos: a guerra ou um “banho de sangue”, como se dizia. Neste caso, o espírito reconciliatório corporiza-se em forma de “princípio” que todos deveriam seguir, de um “consenso” ao qual supostamente todos deveriam aderir; enfim, um “compromisso” que todos deveriam acreditar: amnistia individual sim (não a uma amnistia geral), mas a troco da verdade, ou seja amnesty for truth, na verdade de “toda verdade”. E afirmaria Tutu, em 1998, perante Kerry Kennedy, activista americano para os Direitos Humanos:
“Nós não deveríamos temer confrontar-nos com as pessoas naquilo que eles fizeram de mal. Perdoar não significa tornares-te num tapete (na porta) para as pessoas limparem as suas botas [sujas]. O nosso Deus é muito indulgente.” (Cfr. Tutu, D. 2011: God is not a Christian, p.38).
A justiça restaurativa que parecia a única alternativa de “resolver” o problema dos que tinham medo de assistir o inferno ainda nesta vida, ela, porém, adiavam as convulsões sociais porque a «bomba social», esta que a justiça restaurativa, a todo custo, pretendia evitar que detonasse (e conseguiu), permaneceria latente, exibindo o seu fumo e potência ameaçadora, de tempos em tempos. Faltava o principal da justiça restaurativa: a justiça económica – ou seja a tal economic freedom do EFP de Julius Malema. As injustiças sociais continuariam a ser o problema na RSA.
Quanto a nós, a partir desta janela do Índico: é justo adiantar que o problema estava mal identificado: não era nem o branco, nem o negro; não o de confiar na bondade humana que há em todos nós, mas sim desconfiar o mal que também há em nós todos; o problema era a estupidez humana. E estúpidos encontramo-los em toda parte e de todas as cores.
O que também falhou é o modelo do “purgatório terrestre”; ele nunca havia de funcionar porque as almas feridas neste mundo vivem de verdade; elas sentem ainda a falta do pedaço de terra retirado, o emprego que falta, o piso da bota dos novos senhores, o sabor de um pão mal amassado ou ainda uma educação superior ainda não descolonizada e nem des-racializada. As greves dos estudantes universitários na África do Sul são uma prova disso. Os estudantes exigiam, no fundo, uma des-racialização da universidade e, consequentemente, de toda a sociedade.
A Igreja deve ser chamada a reformular a sua profecia consoante as dificuldades e os problemas das pessoas viventes, de carne e osso! E esses são os problemas para a nova Teologia dos Pobres. Estes que ainda não saboreiam os frutos da Rainbow Nation. Pois, que irá reinventar esta nova teologia reconciliatória, na qual os pobres terão o seu Banquete, não somente platónico, senão numa mesa real. God was not a Christian, indeed! (X)
[1] Cfr. Allen, J. (2006): Rabble-Rouser for Peace. The Authorised Biography of Desmond Tutu. Rider. London, Sydney, Glenfield, South Africa, India. p.136.
Para este natal, irremediavelmente, não desfrutaremos do comovente e eloquente sermão do Padre Giuseppe Frizzi. Ele fez outras opções. Será o orador de honra para uma outra plateia distinta, onde se encontra o Beato José Allamano, Beata Irene Stefani e outros de privilégios santificados, calmarias abençoadas e eternas redenções e dos seus colegas combatentes crónicos Namúlicos: Franco Gioda e Francisco Lerma Martínez.
Nesta ausência anunciada de Padre Giuseppe Frizzi, sobram as lembranças, as memórias de um irreverente pensamento filosófico, de um crítico linguístico e abnegado defensor da cultura Macua-xirima. A tríade Frizzi, Gioda e Lerma engajou-se para a personalidade cultural do povo Macua. Nas nossas preces, recordaremos das missões de Mitucué, Cuamba, e Maúa. Faremos uma noite de consoada, no seu centro de investigação Macua-Xirima, relendo o seu dicionário Xirima-português, a gramática de alfabetização, a antologia bilíngue da biosofia e biosfera xirima, e louvaremos o Senhor com os livros de Canto feitos por ele como Mavekelo ni Itxipo (Oração e Cantos). E contemplaremos a beleza da arte Macuana que nos conduz ao mistério da encarnação que ele, traduzindo o Evangelho de João “E o Verbo se fez carne” (João 1, 14), na língua Macua todos repetirão: “Muluku ahipaka Muthu”- num acto de memória e memorial que toda a criatura possa louvar a Deus em todo tempo e lugar.
