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terça-feira, 22 dezembro 2020 06:44

A Reencarnação de Carlos Cardoso Não Está Fácil, defende António Francisco, Professor Catedrático*

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À medida que o tempo se afasta  do fatídico dia 22 de Novembro de 2000, data em que o jornalista Carlos Cardoso foi cruelmente assassinado, mais evidente se torna a dificuldade de a intelectualidade moçambicana reencarnar o melhor do ídolo do jornalismo investigativo em Moçambique. Digo reencarnar, porque guardo na memória a referência à crença de Cardoso, na fascinante biografia da sua vida e morte que acabei de reler, da autoria de Fauvet e Mosse (2003).

 

“Algumas vezes Cardoso contava a amigos e familiares mais próximos que acreditava na reencarnação” (p. 451). O biógrafo não conseguiu esclarecer até que ponto a crença era forte, justificando-se: “não era concerteza (sic.) assunto de discussão no ambiente materialista das redacções de Maputo”. Curiosamente, os autores da biografia não resistiram em deixarem-se fascinar pela “ideia do espírito de Cardoso pairando sobre a cidade, olhando para nós que estamos a escrever cá em baixo” (p. 451). No início do livro, já tinham comentado sobre a sua bipolaridade na juventude: “Embora Cardoso se descrevesse mais tarde como ateu, nunca perdeu o interesse pelo misticismo. ‘Ele estava tanto com Zen como com o marxismo’, recordou um colega” (p. 29).

 

Ao circunscrever Cardoso ao jornalismo investigativo, em vez do jornalismo em geral,  pretendo não ofender o seu contributo extraordinário e original para uma investigação jornalística da realidade alicerçada em valores éticos e morais. Contributo caracterizado pela assertividade, indagação, inconformismo e pensamento crítico, aliados a um estilo literário claro, simples, directo e cativante.

 

Reflectindo em recentes depoimentos divulgados nos média, fiquei com a sensação de que a data em que se  recordou os 20 anos do bárbaro assassinato de Cardoso, merecia muito mais, por parte da classe jornalística, bem como da sociedade civil que defende a cidadania moçambicana.  

 

Quando as liberdades individuais ficam reféns de uma coragem extraordinária e ousada, como a que custou a vida a Cardoso, algo de muito mal se passa nessa sociedade. Um mal que vem de longe, envolvendo tanto os que ousaram lutar contra a ditadura colonial, como os que não aceitaram subjugar-se à chamada ditadura do proletariado do radicalismo revolucionário que Cardoso, entre muitos outros esquerdistas, incluindo o autor deste texto, por algum tempo se deslumbraram e acreditaram que conduziria a uma sociedade nova (socialista).

 

Este texto tem duplo objectivo. Primeiro, visa cumprir a promessa que fiz após ter tomado conhecimento do assassinato de Cardoso.  Promessa essa que diz respeito à censura  sobre um capítulo sonegado da versão final do draft do Relatório Nacional de Desenvolvimento Humano 1999 que Cardoso não teve tempo de divulgar.

 

O segundo objectivo  retoma a questão da reencarnação acima referida;  assunto em que muitas pessoas  acreditam, mas poucas reflectem de forma a  esclarecer o que realmente desejam que seja reencarnado do seu próprio ser.

 

  1. “O Voto secreto é um perigo?” e os dados oficiais incómodos

Através das suas fontes, Cardoso soube que eu tinha renunciado à coordenação técnica dos Relatórios de Desenvolvimento Humano, financiados pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) em Moçambique, por falta de garantias que a censura feita ao Relatório de 1999, não voltaria a repetir-se. Ele quis perceber as razões da minha atitude.

 

Não tenho nenhum interesse em provocar qualquer debate público sobre o lamentável episódio, que Cardoso teria certamente tratado com mestria e profissionalismo. Se o abordo agora  é para  cumprir a promessa feita há 20 anos.  Tem a vantagem de ter passado tempo suficiente para que os detalhes das desinteligências e incómodos que a censura provocou, estejam esquecidos e não desviem as atenções do conteúdo do capítulo, que  partilho pela primeira vez, na minha página do Research Gate.

 

O gráfico que motivou a censura do artigo tem a ver coma versão final do texto do Relatório enviado para impressão. O Editor sugeriu que o Gráfico 4.8 (Figura 1) fosse retirado. Justificou-se dizendo que a Frelimo e o Presidente Chissano tinham sido oficialmente confirmados vencedores das eleições gerais de Dezembro de 1999 e o referido gráfico era demasiado embaraçador para o vencedor.

