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sexta-feira, 03 abril 2020 06:25

O país da última hora

O jornalista Marcelo Mosse escreveu, recentemente, algo parecido com a falta de prontidão e desorganização na resposta à emergência que a COVID-19 impõe ao país. Será que era expectável o contrário? Infelizmente, e dói ter que afirmar, uma das marcas “Made in Mozambique” e parte do ADN da Pérola do Índico é a “Última Hora”. Ou seja: deixar tudo para o fim.

 

E nessa linha, e à hora da refeição, um moçambicano que se preze, deixa o melhor pedaço de carne para o fim. Na escola, o trabalho de investigação é entregue no último dia e até em casos de prorrogação do prazo. Na vida adulta não se difere tanto, conforme os casos - a título de exemplo - da ida ao médico e ao posto de recenseamento eleitoral e ainda no momento de pagamentos às finanças e do manifesto automóvel. Contudo, uma excepção e de ouro: o pagamento de “comissões” (os famosos 10%) que é - sem prejuízo para o infractor - efectuado de forma antecipada. 

 

Neste diapasão, e deveras preocupante, temo, em relação à pandemia COVID-19, que se esteja a confiar em estratégias que fazem também parte do ADN da Pérola do Índico. Uma delas e dos idos tempos infanto-juvenil é o jogo “às escondidas” em que o último escondido, desde que não tivesse sido apanhado, goza de plenos poderes para salvar os apanhados assim que tocasse o ponto da contagem de partida para o esconderijo. A outra estratégia, e das lides do futebol, é o recurso a uma “arma secreta”, que é um jogador que entra nos derradeiros momentos do jogo como a solução final para a vitória.  

 

Dito isto, seria expectável o contrário? Ou não estarão os acontecimentos a desenrolar dentro do quadro lógico do Modus Operandi da “Última Hora” e num cenário - para agravar - em que se desconhece o último dia da acção da fulminante COVID-19. É caso para dizer que os contornos patológicos da dupla pandemia, a COVID-19 e a “Última Hora”, constituam matéria de estudo para a nossa academia, a menos que esta seja uma outra e circunscrita pandemia.

quinta-feira, 02 abril 2020 07:14

Isto é apenas o toque da trompeta

Perguntou-me se eu não tinha medo de morrer, e eu disse-lhe que ninguém está preparado para morrer. Estamos sentados lado a lado na mesma cadeira de dois lugares, e o nosso destino é Maputo, onde se registaram os primeiros sinais  - no nosso País - daquilo que já está a degenerar numa hecatombe mundial. Ninguém sabe como tudo isto vai terminar. E nós os dois, dentro deste enorme autocarro que nos leva, não temos a mínima ideia do que poderá acontecer connosco ao chegarmos a capital de Moçambique, onde a grande maioria do povo daqui,  parece mais preocupada com o que vai comer, do que propriamente com esse vírus flagelador.

 

São seis horas da manhã e já estamos a atravessar a ponte de Inharrime, depois de termos saído de Inhambane às cinco. Olho, pela janela, para o encanto da paisagem que se prolonga até às dunas que exuberam ao longe, e imagino o Índico do outro lado, abrindo-se para os navios e os cruzeiros que podem estar a levar para outras terras, ou trazer para o nosso chão, esse bicho temível. Sou tentado a pensar assim, ao mesmo tempo que liberto a minha inaginação, na busca das canções que já não nos consolam nesta longa espera pelo fim.

 

Ao perguntar-me se eu não tinha medo de morrer, depois do “bom-dia”, pensei que esta mulher minha companheira de viagem, quisesse daquela forma desfiar conversa para encurtar a distância, o que seria salutar para  interior da alma e para o corpo também. Enganei-me.  Logo a seguir ela tirou da carteira um livro, trocou os óculos, e começou a ler. Na verdade  o gesto era um sinal, uma espécie de barreira que me impedia de alcança-la com as palavras. E eu compreendi isso.

 

Enfiei as mãos por entre as minhas pernas, apertando-as, ao mesmo tempo que ia escutando a música quase imperceptível do motor do carro. Não oiço ninguém conversar cá dentro, exceptuando algumas intervenções feitas ao telefone, mesmo assim sem perturbarem o nosso silêncio colectivo. Mantenho os olhos abertos em busca de novos elementos na paisagem que vai escorrendo ao longo do percurso que conheço muito bem, mas tudo o que me chega é como a repetição de uma canção que já me cansa. Excecptuando agora, que damos entrada à Quissico. As Lagoas de Quissico não cansam. Posso contempla-las até à exaustão, mas amanhã quero vê-las outra vez. É como “Baila Maria”, música de Chico António e Mingas, quanto mais a escuto, mais nova parece,  e mais a desejo, como a minha mulher depois do orgasmo, quero mais.

