Em recentes comunicações à nação, o Presidente da República prolatou a obrigatoriedade de quarentena de 14 dias para todos cidadãos vindos de países com transmissão activa do COVID 19 e proibiu a organização e realização de eventos com, primeiramente, mais de 300 pessoas e mais recentemente com mais de 50 pessoas; suspendendo e restringindo desta forma inusitada direitos fundamentais, tal como os direitos à liberdade de circulação (art. 55/2 CRM) e à liberdade de reunião (cfr. art. 51 CRM). Estranha-se que estas medidas restritivas e limitantes de direitos fundamentais tenham sido tomadas pelo Presidente da República em violação da própria Constituição, precisamente por não ter cumprido com as exigências formais nela consagradas, como a necessidade de declaração de Estado de Emergência (cfr. art. 72/1 CRM) e o dever de especificar a duração das referidas medidas e a base legal em que assenta (cfr. art. 72/2 CRM) – sem olvidar que o meio usado para comunicar tais medidas não encontra qualquer respaldo legal no elenco dos actos normativos em vigor. Tomás Timbane frisou com algum eufemismo e benevolência que estávamos «A caminho do Estado de Emergência» (TIMBANE, Tomás, Post do Facebook de 20/03/2020). Este percurso sinuoso em direcção ao Estado de Emergência, que estranhamente mereceu o silêncio da comunidade jurídica pátria - eventualmente pela nobreza dos seus objectivos ou pelo pânico que se apossou de muitos de nós - não deve ser aplaudido no contexto de um Estado que se pretende que venha a ser de «democrático de Direito». Deve sempre preocupar-nos que nessa «Caminhada para o Estado de Emergência», quem jurou garantir o respeito pela Constituição, a viole; sobretudo com uma justificação implícita alicerçada no célebre pensamento de Nicolau Maquiavel que «Os fins justificam os meios».
Este prelúdio inconstitucional «A caminho do Estado de Emergência» convocava a preocupações antecipadas relativamente ao anunciado momento da declaração formal do Estado de Emergência.
Porquanto, a declaração do Estado de Emergência, implicando restrições de direitos e liberdades individuais constitucionalmente garantidos, não remete a actuação dos poderes públicos para o mundo da arbitrariedade e muito menos para uma espécie de “zonas libertadas do Direito”. A Constituição da República não é suspensa durante esse período, ela permanece em vigor, tanto mais que é nela que reside a fonte de legitimidade, os fundamentos e os limites do Estado de Emergência.
Como sublinha Jorge Miranda a propósito «Não há em cada Estado, duas Constituições aparelhadas – Uma Constituição da normalidade e uma Constituição da necessidade; há uma só Constituição, assente nos mesmo princípios e valores; embora com regras adequadas à diversidade das situações» (MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, p. 431). Na linguagem de Canotilho, trata-se no fundo de submeter as situações de emergência à própria Constituição, «constitucionalizando» o recurso a meios excepcionais necessários, adequados e proporcionais, para se obter o restabelecimento da normalidade constitucional (CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª Edição, Almedina, Coimbra, 2003, p. 1085).
Por isso, não estando em causa a necessidade da declaração do Estado de Emergência, era sobretudo o respeito pelos formalismos e limites constitucionais, e pelos imperativos da proibição do excesso que mais nos preocupam.
O nosso texto constitucional determina que a actuação dos poderes públicos em contexto de Estado de Emergência deve «em todo o caso» respeitar o princípio da proporcionalidade e limitar-se nomeadamente quanto à extensão dos meios utilizado e quanto à duração, ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional. Neste contexto, podemos estabelecer um paralelismo com a relevante preocupação que vem vazada no Decreto 2/A-2020 de 20 de Maio de 2020 (regula a aplicação do Estado de emergência decretado Pelo Presidente da República portuguesa) nos seguintes termos: «Estas medidas devem ser tomadas com respeito pelos limites constitucionais e legais, o que significa que devem, por um lado, limitar-se ao estritamente necessário e, por outro, que os seus efeitos devem cessar assim que retomada a normalidade» .