Louvar a Deus sim, diz o Padre Frizzi, mas na sua própria identidade cultural. Onde o africano-Macua é Cristão sem deixar de ser africano Macua. Porque o espirito de Deus já se manifestou antes do missionário chegar naquela cultura africana-Macua. É nesta lógica dialógica que o padre Giuseppe Frizzi coloca-se na esteira de Justino, filósofo e mártir (Logos seminal), Karl Rahner (Os cristão anónimos), José Filipe Couto (a Salvação dos não Cristão) e Raimon Panikkar (O Cristo desconhecido do Induísmo). Por isso, para Frizzi, a missão é recolha e não é semear. Ser missionário é viver com o povo através do instrumento linguístico performativo é um autêntico agir comunicativo com a cultura. A cultura aprende-se, vive-se e precisa fazer-se parte integrante da cultura. É isto que o padre Frizzi foi. Tornou-se macua entre os macuas. Viveu macuano entre os macuas e valorizou a personalidade da cultura macua entre os macuas e para os macuas e de consequência para a humanidade inteira.
Frizzi foi Missionário da Consolata, muito ousado, engajado e sobretudo, soberbo amante da língua macua-xirima. Escreveu um dia que, em África, se perpetra a extinção de uma das espécies de fauna e flora, mas do ponto de vista antropológico seria, ainda, mais trágico constatar que se esta marginalizando e condenando à morte todo o capital das inúmeras línguas maternas, porque consideradas atraso de vida e inúteis, elas parecem significar um impedimento ou condicionante para uma entrada da localidade e oralidade na modernidade, como se essa globalização enfatizada, implicasse, necessariamente, a exclusão da localidade, da oralidade e de sua história.
O Doutor e investigador Giuseppe Frizzi pode não ter sido dos mais aclamados e famosos padres que chegou, viveu, trabalhou e seguiu para o encontro com o Senhor, em Moçambique. Porém, convenhamos, foi um dos que mais pesquisou, bebeu dos capitais antropológicos guardados na oralidade e converteu-se num militante e combatente consequente e apaixonado pela riqueza linguística e cultural dos macuas-xirimas. Nessa oralidade redescobriu expressões axiomáticas de quase todas as flexões macuanas existentes, Niassa, Nampula, Zambézia e Cabo Delgado. Pode-se afirmar, sem reticências, que G. Frizzi fez uma revolução copernicana à filosofia Africana com os seus conceitos de “Biosofia e biosfera Macua-xirima” para buscar os segmentos e fragmentos da mesma cultura africana-Macua Xirima, sem os próprios filósofos africanos aperceberem-se, pois introduziu um modo de filosofar no silêncio onde a dialéctica é dialógica e não a hodierna forma de filosofar que é uma autêntica dialéctica conflitual. E nesta forma, Frizzi coloca-se na linha traçada por Fabien Eboussi Boulaga, segundo a qual a filosofia africana deve ir além dos conflitos, e buscar a cultura africana como base para o próprio filosofar.
Giuseppe Frizzi, à semelhança de tantos outros missionários da Consolata, pregou e evangelizou esse distante e esquecido Niassa. De origem italiana, nascido a 14 de Maio de 1943, mas que nunca quis, sequer fazer alarido, era e identificava-se como moçambicano e falava, regra geral, em macua com quem lhe cruzava o caminho e tornou-se Moçambicano, portanto, é Moçambicano. Entrou para o Instituto das Missões da Consolata em 1954, tendo sido ordenado sacerdote em Dezembro de 1969. Foram mais de 52 anos de serviço bíblico e, principalmente, de pesquisa da sua língua favorita o macua-xirima.
Dizia, com frequência, que os estrangeiros se enamoravam da língua macua, portanto, seria incompreensível que isto não acontecesse com os donos desta cultura e desta língua, que em sentido contrário assumiam, em muitos casos, uma atitude passiva e até de indiferença. Vivia preocupado e assombrado com o facto de quase todas as traduções, pesquisas etnográficas e etnológicas publicadas serem feitas, grosso modo, por missionários e missionárias, agentes pastorais da igreja. Isto, dizia, tinha um valor cultural imensurável, porém, sem sinais evidentes de continuidade destas pesquisas e estudos pelos donos da língua.
Em 1998, o Presidente Joaquim Chissano visitou o distrito de Mauá, Niassa, e travou contacto com o Padre Giuseppe Frizzi, no coração do seu centro cultural e bibliotecário designado CIMX. Uma espécie de santuário de repositório de pesquisas que nunca publicou. Este centro realizava palestras, cursos, traduções e publicações em xirima. Não tardou para que o Presidente constatasse que o Padre vivia em condições difíceis. Pareceria alheio ao essencial e ao conforto. Uma espécie de ser aculturado, que dormia numa esteira e tinha o mínimo de conforto. O padre explicou que ele adoptara aquele modelo de vida, desde que havia chegado a Moçambique, em 1972 depois de ter obtido o doutorado em Exegese Bíblica em Múnster - Westfália, Alemanha, mesma universidade onde doutorou-se o Padre José Filipe Couto em Teologia.