 

O Editor,  suposto jornalista investigativo, sabia que o gráfico baseava-se unicamente  nos dados oficiais validados pelo Conselho Constitucional. Não incluíam os votos que a Renamo alegava terem sido ignorados na contagem final, muito menos tinham sido retirados de  qualquer tipo de projecção ou inquérito paralelo.

 

Perante a minha recusa em aceitar tão despudorado convite à auto-humilhação intelectual e servidão moral e psicológica, o Editor optou por uma solução radical. Em vez de remover apenas o gráfico 4.8, retirou todo o capítulo, intitulado: 1990-1999: Década do alargamento das escolhas políticas e humanas dos moçambicanos.

 

Uma vez o facto consumado, ainda tentei obter garantias do Representante do PNUD, que   a independência analítica, coerência do quadro analítico dos relatórios e a integridade intelectual dos investigadores, não voltariam a ser violadas. Como desconsegui, optei por seguir o conselho do ditado popular: “Quem está mal muda-se”. 

 

  1. “Estás a gozar comigo?”

Quando  conversei com Cardoso sobre o sucedido, ele começou por desafiar-me a denunciar publicamente o que classificou como uma “censura canalha e ridícula”. Recusei fazê-lo, não por medo de represálias, mas por achar  gratuito enveredar por uma saga quixotesca, com políticos visivelmente mais preocupados com a sua carreira do que a verdade e integridade intelectual. 

 

Recordo que Cardoso ainda se irritou comigo, quando lhe disse que não era da minha competência  entrar no domínio das  denúncias jornalísticas, principalmente se a vítima era eu próprio: “Estás a gozar comigo?”, ripostou. “Como ousas dizer que não é teu trabalho? Tens tanto dever cívico de  defender a verdade como eu”.

 

Concordei, mas questionei que o mesmo devia exigir de colegas jornalistas dele que tinham sabido do caso e optaram por encolheram os ombros de resignação ou fingir desconhecê-lo. Houve quem chegou a dizer-me que já tinha idade suficiente para perceber que a Frelimo espera dos intelectuais flexibilidade mental suficiente para usarem a auto-censura, em vez de exporem o partido a comparações embaraçadoras com a ditadura colonial.  

 

“Então, deixa-me pegar no assunto”, pediu Cardoso, adiantando que o argumento sobre o gráfico embaraçador era mera desculpa. “Mais desconfortante do que o gráfico é a defesa no artigo do papel  do voto secreto na liberdade de escolha do cidadão. A Frelimo tem medo e odeia o voto secreto”, afirmou.

 

Tal como há 20 anos, continuo a duvidar que a denúncia da censura que Cardoso não foi a tempo de expor, seja útil para moralizar a sociedade. O mesmo não direi quanto à utilidade do artigo ser disponibilizado publicamente, para benefício dos interessados em estudar a experiência moçambicana de democratização versus anti-democratização e autoritarismo versus desgoverno.

 

 

  1. Porque a reencarnação de Cardoso continuará difícil de se concretizar?

Muito poderá ser dito em relação ao conteúdo do capítulo censurado, sobre os avanços e os retrocessos em torno do papel do sufrágio universal nas escolhas dos moçambicanos, mas este não é o espaço apropriado para o fazer. Limito-me a adiantar duas questões ou possíveis hipóteses de investigação, que poderão contribuir para preservar o legado e reencarnar o espírito investigativo de Cardoso.

 

Primeiro - Desde que a  Frelimo passou a garantir que os resultados eleitorais dependam mais de quem conta do que de quem vota, o medo do voto secreto ainda se justifica? Existe suficiente material para responder a esta questão, comparando o processo eleitoral de 1999 com os das eleições subsequentes, sobretudo a última de Outubro de 2019.

 

A segunda hipótese inspira-se em declarações recentes, como a do ex-colega e amigo de Cardoso, Fernando Lima: “actualmente, há muito mais liberdade apesar dos ‘esquadrões da morte’ que actuam contra jornalistas, e outras personalidades”. Até que ponto a afirmação “muito mais liberdade” resulta da melhoria das instituições nacionais, em vez da influência externa no alargamento das escolhas individuais, como por exemplo as novas tecnologias e redes sociais? 

 

Alguns dos depoimentos de outros colegas de Cardoso contrastam com o optimismo de Lima.  Salomão Moyana sublinhou que as intimidações aos jornalistas,  continuam nos dias de hoje:  “Além do Cardoso, morreram muitas outras pessoas, e outros jornalistas foram também agredidos. Se formos ‘cavar por dentro’, há a questão política por trás”.