 

Parámos em Chongwene para beber um café e relaxar os músculos, e o homem da tripulação avisou, são quinze minutos, senhores passageiros. Quis levantar-me para sair, mas para isso tinha que acordar a minha companheira que dormia com o livro aberto nas mãos, para ela deixar-me passar. E eu pensei, não se acorda sem necessidade urgente, alguém que está a dormir. Mas eu quero beber café, e isso não é urgente. E agora! Mantive-me sentado e ela nunca mais despertava.

 

Olho para o relógio.  São dez horas. Não tenho fome, não sinto cansaço, mas o café podia melhorar ainda mais a minha perfomance. Absolutamente! Porém esta mulher não me” deixa” sair. E eu não quero despertá-la. Não quero ser o causador de um solavanco, ainda por cima de uma mulher que dorme com um livro aberto nas mãos.

 

Pois é, o autocarro retoma a marcha, e eis-nos, em pouco mais de quarenta minutos, a atravessar a planície de Xai-Xai. Foi aqui onde ela recobrou a razão e voltou a falar.

 

- Já estamos em Xai-Xai!

 

- Sim, mais três horas estaremos em Maputo, onde nos espera o improvável.

 

- Não se preocupe, irmão. O que está a acontecer é apenas o toque da trompeta, a espada ainda vai descer.

quarta-feira, 01 abril 2020 06:58

Imaginem só!

Imaginem que estamos em período de eleições presidenciais e legislativas, concretamente em campanha eleitoral! Façam de conta que o Coronavírus é RENAMO, Eme-Dê-Eme, PIMO, PAHUMO, AMUSI, ou sei-lá esses partidinhos que surgem menstrualmente em tempos de campanha eleitoral! Imaginem que a comunicação do Estado de Emergência feita na segunda-feira a noite era tempo de antena da FRELIMO e que Filipe Nyusi estava a falar como presidente e candidato da gloriosa e cinquentenária FRELIMO!

 

É só uma imaginação, não custa nada. Ninguém vai morrer por isso! Continuando, imaginem, então, que o conteúdo principal da comunicação de ontem a noite era simplesmente golear a oposição com uma derrota esmagadora, retumbante, convincente e qualquerizante!

 

Estamos juntos até aqui!?! Okey!!! Então, imaginem a quantidade de apoio que o partido FRELIMO teria recebido até ao meio-dia de ontem, terça-feira, vindo dos empresários e membros do partido FRELIMO espalhados pelo país! Imaginem malta Eme-Bê-Esse, Lalgy, Gulamo, Sidat, Abdula, Yunusso, Noormamad, Moti, etecetera, etecetera, etecetera! Imaginem os leilões de cadeiras, canetas, camisetas autografadas, bonés, etecetera, etecetera, etecetera. Imaginem só! Imaginem quanto dinheiro o partido não teria hoje para erradicar a oposição! 

 

Já-tão a imaginar né!?! Agora imaginem qual seria a manchete desta semana na mídia! Imaginem as análises dos ANAListas! Imaginem as esteiras dos Gustavos, dos Juliões, (mais quem?) desta vida no "Feicibuque"! Imaginar não paga imposto, então, imaginem!

 

Agora parem de imaginar. Caiam na real! Acordem! Olhem para o Coronavírus como pandemia! Olhem para o desespero do Presidente Filipe Nyusi! Olhem para a sua solidão! Olhem para o silêncio dos empresários! Procurem aqueles que pagam cadeiras de tábua a nove milhões, canetas a um milhão, camisas autografadas a sete milhões, bonés a três milhões, etecetera!

 

Olhemem para a Cê-Tê-A! Aquela associação de lobistas que estão em todas as viagens do Chefe do Estado para o estrangeiro. Aqueles que recebiam dinheiro do Estado até bem pouco tempo. Aqueles que ofereceram ao pai de Boustani um Mercedes Benz, modelo Esse-350, avaliado em duzentos mil euros, em 2014. Aqueles que "sabiamente" condecoram todos os Chefes de Estado no poder com medalhas por melhoramento do ambiente de negócios em Moçambique. Aqueles cujo presidente (falecido) ia buscar dinheiros do cofre dos já pobres e sofridos trabalhadores para comprar seus aviões e montar suas empresas. 