A sua preocupação, explicou ao Presidente Chissano, era que as igrejas mostravam uma sensibilidade linguística e pastoral bem superior que todos os empreendimentos do Estado juntos. Deveria ser o Estado que se deveria preocupar com a política linguística, com o ensino bilíngue e com a valorização do património linguístico de que o país era possuidor, porque para o Frizzi a língua é o veiculo cultural de identidade de uma cultura e de um povo. Em outras palavras, podemos dizer que Frizzi concorda com o filósofo Martin Heidegger quando diz que a língua é o pastor do ser, e com o antropólogo maliano Amadou Hampâté Bâ que afirma que a língua em África é criadora e a palavra recria a cultura dentro do processo histórico cultural.
Durante o período da guerra civil, e até a actualidade, afirmava que as publicações litúrgicas, catequéticas, bíblicas e científicas, além da sua específica tarefa, haviam sido responsáveis pelo trabalho de alfabetização de adultos, novamente, bem superiores aos empreendimentos das instituições públicas. Milhares de homens e mulheres haviam aprendido a ler e a escrever, a sua própria língua, e até em português, frequentando a catequese na língua local. Parecia uma utopia metodológica funcional.
Foi durante esta visita que ousou provar ao Presidente que não se deveria olhar para Moçambique artístico como limitado às esculturas Macondes, e um pouco mais. Existiam outras expressões artísticas e culturais como as esculturas e pinturas Macua-xirima, que embelezam igrejas, museus e habitações em Moçambique e no estrangeiro. A sensibilidade artística xirima quer sob a perspectiva sintética, como simbólica e monumental, recordava o romântico medieval que conquistava os interessados pela arte. Mas, o valor mais importante residia nos provérbios que ele considerava como possuindo um valor de literatura oral, sapiencial e poética. Era, então, essa dignidade estética e consistente da oralidade macua.
Com outros missionários no distrito de Mauá e, em particular, com o Padre Francisco Lerma, seu melhor amigo, dedicou-se ao estudo da língua e da cultura Macua-Xirima e criou o Centro de Investigação Macua-Xirima. Em 3 de Dezembro de 2009, a Pontifícia Universidade Urbaniana de Roma conferiu-lhe o doutoramento honoris causa em Missionologia. Nesta ocasião falou sobre as ínguas ocidentais, comparando ao macua-xirima. Era o princípio de um teorema namúlico , em tonalidade feminina, matriarcal e nocturna lunar. Uma espécie de antropologia do domínio do masculino sobre o feminino. Para ele, era uma simbiose sinergética dos dois hemisférios antropológicos.
Por ser de uma cultura não sexista, esta língua tinha a possibilidade de apresentar uma proposta complementar a comum concepção do religioso e do teológico. Padre Frizzi participou no processo para a beatificação da Irmã Irene Stefani na apresentação do milagre: da multiplicação da água (1989), e que foi o motivo pelo qual a irmã foi beatificada. Padre Giuseppe Frizzi não foi jamais referenciado como milagreiro, porém, seus feitos, sem dúvidas, fizeram dele um dos maiores responsáveis pelos novos percursos e itinerários teológicos e linguísticos, não só possíveis, mas, também, imensamente desejáveis. Também nunca foi mencionado como filósofo, mas as suas obras contribuíram para a mudança do paradigma filosófico africano.
Para os Macuas o dogma é: Ninkhuma Onamúli! Onamúli Innotthikelawo! -Do Namúli viemos! Ao Namúli regressaremos! Portanto, o padre Giuseppe Frizzi encontra-se no Namúli onde sempre foi crónico e sempre desejava regressar ao Namúli sendo um Macua fiel. E cada macua onde quer que ele se encontre deve saber que do Namúli viemos e ao Namúli regressaremos! Por isso, como ele, só podemos dizer : Pwiya relihani Africa! Amém Aleluia
Nas primeiras duas décadas do século XIX, a ciência conseguiu obter uma quantidade incalculável de conhecimento sobre a psicologia e, convenhamos, sobre a biologia dos humanos. Mas, esse património não está ao alcance da maioria dos cidadãos. Todavia, se por um lado, as elites políticas e económicas são detentoras desse conhecimento e usam-no conforme sua conveniência; por outro, a maioria das pessoas continua alheia e negligenciada. É só observarmos como a neurociência é usada para incrementar as vendas e para influenciar politicamente as tendências de voto e controlar o comportamento humano. É evidente que a ignorância facilita a acção do poder sobre a sociedade.