Como corolário, a Constituição moçambicana vinca que um dos principais limites para a actuação dos poderes públicos no Estado de Emergência é o princípio da proporcionalidade que demanda o respeito pelos seus 3 subprincípios, designadamente: (i) idoneidade (as medidas restritivas usadas sejam virtualmente aptas a alcançar o fim visado); (ii) necessidade (dos meios idóneos disponíveis e igualmente aptos para prosseguir o fim desejado, deve-se recorrer àquele que virtualmente assegure o menor sacrifício para os visados) e (iii) proporcionalidade em sentido estrito (diz respeito à justa medida das coisas, ao equilíbrio e à ponderação necessárias para se alcançar uma relação de adequação entre os bens e interesses em colisão, mais especificamente entre o sacrifício imposto ao cidadão pela restrição e o benefício por ela prosseguido) - NOVAIS, Jorge Reis, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pp. 162 e 163.
A Constituição da República de Moçambique também estabelece outros limites específicos, tais como a proibição do Estado de Emergência limitar ou suspender, em qualquer caso, direitos intangíveis como o direito à vida, à integridade pessoal (entenda-se integridade psicossomática do cidadão), à capacidade civil e à cidadania, à não retroactividade da lei penal, o direito à defesa dos arguidos e à liberdade de religião (cfr. art. 294 CRM). É nosso entendimento que estes são uma espécie de «núcleo duro mínimo» de direitos fundamentais que, em caso algum, podem ser sacrificados em situações de Estado de Emergência. Porém, tal não significa que não possam existir outros direitos fundamentais dos cidadãos a salvaguardar nesse mesmo âmbito, tendo em conta a natureza do motivo excepcional que conduziu à decretação do Estado de Emergência. Tanto mais que a Constituição obriga a que na declaração do Estado de Emergência sejam especificadas e devidamente fundamentadas as liberdades e garantias cujo exercício é suspenso ou limitado (cfr. art. 290/2 CRM)
Com efeito, tendo em conta a natureza de menor gravidade do Estado de emergência no âmbito dos chamados estados de excepção, tomando ainda em linha de conta que a calamidade pública que o fundamenta é de origem biológica (não envolve qualquer tipo de agressão efectiva ou eminente ou de perturbação da ordem constitucional), cremos que em abstracto não se justificariam restrições ou limitações à uma panóplia muito ampla de direitos fundamentais dos cidadãos não relacionados com a prevenção do contágio comunitário pelo COVID 19. Exemplificativamente, o direito à liberdade de expressão, liberdade de imprensa e de informação; a restrição ou limitação das prerrogativas funcionais dos Advogados; o direito à inviolabilidade da correspondência e do domicílio; o direito ao sigilo das comunicações; o direito à impugnação de actos violadores de direito dos cidadãos, o direito de acesso aos tribunais, só para citar alguns considerados relevantes.
Hoje, dia 30 de Março de 2020, o Presidente da República comunicou à nação moçambicana que vai declarar o Estado de Emergência no nosso País, como medida de reforço das acções de prevenção do COVID-19. Esta modalidade de Estado de Excepção entra em vigor a 1 de Abril de 2020 e terá a duração de 30 dias, De entre as medidas anunciadas pelo Chefe do Estado, como âmbito do Estado de Emergência, destacam-se a limitação de circulação de pessoas e bens em todo o território nacional, assim como a limitação da entrada de pessoas nas fronteiras terrestres, aeroportos e portos, exceptuando-se para razões de interesse do Estado, transporte de bens e mercadorias por operadores devidamente credenciados, e situações relacionadas com a saúde. O Presidente da República também anunciou a quarentena obrigatória para todos os cidadãos que tenham viajado para fora do país, ou que tenham estado em contacto com casos confirmados de COVID-19, assim como a proibição de quaisquer actividades públicas ou privadas, como actividades desportivas, religiosas, culturais, recreativas e de outra índole que concentrem multidões no mesmo recinto, exceptuando questões inadiáveis do Estado ou sociais. O Presidente da República anunciou ainda a fiscalização dos preços de bens essenciais para a população, incluindo os necessários para a prevenção e combate à Pandemia; assim como a introdução da rotatividade do trabalho ou a adopção de outras modalidades em função das especificidades do sector público ou privado (https://www.presidencia.gov.mz/por/Actualidade/Presidente-da-Republica-declara-Estado-de-Emergencia, acedido a 30 de Março de 2020).
