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terça-feira, 20 dezembro 2022 07:37

O Decenário do Ensino Superior: Do Laissez-Faire à (des)regulação neoliberal 1993 - 2003

Escrito por

Patrício Langa[1] e Jorge Ferrão[2]

 

O Laissez-faire é um termo da língua francesa que simboliza o liberalismo económico. Na acepção mais radical do capitalismo, o neoliberalismo, o mercado funciona livremente sem ingerência do Estado. O papel do Governo, em representação do Estado, é mínimo. O Governo estabelece o quadro legal, normativo e regulatório suficiente para proteger os direitos de propriedade privada. O princípio da mão invisível, termo cunhado pelo economista clássico Adam Smith, determina a auto-regulação do mercado criando as condições de possibilidade para a troca livre de bens e serviços. A recente história social e económica, em particular depois das crises económicas de 2007 e 2008, seguida da intervenção reguladora dos governos, veio mostrar tanto a ilusão da perfeição da invisibilidade da mão do mercado (laissez faire) como a imperfeição da excessiva regulação do Estado. 

 

A expressão laissez faire, mais conhecida e usada do que outras quase sinónimas como laissez aller, laissez passer, significam literal e respectivamente “deixar fazer”, “deixar ir”, “deixar passar”. A subida ao poder de Margaret Thatcher (a dama de ferro), como Primeira-Ministra da Inglaterra, em 1979, em representação do Partido Conservador, e de Ronald Reagan como Presidente dos Estados Unidos da América, em 1980, em representação do Partido Republicano, dois promotores da ideologia neoliberal do mercado livre e da mão invisível, popularizou os programas de reformas macroeconómicas e financeiras com vista a promoção da privatização de bens e serviços públicos sociais como a educação, a saúde e até a defesa.  

 

Em Moçambique, as reformas macroeconómicas foram precedidas de reformas políticas profundas com a aprovação de uma nova Constituição da República, em 1990. Com a morte de Samora Machel, foi a enterrar também o utópico projecto do experimento socialista de sociedade que abordamos no decénio anterior. O que alguns dos nossos pensadores, como Severino Ngoenha e José Castiano, referem como a Segunda República, nasce no regulado do segundo Presidente de Moçambique, Joaquim Alberto Chissano. Cognominado o pai do ‘deixa-andar’, ou ‘deixa-fazer’, Chissano e seu Governo representam, simbolicamente, o período do laissez faire da história política, social e económica do país.  

 

O laissez faire no ensino superior

 

A reforma económica e financeira conhecida como Programa de Reabilitação Económica (PRE) e Social (PRES), ainda que iniciados após a negociada adesão do país ao financiamento e disciplinarização fiscal pelas instituições de Bretton Woods, Banco Mundial (BM) e Fundo Monetário Internacional (FMI), em meados de 1980, ganharam corpo após os acordos de paz que puseram fim à Guerra Civil dos 16 anos entre o Governo da FRELIMO e a RENAMO, em 1992, e a realização das primeiras eleições gerais multipartidárias, em 1994.

 

No ensino superior, a implementação da primeira Lei 1/93 veio abrir espaço para o surgimento das primeiras iniciativas de provisão da educação superior por entidades não públicas. Assim, podemos falar de diferentes fases, estágios, ondas, ou até gerações de instituições de ensino superior (IES) em Moçambique.

 

A origem das primeiras IES privadas

 

A primeira geração de IES, como referimos, gerou apenas uma instituição, os Estudos Gerais e Universitários de Moçambique – EGUM (1962), ainda durante o período colonial, mais tarde elevada ao estatuto de universidade e renomeada Universidade de Lourenço Marques (ULM) em 1968. Após a independência do país, a ULM foi transformada em Universidade Eduardo Mondlane (UEM) em 1976. A segunda geração de IES surge apenas nos anos de 1985 e de 1986, com a criação respectivamente do Instituto Superior Pedagógico (1985), actual Universidade Pedagógica, e o Instituto Superior de Relações Internacionais (1986), actual Universidade Joaquim Chissano. A terceira geração introduz, pela primeira vez, instituições de ensino superior privadas. Este texto aborda as IES até a terceira geração, sendo que as subsequentes irão ser abordadas nos próximos decénios. As primeiras entidades particulares a criarem IES privadas incluem aquelas de natureza secular empresarial e as de natureza religiosa, todas se propondo a prestar serviço público. 