As estratégias de manipulação, em larga escala, têm o pressuposto da manutenção do controle sobre as massas e do poder. Reduzir, no máximo, a capacidade analítica e crítica e, principalmente, a autonomia da maioria das pessoas. Estas são algumas das constatações de Noam Chomsky, que estuda as estratégias de manipulação em massa.
Pensando nestas posturas, nos populismos e populistas, na manipulação de informação, que assolam o mundo, em diferentes escalas e situações, torna-se recomendável reler 1984, um dos mais aclamados livros de George Orwell. Em abono da verdade, este livro é uma narrativa recomendável, tendo sido, inclusivamente, considerado como uma das melhores obras para entender a manipulação de massas e o controle da vida das pessoas. 1984 não é, apenas, a mais reconhecida, mas uma das mais fascinantes descrições desse fenómeno que se ramificou, um pouco, por todos os quadrantes, nos últimos tempos. Não é por acaso que as edições europeias voltam a publicar hoje, em massa, e a ganhar dinheiro com isso. É porque, em todo o Mundo há aquilo que o filósofo Rob Riemen chama eterno retorno do fascismo.
George Orwell, numa espécie de ficção utópica e distópica, reflectiu o que poderia ocorrer numa sociedade altamente vigiada, sobretudo, quando essa obsessiva vigilância transforma-se numa forma de controlar as pessoas e as suas liberdades individuais. Em 1984, o autor descreve um Estado autoritário que impõe um regime de vigilância sobre a sociedade. Para o efeito, foi criado um partido designado “Ingsoc” que impunha essa vigilância à praticamente todas as pessoas. Ninguém ficava imune a essa cerrada vigilância.
O lema do partido era “guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força”. Concomitantemente, existia um Ministério da Verdade, que advogava a infalibilidade partidária, portanto, nunca errava. Depois, o Ministério da Paz, responsável pela guerra, o Ministério da Fartura, responsável pela economia e, finalmente, o Ministério do Amor, cuja responsabilidade recaía no controlo da população através da espionagem.
Na descrição, a população vivia em silêncio. Era uma forma de estar, e muito conveniente. Era uma espécie de coragem para o silêncio, que tipifica a maioria das pessoas, que preferem um resguardo do que colaborar com propostas e ideias para fortalecer as suas sociedades e países. Era uma espécie de dar voz ao silêncio, num modelo de silêncio do período da inquisição, quase roçando a cobardia. Esta é postura de muitos que, mesmo querendo dar uma opinião, qualquer que seja, encontram todos os receios para assim não o fazer.
A estes silêncios, se juntou uma certa tendência para a paralisia da acção social. Portanto, se consolida uma espécie não de silêncios, mas de uma certa coragem necessária para exercer o direito a voz do silêncio. Exige-se coragem para o silêncio e para a inacção. Paradoxos de um pós-modernismo amorfo.
A voz e a coragem do silêncio nos recordam até da razão populista. Quer dizer, redefinir e ressignificar estes silêncios, inactividades e os populismos que usam o discurso democrático com outros propósitos. Estes são os silêncios que não se conseguem opor à manipulação, pois, este transformou-se num método de construção retórica do povo e do político, do inimigo e dos fiéis, enfim, de todas estas construções sociais que poderiam ser designadas por “ideologias” de coragem para os silêncios e para a paralisia à acção social.
Cooptamos a liberdade em nome de princípios e regras que só nós mesmos acreditamos e fazemos delas indiscutíveis. Ganhamos crenças de que as nossas teorias são as melhores e as únicas possíveis. Na realidade, falamos muito e escutamos pouco. Nasce aqui este debate sobre a coragem para o silencio, tão necessária como treinamento pedagógico para assistirmos o erro sem ter que falar. Quer o silêncio, como o próprio populismo viraram essa forma complexa de articulação de demandas em determinada formação social e da representação simbólica designada vazio. (X)
Por: Jorge Ferrão[1] e Patrício Langa[2]
Em 2022, o ensino superior em Moçambique completa 60 anos. Com efeito, foi a através de um decreto-lei 44530 de 21 de Agosto de 1962, que foram criados os Estudos Gerais Universitários em Moçambique e de Angola. Surgiam assim as primeiras instituições do ensino superior (IES) nos países africanos de língua oficial Portuguesa.
Seis décadas passadas podem representar um tempo histórico significativo para um país fundado em 1975, mas incipiente para o ensino superior como instituição milenar competindo apenas com a igreja em termos de antiguidade. O termo ensino superior, aqui, é tomado como se referindo a todas as formas de educação terciária, pós-secundária, incluindo a do tipo universitária, e politécnico. De facto, se nos atermos a história do ensino superior antigo, a África pode até reclamar-se o berço deste tipo de educação antes de mesmo de Cristo, com a Academia de Alexandria no Egipto fundada em 331 AC.