Podemos dizer com alguma segurança que esta selecção dos direitos, liberdades e garantias afectados (limitados ou restringidos) pela declaração de Estado de Emergência obedeceu aos imperativos constitucionais. Ou seja, estas medidas adoptadas, no contexto da declaração do Estado de Emergência - tendo em conta os interesses colectivos supremos em jogo e a finalidade a atingir - parecem-nos adequadas, necessárias e estritamente proporcionais.
Não obstante, pode-se gerar alguma celeuma jurídica na aparente contradição entre a proibição contida no texto do artigo 294° da Constituição da República que proíbe que a declaração do Estado de Emergência limite ou restrinja a liberdade de religião e o facto do Presidente da República ter anunciado a proibição de actividades religiosas que concentrem multidões no mesmo recinto. Esta medida de carácter excepcional e temporário pode ser interpretada no sentido que a declaração de Estado de Emergência limitou a liberdade de religião dos cidadãos, em violação da intangibilidade desse direito fundamental assegurada pela norma constitucional acima citada.
Sem embargo do Decreto Presidencial que regulamenta a aplicação do Estado de Emergência poder vir a detalhar especificamente o que se deve entender por concentração de “multidões” no mesmo recinto para a prática de actividades religiosas, permanece a dúvida se as missas ou outros eventos presenciais de cariz religioso estarão proibidas durante a prevalência do Estado de Emergência ou se podem realizar-se presencialmente mediante a observância de certos cuidados de distanciamento dos presentes e só com um número limitado de pessoas. Ficaria, porém, a questão de saber: qual seria o número de pessoas presentes que seria considerado aceitável? Para esses fins quantas pessoas constituem uma multidão? A generalidade e indeterminação da expressão “multidão”, usada neste contexto, não ajuda ao fácil entendimento do sentido decisivo da medida. Essa formulação vaga de uma medida concreta muito importante para a consecução dos objectivos da decretação do Estado de Emergência, pode comprometer o sucesso dos fins almejados ou até mesmo gerar interpretações distintas sobre o alcance da proibição tornar-se um convite à arbitrariedade interpretativa, com todas as consequências negativas que adviriam dessa comfusão. Teria sido preferível maior clareza e concretude no anúncio desta medida.
Todavia, tendo em conta a finalidade da declaração do Estado de Emergência (o reforço das acções de prevenção ao COVID 19), não nos arrepiaria que tal medida implicasse a proibição temporária da realização presencial de missas e de outros eventos de cariz religioso. E, em nosso entender, essa eventual proibição não colidiria com limitação contida no citado artigo 294° da Constituição da República e nem com os limites estabelecidos pelo princípio da proporcionalidade. Proibir excepcional e justificadamente a realização de celebrações de cariz religioso e outros eventos presenciais de culto, para evitar os efeitos trágicos da propagação do Coronavírus através da aglomeração de pessoas em missas e outras celebrações presenciais de carácter religioso, não significa limitar ou restringir a liberdade de religião; visto que neste caso o Estado não estaria a impedir os cidadãos de professarem as suas crenças religiosas. Tanto mais que tais cultos ou celebrações poderão ser temporariamente acompanhados pelos fieis através de meios electrónicos audiovisuais, como acontece, por exemplo, com as recentes missas do Papa Francisco que, pelas mesmas razões, são actualmente transmitidas por via televisiva - julgamos que quando as coisas se passam desta forma, nem a própria liberdade de culto parece ficar afectada, visto que continua a haver culto religioso, deixando apenas de ser presencial.