 

A actual Universidade Politécnica (A Politécnica) foi a primeira instituição de ensino superior privada e secular a entrar em funcionamento em Moçambique. Inicialmente designada Instituto Superior Politécnico e Universitário (ISPU), foi criada através do Decreto n.º 44/95, de 13 de Setembro. No entanto, o início do seu funcionamento deu-se apenas no ano académico de 1996/97 quando foi autorizada através da Resolução n.º 16/96, de 6 de Agosto.  

 

No mesmo período, a SOPREL – Sociedade Promotora de Ensino e Serviços Limitada – fundou o Instituto Superior de Ciências e Tecnologia de Moçambique (ISCTEM), aprovado pelo Decreto n.º 46/96, de 5 de Novembro. O Instituto Superior de Transportes e Comunicações (ISUTC) foi instituído pela Transcom, Sociedade Anônima. A sua criação foi aprovada pelo Decreto n.º 32/99, de 1 de Junho de 1999, e a autorização de entrada em funcionamento pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 33/99, de 1 de Novembro de 1999. Iniciou com as Licenciaturas no ano lectivo 2000-01, precedido de um Semestre Zero no início de 2000. Estas são as primeiras IES privadas que surgiram no país, particularmente tendo promotores de cariz privado-empresarial.

 

As primeiras IES de cariz religioso

 

A Igreja Católica de Moçambique, detentora de um património de infra-estruturas sociais considerável, parte da qual nacionalizada a 24 de Julho de 1976, negociou a recuperação do seu património que reverteu a favor do estabelecimento da Universidade Católica de Moçambique (UCM), em 1995, na província de Sofala. Este marco teve um significado simbólico assinalável, pelo facto de a UCM ter levado o ensino superior privado para fora da capital do país pela primeira vez na história, especialmente através de uma entidade privada.

 

Consta que a ideia de criação da UCM surgiu com Dom Jaime Pedro Gonçalves, Arcebispo da Beira. Dom Jaime e outros membros distintos da Cidade da Beira, tal como o antigo governador de Sofala, Francisco de Assis Masquil, propuseram a criação de uma universidade com enfoque nas questões da promoção da paz e reconciliação nacional.

 

Assim, a UCM foi fundada oficialmente em 1995 como uma instituição de ensino superior privada através do Decreto n.º 43/95, de 14 de Setembro. A UCM, portanto, é uma instituição da Conferência Episcopal de Moçambique (CEM), com sede na cidade da Beira, província de Sofala. A UCM, assim como as demais IES, depois se expandiu através de delegações provinciais. Em Agosto de 1996, a UCM abriu uma Faculdade de Economia e Gestão (FEG), na Beira, e uma Faculdade de Direito (FADIR), em Nampula. Subsequentemente, criou a Faculdade de Ciências de Educação, actualmente Faculdade de Educação e Comunicação (FEC)  em Nampula (1998), a Faculdade de Agricultura (FAGRI)  em Cuamba (1999), a Faculdade de Medicina, actualmente Faculdade de Ciências de Saúde (FCS), na Beira (2000), a Faculdade de Gestão de Turismo e Informática (FGTI)  em Pemba (2002), o Centro de Ensino à Distância na Beira (2003) e a Faculdade de Engenharia (FENG), a mais recente, em Chimoio, no ano de 2009. A UCM abriu, ainda, três delegações: uma em Tete (2008), outra em Quelimane (2009) e a terceira, de Informática, na Beira (2010).

 

No Decénio 1993-2003, juntaram-se à família das IES também a Universidade Mussa Bin-Bique (UMB) fundada em 1998. Se as autoridades eclesiásticas cristãs viram na criação da UCM a materialização da ideia de inclusão e expansão do ensino superior para além da capital do país, as autoridades islâmicas, predominantemente no Norte do país, juntaram-se ao movimento criando a Universidade Mussa Bin Bique, abreviadamente designada por UMB. A UMB estabeleceu-se como uma instituição privada de ensino superior criada pelo Centro de Formação Islâmica, ao abrigo do Decreto n.º 13/98, de 17 de Março, tendo a sua sede na cidade de Nampula.