As famosas Universidades de Timbuktu, no actual Mali, fundada em 1100, a Universidade do Cabo, na África do Sul, fundada em 1829, mas também as universidades de Cartum, no Sudão (1902), Makerere no Uganda (1921), Ibadan (1948) na Nigéria, e Nairobi (1956) no Quénia são a evidência de que o ensino superior nos países de expressão Portuguesa fora de Portugal (PALOP) ainda esta no seu despontar.
Com a excepção do Brasil, cuja historia indica que a primeira instituição de ensino superior foi a Escola de Cirurgia da Bahia, criada em 1808 e a posterior as faculdades de Direito de São Paulo e de Olinda, em 1827, os PALOP tiveram que esperar até ao inicio da década de 1960 pelo ensino superior.
Nos casos de Moçambique e Angola o percurso inicia com um processo respaldado na mudança da política colonial em relação às colônias, a crescente demanda dos colonos e assimilados, associada a pressão inestimável das Nações Unidas que apelava a criação de mais condições de ensino, nas então colónias portuguesas do ultramar. Ainda assim, o ensino superior nestes países nasce com o pecado original da exclusão dos nativos. Pecado este cujo legado, seis décadas depois ainda se procura redimir.
Assim, celebrar seis décadas de ensino superior constitui em si um acto de regozijo, particularmente, quando se faz num contexto de independência política do jogo colonial relativamente consolidado. Não obstante, os avanços, os desafios são reflexo de um subsistema da educação ainda emergente, num país que ainda busca seu rumo no concerto das nações. Em 60 anos em média criamos 6 novas universidades a cada década. Os desafios que temos em seis décadas muitas vezes olvidam que se equiparam as mesmas aspirações de sistemas nos quais cada década nossa equivale a um centenário. Alias, no Hemisfério Norte, de onde nos inspiramos e herdamos a ideia moderna do ensino do superior, as IES são até milenares. Sem ser cáusticos, precisamos ser condescendentes em qualquer que seja a avaliação das seis décadas. Até porque mais do que a própria avaliação é dos critérios que mais precisamos nos ocupar para análises concernentes a projecção das próximas décadas.
Os desafios do ensino superior incluem um sistema que procura definir o seu caracter, com IES com maior pendor para o magistério em detrimento da pesquisa, corpo docente em processo formação, necessidade de estudos específicos sobre o desenvolvimento do subsistema, e melhoria dos processos de formulação de políticas públicas mais assertivas, entre outros. Tal como Angola, não admira, pois, que tenhamos percorrido a mesma trajectória, experimentando desafios muito semelhantes e, fundamentalmente, que o processo de consolidação se mostre, ainda, muito distante do seu final.
Sendo que o ensino superior se caracteriza não só pelo ensino, mas também pela pesquisa, extensão e inovação para a produção de conhecimento com impacto na sociedade, a comemoração dos 60 anos deste subsistema em Moçambique é uma oportunidade ímpar para se repensar o subsistema, as instituições e o seu papel na transformação da sociedade. Nesse repensar, cabe um debate profundo sobre as políticas do ensino superior, o lugar da pesquisa e extensão na formação dos estudantes, a formação de docentes, que, conjugados, e num contexto de inovação, concorrem para a qualidade almejada neste subsistema.
Entre avanços e retrocessos, desafios e oportunidades o ensino superior passou por diferentes processos de continuidade e rupturas. O esforço e empenho de jovens académicos, com todas as limitações, esteve sempre presente e tem sido o garante das mudanças, aprimoramentos e paradoxalmente dos problemas correntes. Não existem dúvidas e nem reservas que as IES nacionais foram as grandes responsáveis pela formação da maior parte do capital humano em Moçambique, que providencia e garante serviços essenciais ao Estado, sector privado, familiar e noutras esferas económicas, culturais e até na manutenção dos serviços dos ecossistemas.
Todavia, prevalecem questões estruturais, de governação e coordenação do sistema, atitudes autocráticas e de poder discricionário dos gestores, tanto nas IES públicas como nas privadas. Os investimentos em infraestrutura, planos temáticos e curriculares são fundamentalmente desenquadrados, o tempo de formação questionável, esquemas de corrupção, e, coincidentemente, a ascendência e precedência da política sobre a academia ou, por outras, a politização da academia que desvirtua o sentido da autónima “real” (e não apenas no papel) das IES que, noutros contextos, paradoxalmente tende a ser protegida pelo Estado.