 

Por seu turno, Lourenço Jossias, director do semanário Magazine Independente, foi inequívoco: “não há-de ser fácil encontrar muitos Cardosos, por estes dias, uma vez que há quem impõe o medo para um pleno exercício da liberdade de informar... os raptos, os assassinatos, as intimidações e ameaças de todo o tipo, impedem que Cardosos destes tempos exibam os seus talentos”. Por isso, adiantou Jossias, “eternizar o exemplo cardosiano não será, assim, tarefa fácil... Os tempos que vivemos são perigosos para toda a sociedade, especialmente para os Homens da pena” (Savana, 20/11/2020, p. 2).

 

Os dois depoimentos anteriores colocam bem a trágica morte de Cardoso em perspectiva. Em vez de excepção, ou  incidente isolado, o assassinato de Cardoso figura na história político-social contemporânea de Moçambique, como um dos exemplos mais mediáticos, entre muitos outros casos horrorosos, envolvendo criminosos comuns e  políticos inescrupulosos, em íntima conjugação do crime organizado dentro e fora do Estado.

 

Considerar o caso Cardoso o mais mediático em vez do pior, entre vários outros ocorridos desde 2000 até ao presente, é o mínimo que se pode fazer, em respeito para com os que ficaram no anonimato, ou foram rapidamente votados ao esquecimento. Recorde-se, na altura em que Cardoso foi assassinado, tinha começado a investigar a tragédia em Montepuez, tornada pública a 10 de Novembro; um caso, em que pelo menos 83 pessoas simpatizantes da Renamo, detidas numa cadeia em Montepuez, com apenas 21m2, morreram por asfixia, depois de ficarem vários dias sem água, nem alimentação (Fauvet e Mosse, 2003, p.7; Rosas, 2000).

 

Voltando à fascinante ideia acima referida, do espírito  de Cardoso pairando sobre a cidade, olhando para nós a escrever e debater os desafios que hoje enfrentamos, o que estará ele a pensar sobre as situações dantescas enfrentadas pelos jornalistas que ousam reportar a nova guerra em Cabo Delgado? Provavelmente, está a recordar a expressão que usou em 1987: “O país vive uma realidade marcada pela guerra... Mas a Informação fala de um país de paz relativa” (Fauvet and Mosse, 2003, p. 255).

 

Ironicamente, em 1982, ao reportar sobre a guerra, Cardoso também foi preso, acusado de “crime contra a segurança do povo e do estado popular”. O biógrafo adianta: “Cardoso, atónito, só conseguia exclamar: ‘Eu? Preso em Moçambique?’” (p. 143).

 

Quem leu a biografia de  Fauvet e Mosse (quem não a leu, não sabe o que perde!), reconhecerá  que Cardoso foi um dos esquerdistas mais inortodoxos que o monolitismo da revolução moçambicana teve o privilégio de contar nas suas fileiras. Sim, privilégio! Samora Machel e pelo menos alguns líderes frelimistas  mais cultos e inteligentes - até Rebelo! – reconheceram-no. Não obstante os embaraços, desconforto e irritações que Cardoso provocou na ortodoxia esdrúxula que se apoderou dos destinos do Moçambique independente, o balanço foi francamente positivo para a Frelimo.

 

Porém, o proveito que a Frelimo tirou da determinação e rebeldia esquerdista de Cardoso, não foi suficiente para convencê-la a aceitá-lo como membro: “...candidatou-se para ser membro, mas não foi aceite”. Como mostra o livro de Fauvet e Mosse, o crescente monolitismo da Frelimo, “como partido de vanguarda, edificado sobre linhas ortodoxas leninistas”, teve grande dificuldade em lidar com os intelectuais “à esquerda da Frelimo” (p. 83).

 

Ao reler a biografia de Cardoso fiquei com a sensação de que em 2000 ele estava a tornar-se um liberal, se bem que em negação. Nessa altura, ainda não se tinha libertado da forte toxicodependência ideológica esquerdista, em que mergulhou na sua juventude. Contudo, nos últimos anos da sua vida, Cardoso apoiou de forma inequívoca reformas de natureza liberal em vez de esquerdista: Estado de Direito,  liberdade imprensa e de expressão e não apenas direito à crítica; jornalismo independente do propagandismo; eleições livres e justas; afirmação da cidadania; iniciativa privada das empresas e dos produtores, entre outros aspectos, consistentes com um liberalismo que nada tinha a ver com a caricatura de liberdade e anarquia, vigorosamente diabolizadas por Machel, nas décadas de 1970-80.

 

*O texto foi originalmente publicado no Diário Económico de Moçambique.  

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