“Eu nasci em KaTembe, a 2 de Novembro de 1920, um Domingo, às 11 horas da manhã. A minha mãe chamava-se Jinita Libombo e o meu pai Jeremia Dick Nyaka. Os meus pais conheceram-se em KaTembe, onde ambos cresceram e frequentavam a mesma Igreja. Foi lá que eles se casaram, e tiveram os primeiros dois filhos: o meu irmão Daniel e eu. Tiveram ao todo sete filhos, quatro rapazes e três meninas.”
Nely Nyaka (in “Mahanyela, A Vida na Periferia da Grande Cidade”)
Amadou Hampâté Bâ disse um dia uma daquelas máximas que nos perseguem sempre que há óbitos que devem constar no livro de assentos da nossa memória colectiva: “Quando um ancião morre, é uma biblioteca que queima”. Quis a fortuna que hoje, 6 de Abril de 2024, a Vovó Nely registasse o seu epílogo aos 103 anos. Em 2018, Nely Nyaka, no entanto, desmentiu o fatalismo que encerra o anátema do historiador maliano e legou-nos uma obra decisiva e exemplar: “Mahanyela, A Vida na Periferia da Grande Cidade”). Nela está o testemunho e testamento da sua soberba vida e obra.
A Vovó Nely foi toda a vida uma activista social. O seu activismo social começou cedo, primeiro no seio da Igreja Metodista Wesleyana e, mais tarde, no Instituto Negrófilo (que depois assumiu a designação de Centro Associativo dos Negros da Colónia de Moçambique), organização de que o seu pai foi sócio-fundador. Recentemente, esteve na criação e é uma das mais notáveis dinamizadoras da associação Pfuna, dedicada a mitigar a pobreza e a miséria de crianças órfãs.
No seu livro “Mahanyela, A Vida na Periferia da Grande Cidade” está inscrita a sua longa experiência de vida. O livro é um testamento. Um manancial de valores. Nesta obra ela cartografa não só a sua trajectória individual, mas estabelece um atlas de um tempo e de uma sociedade, a começar pelos seus pais, Jinita e Jeremia, na KaTembe, passando pela então Lourenço Marques (KaMpfumo), fala-nos da vida na periferia (mahanyela: xitiki, bajiyas, machambas e outras formas para ganhar a vida), da casa e os rituais (o namoro, o casamento, a gravidez e parto, o falecimento).
A Moamba e a vida adulta lá nas terras do Sabié. Casara aos 19 anos com Raúl Bernardo Honwana. Raúl, que militou no Grémio Africano nos tempos de Karel Pott, escreveu, em 1984, um livro de memórias. Inspirada pelo exemplo do seu marido, que faleceu em 1994, Nely decidiu também deixar por escrito o seu legado. Nele fala do nascimento dos filhos. A cegueira do filho Raúl. Os tempos duros. Os tempos sombrios. A prisão do marido Raúl. O retorno à Lourenço Marques, a casa de Ximphamanine. A prisão do filho Luís pela PIDE. Os assassinatos políticos. A sordidez do colonialismo no seu estertor.
O livro relata-nos os alvores da Independência, do 7 de Setembro, o Governo de Transição, fala-nos do entusiasmo e da euforia desses tempos, de Samora Machel, dos erros e dos excessos da revolução, como a nacionalização das barracas e casas de madeira e zinco, da Operação Produção, do seu tempo como Juíza eleita, das transformações sociais, da língua e cultura, das novas práticas e das narrativas e brincadeiras da nonagenária com o seus netos e bisnetos. Nessas lengalengas, preferidas pelos netos e bisnetos, cada frase contém uma pergunta (“U ma?” – Quem és tu?), e uma resposta (“Ni Nwamatxola-Txolana” – Sou o Nwamatxola-Txolana”) e o jogo prossegue entre perguntas e respostas do mesmo género.
Estas memórias percorrem uma longa e enriquecida vida de uma extraordinária personagem deste século moçambicano, mulher dotada de uma memória prodigiosa, exemplo de probidade e repositório de valores. A sua maior obra é o exemplo e o repositório desses valores que nos deixa como dádiva. Esse foi o grande dom da sua vida. O seu génio. O seu grande mérito. Uma vida árdua, laboriosa, dura. Mas ela, sempre obstinada. Perseverante, tenaz.
Profunda conhecedora de Lourenço Marques (Maputo) e, mais particularmente, dos seus bairros periféricos, onde cresceu, Nely Nyaka fala-nos, em “Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade”, dos marcos geográficos e sociológicos da sua cidade, das famílias que a habitavam, das práticas e dos costumes da comunidade e dos artifícios a que se recorria para mitigar a pobreza, e para vencer as enormes barreiras criadas pelo poder colonial a todos os que não fossem brancos.