Apesar dos avanços em termos de acesso ao ensino superior, com a expansão numérica e geográfica de IES um pouco por todo país, fruto da visão de política pública dos diferentes Governos, a base de conhecimento que sustenta os processos decisórios sobre o ensino superior assenta em convicções fortes, com princípios normativos – do dever ser – em contraste com a fraca evidência produzida através de estudos de base.
Os quadros normativos e reguladores do sistema revelam um problema fundamental dum sistema político descentralizador apenas na retórica, mimético (do Copy & Paste) de modelos exógenos mal re-contextualizados, mas também com tendências centralizadoras e autocráticas na prática. Com efeito, trata-se de um sistema que emula a sua insciência na medida em que se desenvolve num ciclo vicioso de relatórios técnicos comissionados e produzidos por agências de consultoria generalistas e profissionalizadas, que subcontratam, a preço rendeiro, académicos cuja autoridade e legitimidade radica do simples facto de advirem das IES e conectados aos circuitos do lóbi da consultaria.
Assim, documentos estruturantes da Governação do sistema são produzidos através de esquemas em cima do joelho, com um teatro das auscultações no Norte, Centro e Sul, dos parceiros, apenas para legitimação politica do processo, e com o beneplácito de agências de financiamento que justificam a sua existência através da reprodução da nossa mediocridade enquanto nos endividam. Sim, é, do algoz Banco Mundial e entidades congéneres que concorrem para a reprodução da incapacidade interna de produção de política pública das próprias instituições do Estado através de seus projectos de desenvolvimento de capacidade e assistência técnica. É um sacrilégio para o ensino superior que em pleno 2021, os Planos Estratégicos e outros documentos directores sejam produzidos em esquemas de consultoria, que promovem a exploração de académicos moçambicanos por empresas parasitárias que dominam os espaços do lóbi das consultorias, relegando as próprias IES ao mero papel de entidades auscultadas.
O ensino superior vive, portanto, copiosas encruzilhadas. Por um lado, a pressão das demandas duma sociedade cada vez mais ciente e crente dos benefícios do retorno do investimento no ensino superior, apesar duma apreciação e avaliação baseada no bom senso, informada por uma visão redutora e instrumentalista do ensino superior como o trampolim da mobilidade social através do emprego formal, no Estado, e nas Organizações não Governamentais (ONGs), mercado preferencial para a transação da reputação dos títulos e credenciais académicas. Por outro lado, a saturação prematura dos lugares de emprego, particularmente, no aparelho do Estado, mas também nas ONG com maior proeminência, que prematuramente desfazem a ilusão da empregabilidade, dos graduados, num sistema cuja taxa de participação entre Jovens dos 18 aos 24 anos não atingiu sequer 10% em sem mil habitantes, reforça o estado de crise do sistema. Este paradoxo gera a ilusão da escassez, mobiliza empreendedores educacionais a criarem novas IES, por razões adversas a educação como bem-público, mas funcionam na propalada lógica neoliberal da mercantilização e co-modificação da educação, abordada por um de nós (PL), noutros escritos.
As IES, e, em particular a universidade, no conceito mais genérico, sempre tiveram um sentido de utopia e de um espaço de encontro de tradições e quebra de horizontes do conhecimento humano. A universidade é, igualmente, um espaço onde se cultivam a sociabilidade com a diferença de pensamento, com o pluralismo democrático, e igualmente, a esperança da humanidade. Esperança porque a sociedade deposita confiança nos processos deliberativos associados ao pensamento crítico, em principio, que radica da formação superior.
Assim, as universidades seriam, também, ao longo destes 60 anos, parte do projecto de consolidação da nação com representatividade dos diferentes grupos sociolinguísticos, suas tradições e utopias. As IES constituem espaços convencionais onde a expectativa seria a criação do designado ‘bildung’, quer dizer, à preparação da pessoa humana visando produzir cidadãos responsáveis, maduros, autônomos e capazes de refletirem sobre os seus próprios problemas, e da sua sociedade.
Este exercício constitui o lançamento de um repto. O repto que ocasião que se aproxima da efeméride do sexagenário nos oferece para repensar o etos ensino superior no país. Lançamos o repto neste mês de novembro, demasiado simbólico e representativo para o ensino superior, quando celebramos o dia mundial da ciência e o dia dos estudantes, que enfrentam as vicissitudes de um sistema de ensino superior emergente. O impacto da pandemia que escancarou, em 2020, as fissuras e fragilidades do sistema diante das restrições, incapacidade e outras aporias que provaram o quão longo será o caminho a percorrer na edificação de um ensino superior robusto.