 

Em outros quadrantes, neste momento de crise, os empresários se dispõem ao seus governos. Empresas privadas estão a ajudar o governo com produtos de higiene, até com ventiladores. As CLINICA(RE)S se predispõem a receber seus compatriotas doentes. Não há mãos a medir. Não é tempo de contabilizar ganhos.

 

Mas, também - a verdade seja dita - nesses outros quadrantes, há EMPRESÁRIOS no verdadeiro sentido do termo. Pessoas que fazem negócios de verdade, que não precisam de ter cartão vermelho para o serem. Empresários de sucesso de lá não precisam ser filhos nem amigos dos Chefes de Estado. 

 

Mas, também - outra verdade - nesses outros quadrantes, o Estado não fica a dever todos os lucros dos empresários durante anos. Os concursos públicos ganham-se justamente, e paga-se o que deve ser pago. Não se deixa o empresário na corda bamba. Lá o negócio é "win-win". 

 

Mas é melhor voltarmos a imaginar. Imaginar é bom! Eu já estou a imaginar um jantar de gala de angariação de fundos para o partido onde o filho do Gulamo de Nacala, o Gulamozito - mais conhecido por Gula - comprou todo o Coronavírus de Moçambique, e, no dia seguinte, a sociedade civil começou a fazer cartas abertas ao presidente da FRELIMO por ter vendido um bem público sem concurso. A imaginação é a nossa maior riqueza. Graças a Deus isso ninguém nos roubam!

 

- Co'licença!

Excelências,

 

Antes de mais, aceitem as minhas cordiais saudações num momento em que o mundo enfrenta uma pandemia que dia-a-dia vem mostrando o quanto somos vulneráveis e desprotegidos.

 

Excelências, chamo-me Omardine Zacarias Omar, de nacionalidade moçambicana, um país sempre exposto ao fogo cruzado global desde as decisões políticas, económicas e de constantes conflitos.

 

Escrevo esta carta num momento em que a humanidade vive um dos maiores testes da era moderna. Escrevo esta mensagem numa altura em que mais de 30 mil pessoas no mundo já perderam a vida devido a esta pandemia que eclodiu nos finais do ano passado e, infelizmente, espera-se que se continue a morrer. Escrevo num momento ímpar em que a humanidade enfrenta um teste de sapiência divina e científica.

 

Excelências, o que esta pandemia nos vem provar é que todos os países e seres humanos são vulneráveis e expostos às adversidades do mundo, porque ninguém conhece os trilhos do seu destino, a não ser o Criador – embora, certas doenças tenham origem laboratorial (onde o homem ensaia o seu saber tanto para o bem quanto para o mal), caso que se verifica com o COVID-19 e outras doenças.

 

Excelências, o COVID-19 vem mostrar que os governos actuais de todo o mundo têm muito por fazer. Começando por transformar os seus sistemas de saúde e permitir acesso a todos os cidadãos independentemente das suas condições de vida. Para os líderes do meu continente, África, esta pandemia deve servir para corrigir tudo que por aqui vivemos.

 

Sabe-se que África é um continente de dependentes e com sistemas de saúde falidos ou viciados, porque todo aquele que é dirigente público ou possui finanças opta em ser tratado em países do primeiro mundo que hoje também choram com os danos da pandemia que paralisou tudo e ameaça alterar toda a ordem mundial em todos os âmbitos e alguns países pobres possam repensar na reforma profunda dos seus sistemas de saúde, educação e finanças.

 

Excelências, é importante que haja respeito pela natureza e todas as suas criaturas. É de vital importância que a humanidade perceba que todos nós somos seres passageiros e continuadores do projecto divino e que não adianta criar epidemias ou pandemias para medir o poder de uma economia em relação a outra. Esta pandemia é fruto da insensibilidade dos políticos e governos poderosos de todo o mundo e disperso do saber de mentes não-alinhadas com os sistemas governativos como aconteceu com o médico chinês Li Wenliang que alertou as autoridades do seu país sobre o surto, mas foi acusado de “espalhar boatos”.

