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quarta-feira, 06 dezembro 2023 12:59

VIRGÍLIO DE LEMOS

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Quando o infortúnio lhe sobreveio, aos 84 anos, a 6 de Dezembro de 2013, nos arredores de Paris, avultavam, a favor de França, na biografia do poeta Virgílio de Lemos, 50 anos do seu porfiado exílio. Nascera na Ilha do Ibo, a 29 de Novembro de 1929, e pertencera ao escol dos poetas que se afirmaram nos anos ulteriores à Segunda Guerra Mundial em Moçambique, alguns dos quais, como Noémia de Sousa, José Craveirinha, Fonseca Amaral, Rui Knopfli, Orlando Mendes ou Rui Nogar, são responsáveis por intuir e instituir aquilo seria uma poesia de raiz marcadamente moçambicana. Apesar disso, o seu percurso e a sua poesia fazem-se por meios e características diversas daqueles.

 

Fátima Mendonça, num instigante ensaio de 1987 que estabelece uma periodização da literatura moçambicana, recolhido em Literatura Moçambicana – A História e as Escritas (1989), identifica-lhe proximidades ao surrealismo. Américo Nunes, num texto que antecede A Dimensão do Desejo (2009), fala de “uma experiência simultaneamente lúdica e trágica, erótica e profundamente desassossegada” da sua poesia: “Virgílio de Lemos é um lírico desdobrado de um metafísico.” Reconhece-lhe a “militância” anti-colonial e anti-fascista, mas “não é isso que traduz a essência da sua poesia”. Creio que Poemas do Tempo Presente (1960) não declina um espírito irreverente, contudo, não prossegue o que uma poesia como a de José Craveirinha ou Noémia de Sousa propugnam.

 

Craveirinha, numa remota entrevista a Michel Laban (Moçambique – Encontro com Escritores, I vol, 1998), não tergiversou quanto a dúvidas que chegou a ter sobre o papel e a personagem de Virgílio de Lemos: “Eram simplesmente dúvidas: de que lado é que o tipo está? E depois aquela coisa de ele pedir-me originais para pôr no jornal da Mocidade Portuguesa…” Aliás, Craveirinha declina quando este lhe propõe colaboração nas folhas “Msaho”, em 1952. Queria ver primeiro, contudo, “Msaho” soçobrou no primeiro número. Colaboram Noémia de Sousa, Reinaldo Ferreira ou Ruy Guerra. Reinaldo pertencia, com Domingos de Azevedo e Virgílio, à coordenação da publicação. Da sua amizade com Reinaldo Ferreira, da sua cumplicidade, há um testemunho afectivo e poético de Virgílio.

 

Virgílio de Lemos foi preso duas vezes. Foi absolvido no caso da “capulana vermelha e verde” e condenado a 16 meses (o tempo que expendera na prisão) no caso de subversão. O seu ideário (chamou-lhe “crioulismo” ou “barroco estético dos moçambicanos”) passava, a seu ver, por uma amálgama cultural e uma vivência urbana que incluía “brancos, mistos, indianos, chineses e os pretos que dormiam no fundo dos quintais”. Casou com a artista Bertina Lopes (pai português e mãe moçambicana) e teve dois filhos. Contudo, em 1963, desfeito o laço matrimonial e cansado dos imbróglios com os esbirros e as impugnações destes, parte para o exílio. A África do Sul, onde estudara e vivera algum tempo, não lhe parece lugar auspicioso para tal desiderato. Aterra em Paris em Dezembro desse ano longínquo.

 

Michel Laban fez-lhe a pergunta que se impunha: “Poderia supor-se que, saindo tu da cadeia, te juntasses ao movimento nacionalista organizado…” A resposta de Virgílio de Lemos é honesta: “Cheguei aqui e fiz um balanço para mim. Verifiquei que acima das ideias do movimento de libertação nacionalista, eu devia valorizar a minha própria liberdade de pensamento e de acção, embora denunciando o colonialismo, o salazarismo.” Nada mais lídimo. Quando, por vezes, se fazem exabundantes afirmações sobre o dissentimento de Virgílio de Lemos, creio que vale lembrar a sua liberdade como poeta que lhe divisa a franquia. E respeitar isso. Por conseguinte, a este respeito, nada de pregões.

