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terça-feira, 21 novembro 2023 07:10

EDUARDO WHITE, 60 ANOS, escreve Nelson Saúte

Escrito por

“porque cedo me deram a poesia, essa voz cândida, funda, pela qual empobreço escrevendo versos”

 

Eduardo White (Os Materiais do Amor seguido de O Desafio à Tristeza)

 

Eduardo White foi, provavelmente, entre os poetas da minha geração, aquele que levou ao extremo o ideário da poesia – da verdade, da liberdade, da justiça e do entendimento – e aquele que viveu ao limite a ideia romântica de ser poeta. Era talentosíssimo, o mais talentoso dos poetas que gravitaram à volta da “Charrua” e que fizeram dos anos 80 o arrimo da sua poesia, da sua rebeldia e da sua afirmação. Era um vulcão em permanente erupção. Um poeta empolgadíssimo que punha nas palavras o acento da sua intrépida paixão pela vida, o seu amor proclamado pela mulher, pela viagem, pelo Índico, pelo Oriente. Mas também poesia sublinhada (ou sublimada) pelos seus fantasmas, as suas aflições ou os seus tormentos.

 

Indubitavelmente, o mais talentoso, o mais instigante, o mais inventivo, o mais enérgico, o mais fecundo entre todos nós. Era também luminosamente obscuro. Ou obscuramente luminoso. Escreveu hinos, versos, epifanias. Foi visitado pelos deuses. Testemunho disso: as inspirações, as visões, as centelhas. Escreveu imenso. Trabalhou duramente. Era também um obstinado esteta. Um artífice da palavra. Era fervoroso, vibrante, arrebatado. Poderia ser, ao mesmo tempo, obcecado, truculento, feroz. Escreveu soberbamente. Era um poeta encantado pela língua, pela poesia, pelo destino e pela loucura de ser poeta. Viveu em permanente sobressalto. A sua poesia era um sobressalto continuado. Era lírico, engajadamente lírico. Os problemas do seu tempo e da sociedade não lhe eram alheios, antes pelo contrário. Era um poeta do amor que não virava costas à realidade social. Não suportava as desigualdades, aviltava a mediocridade. Cauterizou sempre a mediocridade e foi cortante com a mediania que trespassa o devir moçambicano.

 

Eduardo White fez da poesia um acto de combate. Um acto de rebeldia. Um acto de liberdade. Ele propugnava a liberdade livre. Um poeta tem de ser isso mesmo: um homem livre. Livre diante das palavras e do seu tempo, e dos homens e do seu tempo. A liberdade poética de Eduardo White está na origem de algumas das mais belas páginas da nossa lírica. Inscreve-se entre os que estão no cume dessa invenção e dessa aventura de ser moçambicano. Mas era, simultaneamente, um grande poeta da língua portuguesa.

 

A sua vastíssima obra iniciou-se com um livro que foi uma pedrada no charco. Amar sobre o Índico, editado em 1984 pela Associação dos Escritores, tinha o autor 21 anos, em que escreve “Felizes os homens / que cantam o amor. // A eles a vontade do inexplicável / e a forma dúbia dos oceanos”. Aqui parece produzir-se um ideário e um programa. A esta distância, estes versos parecem pacíficos. No entanto, nos anos em que foram escritos, em que deram corpo, voz e rosto a um poeta (Eduardo White), não poderiam ser mais resolutos. Vivíamos os tempos da revolução e numa circunstância em que os seus prosélitos não anteviam outra possibilidade senão os amanhãs que cantam.

 

White e a sua geração denegaram a incumbência de cantar a revolução, ou até a luta armada. Não se assumiram ufanos, nem fizeram da Pátria um destino ou uma desinência, mas sim a poesia e a liberdade do indivíduo num tempo e num contexto histórico em que o assomo colectivo e colectivista não admitia nenhuma contradita. Escrever sobre o amor era, por assim dizer, uma sedição.

 

O seu segundo livro decorre de uma contingência: o hediondo massacre de Homoíne, em 18 de Julho de 1987. A nossa amnésia condescende até com a barbárie. Somos um povo resignado. Num magro volume, de um poema em oito partes, justamente intitulado Homoíne (1987), Eduardo White recusa o anátema: “Os nossos mortos são muitos, / são muitos os nossos mortos / dentro das valas comuns” e este seu gesto é (também) a negação do “pássaro lento do esquecimento” dessa “morte explodindo como um tiro” e desse “impiedoso silêncio”: “Mas o que os mortos não sabem nem imaginam, / é que no coração dos que ficam, no coração dos vivos / inteiros permanecem e decididos VIVEM.”