 

Excelências, o nosso mundo está banhado de problemas, entre eles, mudanças climáticas devido ao uso irracional da natureza, corrupção, pobreza, fome, guerras, doenças como AIDS, Tuberculose, Ébola, Malária, Racismo, entre outras. O COVID 19 veio destapar estes problemas e mostrar que não existe um povo melhor ou maior que o outro. Uma pandemia que declarou guerra a todos os governos corruptos e obcecados do mundo.

 

Excelências, o COVID-19 veio mostrar que no mundo todos somos sujos e que termos atribuídos no passado – como “doença de mãos sujas ou de pobres”, a povos africanos, em referência a doenças como a cólera ou a malária – eram definitivamente ofensivos.
Excelências diria muito mais, mas o que eu e outros esperamos que o mundo seja após a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretar “o fim desta pandemia” é que:

 

ü  Os sistemas de saúde sejam devidamente valorizados e que haja respeito merecido a todos os funcionários e colaboradores dos sectores de saúde a nível do mundo, desde as condições financeiras ao seu habitat;

 

ü  Que se construam unidades sanitárias condignas em todos os locais onde existam populações vivendo;

 

ü  Que os cientistas do bem sejam vistos como propriedades dos Estados e que tenham uma relação contínua e não sirvam apenas para momentos críticos como estes em que estamos a viver;

 

ü  Que os sistemas de educação sirvam para formar “mentes brilhantes” e pessoas com espírito humanista nesta e nas próximas gerações e não mentes débeis e com fome de dogmatismo;

 

ü  Que os governos e governantes deixem de empobrecer os seus povos, acabando com a corrupção, a pobreza, mudando a sua abordagem em relação às reais necessidades do seu povo;

 

ü  Que alguns direitos humanos deixem de ser mera utopia;

 

ü  Que as guerras não sejam contra o povo inocente, mas sim contra pandemias e governos crónicos, ditadores comprovados e misantrópicos;

 

ü  Que haja mais irmandade entre os homens, respeito pelas realidades de cada povo e que a vida entre os homens seja mais altruísta e filantrópica e não como vivemos actualmente;

 

ü  Que haja paz na vida de milhares de pessoas que vivem momentos difíceis devido a certas políticas definidas por vossos governos;s

 

ü  Que as crianças, pessoas portadoras de deficiência e mulheres com dificuldades residentes em “países pobres” tenham uma vida mais condigna e que sejam respeitadas em todos os aspectos;

 

ü  Que as organizações económicas não debilitem os “países pobres” segundo critérios por vós criados;

 

ü  Que tenhamos um mundo mais justo, onde o oportunismo e a selvajaria económica e política não reinem;

 

ü  Que as pessoas possam ser mais próximas umas das outras, que cuidem mais das suas vidas e tenham condições melhores;

 

Excelências, esperamos que o doutoramento em que a pandemia COVID-19 nos submeteu possa servir para que as nossas vidas jamais sejam as mesmas, em todos os aspectos – até porque nos tem provado que as (nossas) mãos que seguram armas, escrevem os tratados, contam o dinheiro e apontam quais os países a sacrificar “são as mesmas mãos que hoje nos estão a infectar e a matar”.

 

Que situação! Afinal somos todos sujos!...

 

Unidos venceremos a COVID-19

 

Omardine Zacarias Omar, jornalista

Em recentes comunicações à nação, o Presidente da República prolatou a obrigatoriedade de quarentena de 14 dias para todos cidadãos vindos de países com transmissão activa do COVID 19 e proibiu a organização e realização de eventos com, primeiramente, mais de 300 pessoas e mais recentemente com mais de 50 pessoas; suspendendo e restringindo desta forma inusitada direitos fundamentais, tal como os direitos à liberdade de circulação (art. 55/2 CRM) e à liberdade de reunião (cfr. art. 51 CRM). Estranha-se que estas medidas restritivas e limitantes de direitos fundamentais tenham sido tomadas pelo Presidente da República em violação da própria Constituição, precisamente por não ter cumprido com as exigências formais nela consagradas, como a necessidade de declaração de Estado de Emergência (cfr. art. 72/1 CRM) e o dever de especificar a duração das referidas medidas e a base legal em que assenta (cfr. art. 72/2 CRM) – sem olvidar que o meio usado para comunicar tais medidas não encontra qualquer respaldo legal no elenco dos actos normativos em vigor. Tomás Timbane frisou com algum eufemismo e benevolência que estávamos «A caminho do Estado de Emergência» (TIMBANE, Tomás, Post do Facebook de 20/03/2020). Este percurso sinuoso em direcção ao Estado de Emergência, que estranhamente mereceu o silêncio da comunidade jurídica pátria - eventualmente pela nobreza dos seus objectivos ou pelo pânico que se apossou de muitos de nós - não deve ser aplaudido no contexto de um Estado que se pretende que venha a ser de «democrático de Direito». Deve sempre preocupar-nos que nessa «Caminhada para o Estado de Emergência», quem jurou garantir o respeito pela Constituição, a viole; sobretudo com uma justificação implícita alicerçada no célebre pensamento de Nicolau Maquiavel que «Os fins justificam os meios».