 

Era adepto do “barroco estético”, uma demanda que se inseria numa busca de antropofagia cultural baseada numa mestiçagem identitária, o tal crioulismo que ele sempre procurou. No frontispício do livro Negra Azul (1999), que é uma espécie poética de “Cahier d´um retour au pays natal” (Aimé Césaire dixit), fica explicitado: “retratos antigos de Lourenço Marques de um poeta barroco.”

 

Se é facto que retoma versos da sua dissensão (“bayete-bayete-bayete / à Kapulana vermelha e verde, / se subsistirem no tempo / capulanas de várias cores”), o que temos neste “regresso” é uma poesia sobre uma “cidade, na alucinada posse / que supera o irreal”, na “babilónia de gozos / frágeis luzes e amores”, ou “na solidão que o Infinito / transporta”, “o despertar do fogo e da orgia”, de quem “viveu teu corpo / por dentro” –  “a erótica dimensão da noite”.

 

“O coração da cidade bate

nesta Baixa plural

Polana e Malhanga, Mafalala

e Malanga,

Zélias e Detinhas, Júlias

de grandes decotes e brincos.”

 

Ou ainda estes versos: “Olhos / de teu corpo / que deslizam dentro / da cidade / viagens pelas ancas / pelas pernas / fogos da cripta / que subvertem / o desejo.” É o retorno ao “mais feminino pôr-de-sol da minha infância”: “minhas mãos entre teus seios / tuas mãos em meus infernos / devaneios, girassóis.” Há, nesta poesia, de Negra Azul, essa “temporalidade sem tempo”, esse “espanto”, “como se adivinhasse as coisas / ávido de liberdade, corpo interior solto, sereno / face à morte, seio, exuberância, gozo em mim dos deslimites”.

 

É essa a ideia com que ficarei da sua poesia inicial, de um certo exotismo e de uma ideia erotizante de uma realidade muito mais problemática, complexa e inquietante. Provavelmente, uma ideia inexacta ou imperfeita. No livro de homenagem ao seu amigo de geração, o grande poeta Reinaldo Ferreira, Virgílio de Lemos é mais metafísico e estabelece um vasto diálogo com poetas importantes na sua formação e afirmação. Com Reinaldo e na companhia do psiquiatra Fernando Ferreira liam poetas como Rainer Maria Rilke. Mas também Goethe (Wherter), Joyce ou Proust.  

 

“Senta-te aqui Ricardo Reis entra neste jogo

e charla de café, ajuda-nos a irmos mais longe,

superar sonhos gregos e persas, e atravessar

gentes e línguas de oceanos, portos e ilhas.”

 

Este poema parece denunciar a sua ideia de “barroco estético” e aquilo que então Virgílio prossegue como ideário poético. Cito ainda do mesmo poema:

 

“Rangel meio chinês e grego, africano tal

os Nicolaus, Rui Guerra e Zé, afro-alentejanos

Cabo-Verdes e Algarves, Carlos Maria e

eu, Virgílio, vindos da malandragem, libertinos.”

 

Virgílio de Lemos irá escrever no fim do texto: “nós que vadiamos na descontracção de surrealismos, / somos lusismos, cubismos e dadaísmos das artes.” Fernando Pessoa, disse-o, mas também Cesário Verde, Sá Carneiro, Padre António Vieira, Guerra Junqueiro, Jorge de Sena, Camões – safra dos portugueses –, os brasileiros Manuel Bandeira, Cecília Meireles ou João Cabral de Melo Neto, ou poetas como Cavafy, Borges, Mallarmé ou T. S. Eliot fazem a estiva da sua busca. Mas também a música, a pintura, a poesia, a língua. E sempre a presença de Reinaldo Ferreira.

 

Durban, Lisboa, Paris, Cidade do México, Alexandria, Ibo e Zanzibar. Cidades, ilhas, destinos da sua poesia, da sua metafísica e do seu incessante desassossego. Mas sobretudo esse mito chamado Ilha de Moçambique. Chega à ilha pela primeira vez em 1952, na companhia de Gilberto Freyre, com quem discute uma identidade culturalmente mestiça, crioula, apontando-lhe imperfeições no seu luso-tropicalismo.