 

O primeiro passo estava dado para o início da expansão do ensino superior privado no país. O contexto regulatório do laissez-faire permitia que, com algum esforço, se pudesse criar uma IES. No entanto, ainda havia alguma timidez por parte das entidades promotoras, mas este cenário prevaleceu apenas no decénio em análise.

 

Neste sentido, podemos falar tanto de uma primeira geração de IES privadas seguida de novas fases onde a pujança para a criação de outras aumentou, como também das exigências, em termos de requisitos, à medida que as alegações de baixa qualidade entravam para a ordem do discurso. 

 

Com o surgimento das IES privadas, o subsistema do ensino superior começou um processo de diversificação e de diferenciação. Destaca-se aqui a diversificação das ofertas de cursos e programas e a diferenciação em termos do tipo de IES, não somente entre públicas e privadas mas também de carácter, estas últimas promovidas por entidades religiosas e por sociedades empresariais. Timidamente, começou a surgir o debate sobre a intenção lucrativa ou não-lucrativa das entidades promotoras, dado que se percebia que, nalguns casos, o investimento para a criação das IES não permitia o provimento de condições mínimas para as actividades do ensino superior.

 

Com efeito, parte significativa da informação sobre as IES neste texto foi obtida com recurso às suas páginas da Internet (vulgo website). É notório como algumas IES com mais de 20 anos de existência, algumas oferecendo formações até ao nível do doutoramento e outras, inclusivamente, em áreas relacionadas com a informática, não dispõem de uma página web funcional, para falar do mínimo. A facilidade de se criar uma IES levou a alguma banalização do ensino superior, sem deixar de referir que nas IES públicas também surgia e se consolidava a expansão por via da abertura de delegações e da abertura do regime pós-laboral. As consequências da expansão desenfreada com um pendor para a comodificação, comoditização e tratamento da educação como um produto comercializável serão escrutinadas nos próximos textos desta série.

 

O relatório da comissão Comiche

 

O relatório da Comissão Comiche da revisão do ensino superior em Moçambique deve ser um dos documentos mais referenciados, mas pouco difundido ou até mesmo indisponível ao público. Um de nós já entrevistou vários actores-chave e personalidades que fizeram parte dos trabalhos da comissão e que o citam como um documento fundamental para entender a reforma do ensino superior, particularmente no decénio após a virada do milénio. No entanto, ninguém tem o documento disponível.

 

Entre 1997/8, a comissão foi constituída e encarregada pelo Presidente Joaquim Chissano para repensar o ensino superior e o papel dos diferentes actores públicos e privados face ao crescente discurso e a preocupação com a necessidade da expansão sem comprometer a qualidade.

 

Consta que é das recomendações da Comissão que o novo Governo saído das eleições gerais de 1999 fundamentou a criação do primeiro Ministério para a Coordenação do Ensino Superior, Ciência e Tecnologia (MESCT), cuja pasta foi assumida pela académica Lídia Brito, saída da Vice-Reitoria da UEM. Foi sob tutela do MESCT que se preparou o primeiro Plano Estratégico do Ensino Superior 2000-2010, no qual os pressupostos da expansão, diversificação e diferenciação, bem como dos mecanismos de garantia de qualidade, foram lançados.  

 

O trabalho da criação de um quadro legislativo, normativo e de regulação, traduzido num plano estratégico e operacional de desenvolvimento do sector, conduziu a necessidade de revisão da primeira Lei do Ensino Superior 1/93, de 24 de Junho, e a aprovação de uma nova Lei, a 5/2003, de 21 de Janeiro. Os instrumentos regulatórios da nova lei abriram espaço para o surgimento da terceira geração de IES e uma nova onda de expansão, diversificação e diferenciação do sistema que iremos abordar no decénio 2003-2013.

 

(Continua*)

 

[1] Sociólogo, Professor de Estudos de Ensino Superior

[2] Reitor da Universidade Pedagógica de Moçambique

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