 

Este prelúdio inconstitucional «A caminho do Estado de Emergência» convocava a preocupações antecipadas relativamente ao anunciado momento da declaração formal do Estado de Emergência.

 

Porquanto, a declaração do Estado de Emergência, implicando restrições de direitos e liberdades individuais constitucionalmente garantidos, não remete a actuação dos poderes públicos para o mundo da arbitrariedade e muito menos para uma espécie de “zonas libertadas do Direito”. A Constituição da República não é suspensa durante esse período, ela permanece em vigor, tanto mais que é nela que reside a fonte de legitimidade, os fundamentos e os limites do Estado de Emergência.

 

Como sublinha Jorge Miranda a propósito «Não há em cada Estado, duas Constituições aparelhadas – Uma Constituição da normalidade e uma Constituição da necessidade; há uma só Constituição, assente nos mesmo princípios e valores; embora com regras adequadas à diversidade das situações» (MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, p. 431). Na linguagem de Canotilho, trata-se no fundo de submeter as situações de emergência à própria Constituição, «constitucionalizando» o recurso a meios excepcionais necessários, adequados e proporcionais, para se obter o restabelecimento da normalidade constitucional (CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª Edição, Almedina, Coimbra, 2003, p. 1085).

 

Por isso, não estando em causa a necessidade da declaração do Estado de Emergência, era sobretudo o respeito pelos formalismos e limites constitucionais, e pelos imperativos da proibição do excesso que mais nos preocupam.

 

O nosso texto constitucional determina que a actuação dos poderes públicos em contexto de Estado de Emergência deve «em todo o caso» respeitar o princípio da proporcionalidade e limitar-se nomeadamente quanto à extensão dos meios utilizado e quanto à duração, ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional. Neste contexto, podemos estabelecer um paralelismo com a relevante preocupação que vem vazada no Decreto 2/A-2020 de 20 de Maio de 2020 (regula a aplicação do Estado de emergência decretado Pelo Presidente da República portuguesa) nos seguintes termos: «Estas medidas devem ser tomadas com respeito pelos limites constitucionais e legais, o que significa que devem, por um lado, limitar-se ao estritamente necessário e, por outro, que os seus efeitos devem cessar assim que retomada a normalidade» .

 

Como corolário, a Constituição moçambicana vinca que um dos principais limites para a actuação dos poderes públicos no Estado de Emergência é o princípio da proporcionalidade que demanda o respeito pelos seus 3 subprincípios, designadamente: (i) idoneidade (as medidas restritivas usadas sejam virtualmente aptas a alcançar o fim visado); (ii) necessidade (dos meios idóneos disponíveis e igualmente aptos para prosseguir o fim desejado, deve-se recorrer àquele que virtualmente assegure o menor sacrifício para os visados) e (iii) proporcionalidade em sentido estrito (diz respeito à justa medida das coisas, ao equilíbrio e à ponderação necessárias para se alcançar uma relação de adequação entre os bens e interesses em colisão, mais especificamente entre o sacrifício imposto ao cidadão pela restrição e o benefício por ela prosseguido) - NOVAIS, Jorge Reis, Os Princípios  Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pp. 162 e 163.