 

“A cultura específica das ilhas é herança barroca”, declarará mais tarde. Ilha de Alberto de Lacerda (onde nasceu e escreverá versos iridescentes) e de Rui Knopfli (autor dessa belíssima A Ilha de Próspero), ilha que será de Luís Carlos Patraquim ou Eduardo White, anos mais tarde, ilha que fora de Camões ou Jorge de Sena, quatro séculos depois, sempre numa invenção poética, numa celebração da língua e da sua mitologia de exílio.

 

“ilha

que dorme na utopia

pródigo mito

da poesia.”

 

Estes versos estelares pertencem a Ilha de Moçambique – A língua é o exílio do que sonhas (1999). Ali, onde evoca “os deuses do mar à minha volta”, naquele lugar onde não foge do erotismo (“teu corpo é bruma” ou “sou erotismo / na vulcânica geografia”), onde vive um “incandescente êxtase”, uma “insondável magia”:

 

“Eu sou pássaro migrante,

das ilhas-mulheres singulares

nenhum corpo igual a outro corpo,

face ao mar o irreal navega.”

 

Ali onde o poeta viaja e se declara: “sou português swahili / sou celta judeu / não confúcio mas buda”, sempre “no erotismo entre oceanos e / palavras”, “na pátria do desejo”. Na mesma ilha onde homenageia Camões e Pessoa nestes belos versos:

 

“A ilha de amores é a casa dos mortos, a nau

habitada de infernos, tumultos, espantos, a gruta

dos fogos da alma e obsessões do corpo, culto

das rotas interiores. Solidão, medo e fim, erras

na bruma, sol e sedas do teu corpo, silêncios

e gritos, inventário de mitos, a beleza em busca

de si mesma, confiante, inquieta, fulgurante e neutra

interrogando-se acoplada ao destino em ti.”

 

Canto desse “mar tão exoticamente azul” e dessa “sensual sensação na sedução azul”, nessa “própria luz feita desejo”. “Nasceste do sonho e pelo sonho morrerás / na revolução que tu próprio estrangulaste. / Foste a Europa, o Império, o mundo foste / na mais erótica irisão do que inventaste.”

 

Se há uma poesia do Índico, se há uma tradição poética desse destino Oriental, desse Moçambique e desse Oceano, dessa viagem que inclui espaços e ilhas, destinos e espantos, que o poeta exprime nas suas várias línguas, que o poeta sagra e consagra em francês, inglês ou em português, nessa busca assombrada do mar e da sua fortuna – Para fazer um mar (2001) – , é nessa mesma poesia que Virgílio de Lemos faz a sua perquirição, na sua “osmose”, “no diálogo com os mortos”, na “luz oriental da volúpia”. Mas também o inventário das suas ilhas, dos seus mitos e duendes, da sua Ibo matricial, mas tudo o que “antropofagicamente” desencadeia a sua nostalgia poética, passional e iminentemente índica.

 

Essa nostalgia poética exprime-se e imprime-se luminosamente nesse Eroticus Moçambicanus (1999) demandado no Brasil e pelo entusiasmo de Carmen Lúcia Tindó. Ou em: Lisboa, oculto amor (2000). Do seu longo e obstinado exílio francês: Object à trouver (1988), L´obscene pensée d´Alice (1989) e L´aveugle et l´absurde (1990), livros que suspendem quase trinta anos de silêncio. Duarte Galvão, Bruno dos Reis ou Li Lee Yang, numa heterónima e numa incessante inventiva e busca de si próprio, “a cor, o traço, o som e o gesto”, da sua liberdade e da sua poesia, da sua alquimia, da sua rebeldia, da sua paixão, da sua aventura, do seu gozo e da sua solidão. “O existir feito / deserto e / caos”.

 

“Serei em tudo “barroco estético” ou nada.

Na fragilidade de palavras e silêncios,

Serei espaços de deslocação,

desconstrução, desenraizamento,

universalidade no singular e plural,

respiração no seio da tragédia

ficção e sonho.”

(Virgílio de Lemos, A Dimensão do Desejo)  

 

KaMpfumo, 6 de Dezembro de 2023

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