Beatriz Buchile tinha razão: os americanos não gozavam de jurisdição sobre o caso. Adriano Maleiane deu um empurrão sem precedentes à defesa de Boustani, indo mesmo no sentido contrário ao do Conselho Constitucional (e da própria PGR, que processou em Londres o Crédit Suisse, seus banqueiros, a Prinvinvest e seus gestores de topo). O melhor destino para Manuel Chang pode ser Maputo.
Eis três aspectos que agora emergem mais claramente das “águas turvas” do julgamento que ilibou, Jean Boustani, o vendedor de barcos libanês da Privinvest, um dos mentores do calote que defraudou o Estado moçambicano em mais de 2 mil milhões de USD. “Carta” contextualiza a absolvição de Boustani tendo em conta aspectos legais relevantes e a postura e provável sina de alguns actores incontornáveis.
A questão da jurisdição
A defesa de Jean Boustani, a firma Willkie Farr and Gallagher LLP, representada pelos advogados Michael S. Schachter e Randall Jackson, bateu-se desde o início numa coisa: se houve crime, esse não foi cometido nos EUA. Ou seja, Whashington não tinha legitimidade jurisdicional para acusar Boustani. O argumento foi esgrimido ainda nas primeiras alegações por escrito em Agosto. Mas nunca foi atendido pelo Juiz Kuntz.
Durante o julgamento, a defesa voltou à carga e, nas alegações finais, a 19 de Novembro, Randall Jackson fez questão de “cansar” o jurado com essa ladainha. A estratégia da defesa de apresentar as planilhas de suborno da Privinvest enquadrava-se nesse desiderato. Alegar que Boustani pagou (como gorgeta) funcionários moçambicanos (a pedido destes) e banqueiros do Credit Suisse, mas nunca defraudou os investidores americanos.
Boustani confessou práticas de corrupção que nunca se enquadrariam nos tipos-legais de crimes constantes do FCPA (Foreign Corruption Pratice Act). Pagou subornos a moçambicanos ávidos de encherem o bolso, mas o fluxo desse dinheiro não passou pelo sistema financeiro americano. O jurado deu-lhes razão.
Beatriz Buchile
Depois que o debate sobre a extradição de Manuel Chang tomou conta da agenda mediática, no primeiro trimestre deste ano, Beatriz Buchile deixou claro nalguns círculos que fazia mais sentido que este caso fosse julgado em Moçambique e não nos EUA. “Nós é que temos jurisdição”, frisava ela. Ninguém lhe deu ouvidos. E, pelo contrário, foi veementemente criticada por “querer trazer o Chang de volta”. Ela chegou a solicitar aos EUA apoio com “provas” para que um julgamento em Moçambique tivesse sucesso. O Departamento de Estado fez-lhe, também, ouvidos de mercador. Agora, com o veredicto que iliba Boustani, parece claro que Beatriz Buchile estava certa.
Maleiane I
Nos derradeiros dias do julgamento de Jean Boustani, na segunda semana de Novembro, a defesa usou de um trunfo que lhe tinha sido ofertado pelo Ministro da Economia e Finanças, Adriano Maleiene. Para mostrar ao jurado que os investidores americanos nunca foram defraudados, nem por Boustani nem por qualquer entidade em Moçambique, a defesa chamou à colação o facto de o Governo de Maputo estar a reestruturar a dívida da Ematum, ter chegado a acordo com mas de 60% dos credores, e ter inclusive pago a primeira tranche dos valores acordados.
E, seguindo as peugadas de Maleiane, a defesa de Boustani desvalorizou completamente o acórdão do Conselho Constitucional de 2018, que considerou a dívida da Ematum e sua garantia soberana como sendo ilegais. Literalmente, tal como Maleiane, a defesa de Boustani “rasgou” esse acórdão. O esforço de Maleiane foi fundamental para Jean Boustani. Interessante!
Maleiane II
Nos últimos dias do julgamento de Boustani em Nova Iorque foram várias as referências a um alegado papel “nocivo” de Maleiane depois que ele tomou posse no cargo de Ministro da Economia e Finanças do Governo de Filipe Nyusi, em princípios de 2015. A ideia de que ele sonegou informação ao FMI e aos investidores, nomeadamente sobre a existência das dívidas da Proindicus e da MAM, quando se fazia um “roadshow” para a reconversão da dívida da Ematum em Eurobonds. Ele viajou para os States na companhia de Rosário, no quadro desse "roadshow".
Alegou-se vivamente que também ele, a par de Boustani, tinha defraudado investidores americanos. Agora com Boustani ilibado, ele (Maleiane) ganha o estatuto de inimputável. Tanto mais que só começou a envolver-se no assunto em 2015, quando todo o calote já estava consumado. Maleiane é uma das figuras que deve ter aberto seu “moet” de reserva, ontem, quando se soube da ilibação de Boustani. O homem pode agora respirar de alívio.
Chang e Rosário
Também Chang e Antonio Rosário podem ter ganho, na absolvição de Boustani, um trunfo em sua defesa, em face da acusação de que são alvo nos EUA. No “indictment” final do Departamento de Justiça, datado de 19 de Agosto, eles vêm acusados dos mesmos crimes que Jean Boustani. Por lógica, é provável que já não haja, nos EUA, caso contra eles. E, por isso, no caso de Chang, o melhor mesmo seria ele ser extraditado para Moçambique, a não ser que uma ida aos EUA contribua para se extrair dele um poucos mais de informação sobre os “podres” da corrupção em Moçambique e seus actores relevantes no quadro do calote.
Nhangumele também
O mesmo se diga para Teófilo Nhangumele. Sua posição é, aliás, agora, mais confortável. Tanto mais que a acusação americana comete sobre ele um erro crasso, ao identificá-lo como funcionário do Estado em Moçambique, falso estatuto veementemente denunciado pela defesa de Boustani.
Imputáveis em Moçambique
Chang, Rosário e Nhangumele não deixam, no entanto, de serem imputáveis em Moçambique. Aliás, o julgamento de Boustani só serviu para mostrar como uns tantos funcionários e cidadãos de um pobre Estado africano se endinheiraram na corrupção, levando todo um país à quase bancarrota. (Marcelo Mosse)