 

A Constituição da República de Moçambique também estabelece outros limites específicos, tais como a proibição do Estado de Emergência limitar ou suspender, em qualquer caso, direitos intangíveis como o direito à vida, à integridade pessoal (entenda-se integridade psicossomática do cidadão), à capacidade civil e à cidadania, à não retroactividade da lei penal, o direito à defesa dos arguidos e à liberdade de religião (cfr. art. 294 CRM). É nosso entendimento que estes são uma espécie de «núcleo duro mínimo» de direitos fundamentais que, em caso algum, podem ser sacrificados em situações de Estado de Emergência. Porém, tal não significa que não possam existir outros direitos fundamentais dos cidadãos a salvaguardar nesse mesmo âmbito, tendo em conta a natureza do motivo excepcional que conduziu à decretação do Estado de Emergência. Tanto mais que a Constituição obriga a que na declaração do Estado de Emergência sejam especificadas e devidamente fundamentadas as liberdades e garantias cujo exercício é suspenso ou limitado (cfr. art. 290/2 CRM)

 

Com efeito, tendo em conta a natureza de menor gravidade do Estado de emergência no âmbito dos chamados estados de excepção, tomando ainda em linha de conta que a calamidade pública que o fundamenta é de origem biológica (não envolve qualquer tipo de agressão efectiva ou eminente ou de perturbação da ordem constitucional), cremos que em abstracto não se justificariam restrições ou limitações à uma panóplia muito ampla de direitos fundamentais dos cidadãos não relacionados com a prevenção do contágio comunitário pelo COVID 19. Exemplificativamente, o direito à liberdade de expressão, liberdade de imprensa e de informação; a restrição ou limitação das prerrogativas funcionais dos Advogados; o direito à inviolabilidade da correspondência e do domicílio; o direito ao sigilo das comunicações; o direito à impugnação de actos violadores de direito dos cidadãos, o direito de acesso aos tribunais, só para citar alguns considerados relevantes. 

 

Hoje, dia 30 de Março de 2020, o Presidente da República comunicou à nação moçambicana que vai declarar o Estado de Emergência no nosso País, como medida de reforço das acções de prevenção do COVID-19. Esta modalidade de Estado de Excepção entra em vigor a 1 de Abril de 2020 e terá a duração de 30 dias, De entre as medidas anunciadas pelo Chefe do Estado, como âmbito do Estado de Emergência, destacam-se a limitação de circulação de pessoas e bens em todo o território nacional, assim como a limitação da entrada de pessoas nas fronteiras terrestres, aeroportos e portos, exceptuando-se para razões de interesse do Estado, transporte de bens e mercadorias por operadores devidamente credenciados, e situações relacionadas com a saúde. O Presidente da República também anunciou a quarentena obrigatória para todos os cidadãos que tenham viajado para fora do país, ou que tenham estado em contacto com casos confirmados de COVID-19, assim como a proibição de quaisquer actividades públicas ou privadas, como actividades desportivas, religiosas, culturais, recreativas e de outra índole que concentrem multidões no mesmo recinto, exceptuando questões inadiáveis do Estado ou sociais. O Presidente da República anunciou ainda a fiscalização dos preços de bens essenciais para a população, incluindo os necessários para a prevenção e combate à Pandemia; assim como a introdução da rotatividade do trabalho ou a adopção de outras modalidades em função das especificidades do sector público ou privado (https://www.presidencia.gov.mz/por/Actualidade/Presidente-da-Republica-declara-Estado-de-Emergencia, acedido a 30 de Março de 2020).

 

Podemos dizer com alguma segurança que esta selecção dos direitos, liberdades e garantias afectados (limitados ou restringidos) pela declaração de Estado de Emergência obedeceu aos imperativos constitucionais. Ou seja, estas medidas adoptadas, no contexto da declaração do Estado de Emergência - tendo em conta os interesses colectivos supremos em jogo e a finalidade a atingir - parecem-nos adequadas, necessárias e estritamente proporcionais.

 

Não obstante, pode-se gerar alguma celeuma jurídica na aparente contradição entre a proibição contida no texto do artigo 294° da Constituição da República que proíbe que a declaração do Estado de Emergência limite ou restrinja a liberdade de religião e o facto do Presidente da República ter anunciado a proibição de actividades religiosas que concentrem multidões no mesmo recinto. Esta medida de carácter excepcional e temporário pode ser interpretada no sentido que a declaração de Estado de Emergência limitou a liberdade de religião dos cidadãos, em violação da intangibilidade desse direito fundamental assegurada pela norma constitucional acima citada. 