 

O terceiro livro, obra do seu amadurecimento, surge em 1989: O País de Mim. O amor, de novo: “Eu já amava e escrevia versos / nas paredes do útero da minha mãe”: “Assume o amor como um ofício / onde tens que te esmerar”. A mulher (“MULHER! / Essa palavra que só secreta / cabe na boca / e que apetece tê-la, constantemente, / a meio da língua”). O corpo (“Teu corpo é o país dos sabores” ou “teu corpo essa casa feliz”). As palavras: “Não gosto do pudor de certas palavras”. O Índico: “És o Índico – numa tarde quente de Janeiro”. A morte. “Quando morrer / quero fazê-lo sem rumor algum, / sem ninguém que me chore / ou a quem doa”.

 

A morte, depois de Homoíne, irrompe brutalmente na poesia de Eduardo White. Neste livro, é vista como “nocturna ave”. A ave e o voo serão sintagmas importantes da obra subsequente. Mas a morte aqui é impressiva: “Diário é também / o ofício da morte neste país / essa gangrena de fome e de sede / e de desentendimento”. Quase quatro décadas depois, estes versos permanecem dilacerantes, verdadeiros e actuais. Perturbadores, avassaladores. Diria que este livro – O País de Mim – está nessa bissectriz entre o amor e a morte: “E aqui estamos, amor, vivos / na nossa morte”.

 

Em 1992, Eduardo White publica Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave. Retorna à prosa poética que publicara esparsamente nos meados dos anos 80. Na “Gazeta” da ínclita Tempo haveria de publicar, naqueles ominosos anos, um belíssimo texto inédito em livro: “O país de Inês” (1986). No tempo em que lhe era hodierno, o poeta apostrofa: “Eu não posso morrer qualquer dia com todo este desconhecimento sobre as aves. Peço licença à poesia. Quero-as voando em meus versos e também um mar e dois ou três navios que se achem por perto que desmereça toda a beleza disso deixai que escreva pois a vontade prevalece e queima”.

 

A morte ronda este livro. Mas também a fuga à realidade obsidiante. “Podemos sonhar sem limites mesmo que a insónia nos castigue”. A vontade da escrita: “Uma mão relampeja na casa da escrita.” “Escrever é uma droga antiga, / uma bebedeira que queima com lentidão / a cabeça, / traz as luzes desde as vísceras, / o sangue a ferver nas vias tubulantes, / traz a natureza estimulante das paisagens / que temos dentro.” A loucura de ser poeta (“Dá-me aquela secreta mão de Deus” ou “este desejo irrevogável do meu poeta”). O dom do voo e a oferenda da escrita: “Voar é uma dádiva da poesia.”

 

A recusa da morte. A morte, sempre. A morte interior. Ou, se quisermos, o milagre da vida, em anteposição. “Voar é não deixar morrer a música, a beleza, o mundo e é também fazer por escrever tudo isso”. Os assombros do poeta. Os pavores do poeta. Os seus desesperados. Os seus “sonhos terríveis”. Os espantos do poeta.

 

Os Materiais do Amor seguido de O Desafio à Tristeza (1996) traz os sinais da viagem ao Oriente: “Amo-te sem recusas e o meu amor é esta fortaleza, esta Ilha encantada, estas memórias sobre as paredes e ninguém sabe deste pangaio que ao Norte e na Ilha traz um amante inconfortado.” Mas é também o lugar “onde igualmente possa chorar a minha trágica fatalidade de poeta”. Ou o lugar da beleza, da poesia e da mulher: “tu que és uma mulher e explodes pela beleza de ser isso.”

 

Eduardo White: “Todos os dias enlouqueço de uma loucura qualquer, de qualquer sentido doente que sobre o meu sangue se curva. Todos os dias tenho perguntas para tudo e não tenho respostas nenhumas e a minha mente, que é carnal de medo e memória sem propósito, não descansa.” Ou: “A vida que é um suposto mal entendido como, aliás, eu próprio.” Ou ainda: “Estou cansado de trazer este peso comigo, este abismo para onde me atiro”. Isto é terrível. Mas o que vem a seguir é ainda mais assombroso: “Por isso é que deixei que os versos me desvanecessem a juventude até onde podiam”.

 

White: “Por isso é que não existo como um número e o Estado não me dá importância devida. Por isso é que sou liberal só nas coisas em que tenho que ser liberal. Por isso é que a polícia me vigia. Por isso é que não há tranquilidade para quem se põe a escrever. E por isso também é que pergunto porque escrevo e que sentido é que terá a escrita dessa maneira que ninguém a lê. Por isso é que as respostas não existem e eu estou aqui a matar-me sem razão aparente para o fazer”.

 

A resposta a esta tremenda questão encontrá-la-emos no livro ulteriorJanela para Oriente (1999) – “Escrever é uma razão forte, é uma audácia profunda”, “Não quero outra coisa senão este mistério em que me invento”. O poeta estabelece nesta obra outro cume da sua invenção. “Para que precisa um poeta de glória quando não pode escrever?” Este é um belíssimo hino à condição do Índico e da vontade do Oriente. Mas também um solilóquio de um poeta aturdido com o destino do mundo e do homem. Um homem solitário no interior da poesia. “Mas eu não suporto a solidão, reconheço-o , não suportar estar só com tanta clareza, com tanta consciência.”. Um poeta que reconhece a realidade contraditória em que vive. “No fundo o Oriente é o desejo transbordante de tão súbito desespero, uma fuga ao enclausuramento.” “O Oriente é também uma ambição”: “A janela do quarto de onde escrevo é de um esplendor que dá vontade de saltar por ela”.

