Director: Marcelo Mosse

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terça-feira, 26 março 2019 08:09

Distribuir comida em tempos de crise não é tarefa fácil

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Infelizmente, o ser humano não é tão organizado, sensível e solidário quanto parece. Em 2001, durante as cheias que devastaram a zona centro do país, particularmente os distritos ao longo do rio Zambeze, participei dos trabalhos de apoio aos afectados, como voluntário. Éramos quatro moçambicanos contratos às pressas, por uma organização humanitária americana na cidade de Quelimane, para trabalharmos como tradutores (na verdade, queriam gajos que "tolkavam" um pouco de inglês), mas acabamos fazendo trabalhos logísticos, sanitários (tratar água e ajudar as pessoas a tomarem correctamente os medicamentos) e outros que o momento requeria. Na verdade, fizemos de tudo. O nosso quartel-general era Luabo, na altura, Posto Administrativo do Distrito de Chinde. A partir dali, dávamos assistência aos mais de uma dúzia de centros de reassentamento implantados naquela zona. Foi uma experiência e tanto. 

 

Dizia, então, não somos assim tão organizados e bem intencionados quanto aparentamos ser. Circulam vídeos nas redes sociais que mostram pessoas (aparentemente vítimas do ciclone IDAI) lutando para conseguirem comida ou assaltando armazéns de viveres. E os comentários dizem que aquilo deve-se a demora e má distribuição da comida ou então esquemas de corrupção das equipas de gestão dos bens. NÃO É BEM ASSIM. 

 

A ajuda humanitária é dividida em duas fases: período de cheias e período pós-cheias. A primeira fase é a mais complicada e difícil. Nesta fase ninguém tem certeza que a comida é suficiente para todos. Nem a pessoa que distribui, muito menos os que vão receber. É que neste primeiro período não há números concretos das vítimas, os centros são improvisados e há muita desinformação e desconfiança e, por isso, muito oportunismo. É o período do caos. Gera-se muita ansiedade e insegurança nos beneficiários que acaba gerando nervosismo nos gestores e que, as vezes, acaba em confusão. Pior quando se envolve a Polícia. 

 

Já a segunda fase é mais soft para todos. A vida começa a reerguer-se, os centros estão melhor organizados, já se sabe com exactidão o número de beneficiários de cada centro, os gestores já têm listas dos beneficiários (organizados em homens, mulheres, crianças, idosos, viúvos, órfãos e chefes de família, etecetera). Nesta fase, já se sabe com exactidão as quantidades necessárias para cada comunidade e já há confiança entre as partes. Tudo flui a contento. 

 

Infelizmente, têm havido muitos oportunistas em momentos de crise. Há pessoas que viajam de locais não afectados para criar confusão nos centros de distribuição de comida para venderem os produtos à preços especulativos nos mercados de outros distritos. Eu vivi isso. A comida (arroz, farinha, feijão, óleos, etecetera) que distribuiamos vinham da África do Sul, mas nós encontrávamos nos mercados a venda. Até medicamentos, as vezes. 

 

Os assaltos aos armazéns de produtos muitas vezes não têm nada a ver com a demora na distribuição. As vezes nem é naquele local que os produtos são distribuídos. A desinformação, a fome, a ansiedade, a insegurança, a desconfiança, mas também - muitas vezes - a má fé, contribuem para isso. É claro que também há factores organizacionais dos próprios gestores dos produtos e corrupção. Por isso não consigo julgar os cenários com base nos vídeos que circulam. Seria muita leviandade da minha parte. Não estaria a ser justo. Há muita gente se solidarizando e se entregando para ajudar os nossos irmãos. Há pessoas que deixaram as suas vidas em Maputo, por exemplo, para irem ao terreno para prestarem o seu apoio a custo zero, assim como eu e meus conterrâneos fizemos há dezoito anos. Não é nada fácil. Distribuir comida em tempos de crise não é tarefa fácil. Só quem já esteve no terreno sabe do que falo. Muita calma nessa hora! 

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