 

Sem embargo do Decreto Presidencial que regulamenta a aplicação do Estado de Emergência poder vir a detalhar especificamente o que se deve entender por concentração de “multidões” no mesmo recinto para a prática de actividades religiosas, permanece a dúvida se as missas ou outros eventos presenciais de cariz religioso estarão proibidas durante a prevalência do Estado de Emergência ou se podem realizar-se presencialmente mediante a observância de certos cuidados de distanciamento dos presentes e  só com um número limitado de pessoas. Ficaria, porém, a questão de saber: qual seria o número de pessoas presentes que seria considerado aceitável? Para esses fins quantas pessoas constituem uma multidão? A generalidade e indeterminação da expressão “multidão”, usada neste contexto, não ajuda ao fácil entendimento do sentido decisivo da medida. Essa formulação vaga de uma medida concreta muito importante para a consecução dos objectivos da decretação do Estado de Emergência, pode comprometer o sucesso dos fins almejados ou até mesmo gerar interpretações distintas sobre o alcance da proibição  tornar-se um convite à arbitrariedade interpretativa, com todas as consequências negativas que adviriam dessa comfusão. Teria sido preferível maior clareza e concretude no anúncio desta medida. 

 

Todavia, tendo em conta a finalidade da declaração do Estado de Emergência (o reforço das acções de prevenção ao COVID 19), não nos arrepiaria que tal medida implicasse a proibição temporária da realização presencial de missas e de outros eventos de cariz religioso. E, em nosso entender, essa eventual proibição não colidiria com limitação contida no citado artigo 294° da Constituição da República e nem com os limites estabelecidos pelo princípio da proporcionalidade. Proibir excepcional e justificadamente a realização de celebrações de cariz religioso e outros eventos presenciais de culto, para evitar os efeitos trágicos da propagação do Coronavírus através da aglomeração de pessoas em missas e outras celebrações presenciais de carácter religioso, não significa limitar ou restringir a liberdade de religião; visto que neste caso o Estado não estaria a impedir os cidadãos de professarem as suas crenças religiosas. Tanto mais que tais cultos ou celebrações poderão ser temporariamente acompanhados pelos fieis através de meios electrónicos audiovisuais, como acontece, por exemplo, com as recentes missas do Papa Francisco que, pelas mesmas razões, são actualmente transmitidas por via televisiva - julgamos que quando as coisas se passam desta forma, nem a própria liberdade de culto parece ficar afectada, visto que continua a haver culto religioso, deixando apenas de ser presencial.

 

À frente, depois de conhecermos as medidas decretadas pelo Presidente da República ao abrigo da declaração do Estado de Emergência, acreditamos que o desafio maior residirá, daqui em diante, na actuação das forças de defesa e segurança nas acções de fiscalização do cumprimento destas medidas. A nossa preocupação tem que ver com a habitual cultura brutalidade policial e militar contra os cidadãos exercida em tempos de normalidade constitucional; pressagiando-se um agravamento nesta inédita situação de excepcionalidade constitucional. Algumas imagens violentas que nos chegam através das redes sociais mostram intervenções policiais e militares violentas e desproporcionais contra os cidadãos que alegadamente violaram as regras de confinamento obrigatório na Índia. Tais filmagens revelam uma actuação brutal das forças de segurança, numa clara violação do direito à integridade psicofísica dos respectivos cidadãos. Também daqui, da vizinha África do Sul, chegam-nos imagens chocantes de membros das forças armadas a imporem sevícias e outros tratamentos cruéis e degradantes a cidadãos que aparentemente violaram o confinamento obrigatório.

 

Lá como cá, todo o cidadão tem o direito à vida e à integridade física e moral e não pode ser sujeito à tortura ou outros tratamentos cruéis ou desumanos. Cá e lá a declaração de Estado de Emergência não deve limitar ou suspender o direito do cidadão ao respeito pela sua integridade psicofísica – aliás, em todo os Estados democráticos que se pretendem de Direito, o respeito pela dignidade da pessoa humana é um valor superior do ordenamento jurídico; caracterizando-se antes de mais como um imperativo civilizacional.

 

Em adição, cabe-nos frisar que o princípio da proporcionalidade como mecanismo de controlo dos excessos cometidos pelos poderes públicos não só intervém, numa primeira linha, para aferir se as restrições e limitações dos direitos fundamentais impostas pela declaração do Estado de Emergência são adequadas; como também, num segundo momento, para se assegurar que as restrições impostas por essa declaração, no domínio da respectiva fiscalização e controlo, devem limitar-se ao necessário para assegurar os fins perseguidos e para salvaguardar o exercício de outros direitos e interesses dos cidadãos constitucionalmente protegidos.