À frente, depois de conhecermos as medidas decretadas pelo Presidente da República ao abrigo da declaração do Estado de Emergência, acreditamos que o desafio maior residirá, daqui em diante, na actuação das forças de defesa e segurança nas acções de fiscalização do cumprimento destas medidas. A nossa preocupação tem que ver com a habitual cultura brutalidade policial e militar contra os cidadãos exercida em tempos de normalidade constitucional; pressagiando-se um agravamento nesta inédita situação de excepcionalidade constitucional. Algumas imagens violentas que nos chegam através das redes sociais mostram intervenções policiais e militares violentas e desproporcionais contra os cidadãos que alegadamente violaram as regras de confinamento obrigatório na Índia. Tais filmagens revelam uma actuação brutal das forças de segurança, numa clara violação do direito à integridade psicofísica dos respectivos cidadãos. Também daqui, da vizinha África do Sul, chegam-nos imagens chocantes de membros das forças armadas a imporem sevícias e outros tratamentos cruéis e degradantes a cidadãos que aparentemente violaram o confinamento obrigatório.
Lá como cá, todo o cidadão tem o direito à vida e à integridade física e moral e não pode ser sujeito à tortura ou outros tratamentos cruéis ou desumanos. Cá e lá a declaração de Estado de Emergência não deve limitar ou suspender o direito do cidadão ao respeito pela sua integridade psicofísica – aliás, em todo os Estados democráticos que se pretendem de Direito, o respeito pela dignidade da pessoa humana é um valor superior do ordenamento jurídico; caracterizando-se antes de mais como um imperativo civilizacional.
Em adição, cabe-nos frisar que o princípio da proporcionalidade como mecanismo de controlo dos excessos cometidos pelos poderes públicos não só intervém, numa primeira linha, para aferir se as restrições e limitações dos direitos fundamentais impostas pela declaração do Estado de Emergência são adequadas; como também, num segundo momento, para se assegurar que as restrições impostas por essa declaração, no domínio da respectiva fiscalização e controlo, devem limitar-se ao necessário para assegurar os fins perseguidos e para salvaguardar o exercício de outros direitos e interesses dos cidadãos constitucionalmente protegidos.
Deste modo, o ordenamento constitucional impõe proporcionalidade nas medidas excepcionais declaradas, assim como demanda proporção na actuação dos poderes públicos para a salvaguarda do cumprimento das imposições decretadas.
Aqui chegados, e quase a terminar, pedimos emprestadas as palavras do Presidente da República de Cabo Verde, Professor Jorge Carlos Fonseca, quando a propósito da declaração do Estado de Emergência naquele país lusófono assegurava o seguinte: «A nossa Democracia continuará, pois, em funcionamento e todos os direitos, liberdades e garantias não abrangidos pela suspensão continuarão em plena vigência […] o estado de emergência, decretado de acordo com a Constituição e em nome dela, não implica, pois, um qualquer apagão democrático».
Em suma: esteve bem o nosso Presidente da República ao estabelecer estas medidas constitucionais, excepcionais e temporárias, de resposta à necessidade de prevenção da propagação do COVID 19. A nosso ver, tais medidas decretadas são adequadas, necessárias e proporcionais.
Contudo, inquieta-nos a seguinte questão: estarão os demais poderes públicos à altura das suas responsabilidades de fiscalização e controlo do cumprimento dessas medidas de excepção? Estão preparados para actuar neste contexto extraordinário sem provocarem um curto-circuito constitucional?
O futuro próximo melhor dirá!
NOTA: Este artigo faz parte de uma iniciativa em que vários juristas, sociólogos,economistas, antropólogos, jornalistas, cientistas políticos e activistas sociais se juntaram para escrever sobre o significado do Estado de Emergência, uma decisão inédita em Moçambique e em grande parte do mundo.