No entanto, mas do que lamentar a ausência do óbvio, que a pandemia apenas veio desnudar, este tempo oferece-nos a possibilidade, de outras possibilidades, isto é, da reinvenção. Sim falta tudo para muitos, e há tudo para poucos, mas há também a oportunidade da ausência do padrão, da tradição, pois tudo se tornou experimental e não há espertos (experts) em matéria de sobrevivência melhor que nós. Portanto, se a inclusão digital parece ser um problema de fundo, não poderemos negligenciar o potencial da reinvenção social. Se existe algo para o qual poderíamos prestar atenção só celebrar o sexagenário é a capacidade recreativa, inventiva, dos Moçambicanos, mesmo em condições adversas.
Ao celebrar os 60 anos do ensino superior teremos de, entre outras, pensar que tipo de ensino superior queremos para que tipo de sociedade. Celebrar estes 60 anos tem de assumir um papel bem mais profundo e incisivo. Redefinir o papel e a função do ensino superior num contexto de múltiplas necessidades sociais e humanas, para que as IES continuem impondo-se e respondendo aos desafios da sociedade com recurso ao pensamento crítico tão caro a sociedade.
Não poderemos continuar dissociados dos adventos que movimentam o mundo da quarta Revolução Industrial, do advento da ciência artificial, da robótica e nem a redefinição da grelha de cursos que mais condicentes com as novas profissões. Não podemos ser apenas vitimas de mudanças climáticas, sem que sabíamos debater suas origens e consequências diferenciadas. Estes tempos apontam para cenários verdadeiramente desafiadores, e que obrigarão Moçambique a repensar na direcção do seu ensino superior de forma geoestratégica e mais estruturada.
Nos próximos anos, os desafios serão acrescidos. Os impactos das sociedades de conhecimento colocam competências tecnológicas e digitais como activos ultra importantes. Seguir as novas tecnologias e os efeitos da revolução cientifica e tecnológica, evitará que sejamos marginalizados e esquecidos pelo tempo. (X)
[1] Reitor da Universidade Pedagógica de Maputo
[2] Sociólogo, Faculdade de Educação, da Universidade Eduardo Mondlane
De cada vez que me debruço sobre a literatura moçambicana, de forma deliberada ou fortuitamente, parece impossível não mergulhar nesse imaginário de palavras e sons dos mais talentosos escritores moçambicanos e, claro, desse iconoclasta amigo Ungulani. Cultivo uma inqualificável empatia com a maior parte dos escritores da sua geração, também minha, porém, nutro especial e inquebrantável respeito e admiração pelas anteriores gerações de escribas.
Revisitando emblemáticos escritos na delícia do conforto de que proporcionam a alma, se tornou quase impossível escalonar as melhores obras, sob o risco de omissão de outras. São todos produto da emancipação deste país, do sonho azul da revolução e dessa esteira literária de combate. De um modo, ou de outro, devemos gratidão aos instauradores da literatura moçambicana, e que a transformaram num movimento único, assumido e memorável. Independente das épocas e períodos históricos, cada uma das gerações impregnou a manipulação da palavra e da imaginação, tatuou a resistência a escritos não panfletários e a renegação do seu próprio destino. Enfim, sem eles, não teríamos embarcado na sobriedade, credibilidade e honestidade. Na libertação do pensamento livre e descomprometido.
Cumpliciei com Francisco Cossa, Chico, nome mais familiar, ao longo de décadas. Por vezes, com mais proximidade, noutras, nem por isso. Nada que tenha beliscado esta amizade. Na panóplia de momentos pitorescos, nas tertúlias, no santuário de bebedores, guardamos inesquecíveis e insuperáveis momentos de inigualável convergência. Ele, como Mestre, e eu, como aprendiz. Uma amizade que se reconstruiu em irmandade, com esse implacável recurso à negação da fatalidade e do senso comum. Já nessa altura, ele demonstrava uma capacidade de imaginação e um poder efabulatório muito acima do normal. Estava escrito nas estrelas que ele terminaria escritor.
Não tardou que se agigantasse, e se transformasse em Ungulani. O Ba Ka Khossa. Esse trocadilho de nome, que representa um país e suas raízes literárias. Ungulani Ba Ka Khossa, esse talentoso homem de Inhaminga, região central de Moçambique, se assume como moçambicano de todas as províncias. Uma espécie de um gigantesco polvo, cujos tentáculos se confundem com as metástases da cultura de cada grupo étnico. Nesta convocação, o revejo como parte das minhas amizades iniciáticas. Formando como professor de história, com um substracto assente em obras literárias.
Ungulani foi céptico sobre os caminhos da literatura moçambicana num dado momento histórico. Sentia descaso com as autoridades, insensibilidade das escolas e instituições gestoras. Entendia que o rumo não seria a poesia fácil, despida de técnicas, rigor, e outros atributos convencionados. Fincava sua fé na prosa e na ficção. Mas, nunca perdeu as esperanças. Hoje, já fala da literatura moçambicana com paixão e optimismo. Poderia ser melhor, mas já sente um reviver do compromisso com o discurso sóbrio, com os escritos inspirados na tradição oral, com a exploração dessa originalidade Bantu e suas múltiplas línguas nacionais. Essas são as marcas que farão a identidade da nova vaga de escritores.