 

Deste modo, o ordenamento constitucional impõe proporcionalidade nas medidas excepcionais declaradas, assim como demanda proporção na actuação dos poderes públicos para a salvaguarda do cumprimento das imposições decretadas.

 

Aqui chegados, e quase a terminar, pedimos emprestadas as palavras do Presidente da República de Cabo Verde, Professor Jorge Carlos Fonseca, quando a propósito da declaração do Estado de Emergência naquele país lusófono assegurava o seguinte: «A nossa Democracia continuará, pois, em funcionamento e todos os direitos, liberdades e garantias não abrangidos pela suspensão continuarão em plena vigência […] o estado de emergência, decretado de acordo com a Constituição e em nome dela, não implica, pois, um qualquer apagão democrático».

 

Em suma: esteve bem o nosso Presidente da República ao estabelecer estas medidas constitucionais, excepcionais e temporárias, de resposta à necessidade de prevenção da propagação do COVID 19. A nosso ver, tais medidas decretadas são adequadas, necessárias e proporcionais. 

 

Contudo, inquieta-nos a seguinte questão: estarão os demais poderes públicos à altura das suas responsabilidades de fiscalização e controlo do cumprimento dessas medidas de excepção? Estão preparados para actuar neste contexto extraordinário sem provocarem um curto-circuito constitucional?

 

O futuro próximo melhor dirá!

 

NOTA: Este artigo faz parte de uma iniciativa em que vários juristas, sociólogos,economistas, antropólogos, jornalistas, cientistas políticos e activistas sociais  se juntaram para escrever sobre o significado do Estado de Emergência, uma decisão inédita em Moçambique e em grande parte do mundo.

 

Beira, 30 de Março de 2020.
Gilberto Correia
(Doutor em Direito/Advogado)
segunda-feira, 30 março 2020 10:06

Tempos de reconciliação em guerra

Não restam dúvidas (e nem dívidas) de que a sensação dos dias que correm, e dos que se avizinham, é de tempos de reconciliação em plena guerra. Uma guerra (mundial) que é movida pela pandemia COVID-19, cujo combate (na verdade uma fuga para o exílio) passa por ficar em casa, local, até bem pouco tempo, desconhecido para a maioria de nós, incluindo o leitor. Imagino (e não se assuste) que ainda não se tenha dado conta de que não passas de um mísero (e abastecido/luxuoso) refugiado de guerra, deitado em casa,  à sombra do seu sofá.

 

Em casa - e na qualidade de um deslocado/refugiado - começa o primeiro acto de reconciliação. O segundo é o de reconciliação com o ambiente e o terceiro com a cidade. Sobre o primeiro acto, nas redes sociais, pululam exemplos, e alguns caricatos, como o do marido que se admira ao certificar de que a esposa, afinal, é muito boa pessoa (uma homenagem à simpatia). Em relação ao  segundo acto, a imprensa reporta a melhoria da qualidade do ar que se respira, por conta do impacto da redução significativa do uso de meios de transportes motorizados. E do terceiro acto, a reconciliação com a cidade (de Maputo), é visível,  por estes dias e com a ajuda do seu edil, que ela exibe, embora com alguma tristeza e incertezas à mistura, boa parte do esplendor da sua visão: "Cidade bela, limpa, segura, empreendedora e próspera".

 

À janela do seu exílio, conjecturo que o leitor, aliás refugiado, esteja às voltas por não poder usufruir em pleno os resultados da reconciliação. Nem o da reconciliação com a família, pois a ameaça mortífera da COVID-19 não o deixa sossegado, apertando o cerco quer pelos meios de comunicação social quer, e à espreita, por qualquer falha do dispositivo de segurança por si montado.

 

E por estar exilado em casa, contra a sua vontade, espero, a fechar, que não se aproveite do facto e solicite, à boa maneira moçambicana, o estatuto de refugiado para poder reivindicar fundos – em forma de subsídio ou de outra modalidade – que estejam, porventura, na carteira de  projectos dos 700 milhões de dólares americanos que  as autoridades do país pediram aos doadores. Do pedido e às pressas, mesmo a fechar, depreende-se que a política de mão estendida é imune ao COVID-19, mas, de certeza, uma outra e necessária reconciliação - para reflexão - em tempos de guerra.