 

A poesia de Eduardo White torna-se mais ontológica, reflexiva, doutrinária e questionadora. Em Dormir com Deus e Um Navio na Língua (2001) permanecem as inquietações: “Vivo intensamente todos os dias esse milagre de não parecer estranho o que se parece estranho em mim, porque posso perguntá-lo, tentar conhecê-lo porque posso traduzi-lo traduzindo-me”. A língua é também um território de pertença: “Preciso dela, pois é tudo o que tenho como ferramenta e como trabalho, como propósito e intuição. Escrevo para que se entenda”. White amou implacavelmente a língua, a sua língua. Amou como poucos a língua portuguesa: “Doer-me-ia se tivesse que viver exilado dela, morreria se a ela fosse impossível voltar.” Não há muitos como ele, entre nós, que se tenham elevado tão assim no canto desta língua: “Tem uma origem divina esta língua quando a pronuncio e me embevece, um bálsamo pra o que choro”. Isto é de uma beleza comovedora. Isto é pungente. Pungentemente belo.

 

Seguem-se-lhe, na estante de autor, As Falas de Escorpião (2002), O Manual das Mãos (2004), O Homem a Sombra e a Flor e Algumas Cartas do Interior (2004), Até Amanhã Coração (2007), A Fuga e a Húmida Escrita do Amor (2008), Dos Limões Amarelos do Falo às Laranjas Vermelhas da Vulva (2009), A Mecânica Lunar e a Escrita Desassossegada (2012), O Poeta Diarista e os Ascetas Desiluminados (2012) e o epílogo Bom dia, Dia! (2014). De permeio, O Libreto da Miséria (2010). As mesmas inquietações. O mesmo destino de ser poeta. “Um poeta não é para se perceber, é para sentir-se” (O Manual das Mãos). A aspereza desse fatalismo. “Aqui ninguém liga peva à poesia. Nem à poesia e nem a outra coisa nenhuma que cheire a cultura.” Canta o destino do poeta: “Nos poetas cada palavra tem o seu milagre”, mesmo diante da realidade acerba. Aliás, sobretudo diante da rudeza ou acrimónia da realidade.

 

Diria, como súmula, que o poeta Eduardo White contraditou, obstinadamente, essa realidade brutalmente áspera, agreste, rude, dura, insensível, severa, insensível. Aliás, se quisermos intuir o sentido da sua poesia, do seu alto canto e do seu destino foi uma implacável contestação dessa realidade, foi uma objecção permanente, um questionamento, uma indagação e uma demanda constante. Um poeta amante da vida e do amor. Amante da sua loucura de ser poeta.

 

Poeta apaixonado, arrebatado e arrebatador, efusivo e fervoroso, amante feroz da mulher e do seu corpo, da língua e do seu destino, navegante do Índico e do Oriente, implacável contra a morte e esse “pássaro do esquecimento”, oficiante da língua e esconjuro da morte, ele divisou a vida e a fortuna da poesia como a “vontade do inexplicável” e “a forma dúbia dos oceanos”.

 

Amou a língua e os poetas. Amou Rui de Noronha ou Jorge Viegas, José Craveirinha ou Glória de Sant’Anna, leu Rui Knopfli ou Luís Carlos Patraquim, leio-os com método, foi indefectível de Sophia de Mello Breyner Andresen, Herberto Helder, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Vinícius  de Moraes ou Fernando Pessoa, viveu a loucura de ser poeta. Aliás, Jorge Viegas, seu conterrâneo, escrevera: “No meu país / a única forma de liberdade permitida / é a loucura”. Eduardo White buscou incessantemente essa liberdade e essa loucura. Viveu como poeta, amou como poeta, morreu como poeta. Teve essa coragem e essa afoiteza. Foi capaz da contradita, da sedição. A poesia foi nele um gesto de audácia. Os versos do poema 60 de O País de Mim parecem inscrever, na pedra angular do tempo, esse destino indesmentível de poeta e esse tom irrevogavelmente elegíaco: “Estamos na morte com o mesmo encanto e com a mesma mestria com que estivemos na vida.” São premonitórios. O poeta declinaria a 24 de Agosto de 2014, aos 50 anos. Viveu até ao fim com estrépito. Celebrou sempre o milagre da vida. Com ímpeto, com arroubo, com veemência. Recordo-o assim: a sua coragem e a sua euforia de ser poeta. A sua alegria, também. A sua fúria. A sua bebedeira até ao fim, embriagado pela vida e pelo amor. Tinha nascido, em Quelimane, a 21 de Novembro de 1963, passam hoje, precisamente, 60 anos.

 

Cidade do Cabo, 21 de Novembro de 2023

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