Eventualmente, nos conhecemos naquele invulgar movimento, anunciado por Samora Machel, a 8 de Março, que concentrou no Maputo jovens estudantes que se converteram em ousados professores circunstanciais. Anos mais tarde, reencontrei-o, assumindo postura burocrata no ministério da Educação e Cultura. Partilhava a sua sala com Ana Elisa Santana Afonso. Ela seguiu a carreira na UNESCO, Ungulani ficou-se por aqui e com seus livros. Na época, Ungulani e Ana Elisa ajudaram a resolver pepinos de colegas que não souberam ler e nem entender o sistema. A juventude não permitia outros entendimentos da revolução e nem imaginavam os riscos associados ao pensar e sonhar diferente.
Anos mais tarde, Ungulani já estava engravidado do consagrado Ualalapi. Esse livro se converteu num dos 100 melhores do século, no continente africano. Merecidamente. Esta foi a obra que exacerbou os entendimentos sobre as lanças dos guerreiros do Império de Gaza. Reavivou Gungunhane, sua astúcia e malícia, explorou o papel de suas esposas. Mas, foi o livro do apocalíptico império de Gaza com suas virtudes e defeitos e personagens que se imortalizaram.
Ainda nessa época, ele falava da sua paixão sobre o escritor colombiano Gabriel García Márquez. Essa apreciação pode ter ajudado a reafirmar um laço que estava escrito pelo destino. “Cem anos de solidão” é considerado o maior exemplo do género literário do designado realismo mágico. Gabriel Garcia Márquez retracta, no livro, eventos sobrenaturais, num tom objectivo e pragmático, enquanto, os normais e factos históricos, como pura fantasia.
Acredito, firmemente, que Francisco Khossa, o Chico, repensou no apelido Ungulani, como o próprio nome fictício do vilarejo Macondo, do livro de Márquez. Mas, a Agustina Bessa-Luís e Jorge Amado nunca saíram do seu vocabulário. Para Ungulani, qualquer grande escritor precisa de ser um bom leitor.
Ungulani nunca se preocupou em defender a investigação histórica, mas tem na essência o mérito de lhe conferir credibilidade e prazer de leitura dessa narrativa histórica. Como historiador e escritor, Ungulani coloca todo o seu saber naquilo que produz e pretende transmitir, tornando a história em verdadeira representação literária e, ao mesmo tempo, em arte de encenação. Esta é a conclusão de um amigo comum, o Marcelo Panguana. Mas, o Ungulani encerra, em si mesmo, várias facetas, estórias e personalidades. Um homem inspirado e, insofismavelmente, ligado às grandes leituras da sua época.
A crítica literária tem sido muito complacente e assertiva para com o Ungulani. Ba Ka Khossa foi consagrado como contista de reconhecido mérito, amadurecido pela diversidade e abordagem na sua inquestionável produção literária. Ele se transformou em alguém que recorre ao metaforismo e à magia na recriação de personagens. Ungulani fará parte do distinto grupo dos mais nobres escritores do seu tempo, com essa capacidade de reconstruir, como ninguém, a saga que têm sido os anos de conflito armado no país.
Ungulani, fazendo alguma justiça é, igualmente, um devoto e apaixonado fiel de Luís Bernardo Honwana. Ele o considera o Pai da literatura moçambicana. Tem as suas razões e não ousamos questionar esta distinção. Aliás, também defende que a charrua é a melhor revista literária do mundo. Assim tem sido Ungulani, um destemido provocador, um desarrumador de ideias e um iconoclasta, como o define Nelson Saúte. Ungulani, enfim, será sempre o símbolo-mor da nossa geração, um desalinhado; alguém que pauta pela sublevação, desapegado dos ditames desta e outras épocas. Permanece alheio às lides do aparelho ideológico e discordante das ideias que reprimem a liberdade de criação.
Temos uma particularidade. Amamos o Niassa, a Sibéria moçambicana. Ele, porque passou algum tempo para se auto-educar, e eu porque aprendi a amar a natureza e seus animais. Acreditamos na magia deste pedaço de terra. Um dia, Niassa se converterá no melhor espaço do mundo. Quando não existir mais água, o lago vai matar a sede de toda humanidade e saciar a sua ganância. Até lá, seremos gratos por ter convivido, desfrutado e beneficiado dessa veia literária tão mordaz quanto profícua. (X)