Aqui está o espólio de uma vida plena, não isenta de provações, contudo absolutamente instigante. Impressiona, neste livro, sobretudo o seu olhar. A perspicácia do seu olhar. A candura do seu olhar. O seu acerbo espírito crítico e o poder de observação. A filha Gita Honwana Welch, que ajudou na fixação do texto e é autora do prefácio, fala da “candura da observação” – uma expressão felicíssima.
O extraordinário livro de contos “Nós Matámos o Cão Tinhoso” (1964), de Luís Bernardo Honwana, as incontornáveis “Memórias” (1985), de Raúl Bernardo Honwana, ou ainda os escritos de Raúl Honwana (filho), autor da obra “O Algodão e o Ouro” (1995), cruzam-se com este “Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade” (de Nely Nyaka), e denunciam, se quisermos, uma estética que lhes é comum: uma mesma ética. O supremo valor da ética. A ética é, aqui e sempre, uma espécie de estética da responsabilidade, individual e colectiva. No fundo, estão imbuídos de uma mesma poética. Aliás, num intrépido discurso que fez aquando do lançamento da sua obra, em 2018, a Vovó Nely foi cortante quanto às anomias sociais e aos desvios éticos que abundam e minam a nossa sociedade. Um discurso memorável e exemplar.
Vivemos um contexto adverso, onde a cultura e os valores, onde a ética e a estética, onde o património e o acervo cultural, onde tudo isto perdeu a centralidade. A grande violência das últimas décadas é, para além do aniquilamento de vidas que se perderam, esta degenerescência de valores em que nos atolamos. Ao ouvi-la, com a autoridade da sua idade, rodeada de filhos, netos, bisnetos, amigos, familiares, admiradores, pronunciar-se sobre a sua vida e experiência e sagacidade, foi um momento profundo, uma oração profunda e acutilante, assombrosa e generosa, lúcida e corajosa.
A oração foi feita em ronga, transcrevo parte da tradução:
“Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo
...os três nomes que nos dão a medida da tua grandeza.
Agradeço-te Deus nesta hora, agradeço-te meu Deus as bênçãos que derramas sobre a minha vida e a generosidade de teres permitido que eu escrevesse este livro.
Escrevi este livro, sim, meu Deus, porque tu abriste a minha mente para que eu tivesse a ideia de o escrever.
Move-me a vontade de tentar explicar a maneira como se vivia antigamente. Sempre ansiei por contribuir para que os mais novos tivessem consciência de como eram as coisas nesta terra, muito antes de eles nascerem.
No meu dizer, meu Deus, é um pouco da história de Moçambique o que quero contar àqueles que me rodeiam.
Agradeço-te meu Deus por teres permitido o tempo e a força para que eu pudesse fazer o que tanto desejava fazer.
E é por isso que uma vez mais rogo que tu estejas connosco também neste momento e neste lugar para que o nosso trabalho de hoje se cumpra em boa ordem.
Sem me esquecer meu Deus de orar pela nossa terra.
Quero orar pela nossa terra.
A nossa terra vive tempos muito atribulados.”
Volto a essas palavras hoje no dia do seu declínio. Recordo-a aqui, nesta breve memoração, como uma das mais notáveis personagens do devir moçambicano e um dos grandes vultos da nossa sociedade, história e cultura. Uma figura assombrosa, personagem forte, matriarca exemplar, inspiradora, mulher de uma lucidez implacável e dona de uma memória prodigiosamente lendária.
“Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade”, de Nely Nyaka, é uma obra notável, surpreendente e generosa. Disse-o e aqui repito: testemunho e testamento majestoso, sumptuoso, soberbo. A Vovó Nely cumpriu o seu dever e nesta obra está a sua vida, o seu exemplo e os seus valores. Talvez ela quisesse desmentir o aforismo do historiador maliano. A sua experiência não se incinera. Permanece naquelas belas e luminosas páginas. Viveu 103 anos e 115 dias! Uma vida jubilosa. Deus deu-lhe o tempo e a força que fez da sua vida uma lição. Provavelmente ainda não chegaram as suas prédicas, as palavras de consolo ou o lenitivo que nos falta quanto à nossa terra e quanto a estes tempos atribulados que vivemos.
Cidade do Cabo, 6 de Abril de 2024
A 20 de Fevereiro de 1973, Miguel Buendia, aos 28 anos, expulso de Moçambique, consegue, dissimulado no casaco, levar para fora do país o relatório que estaria na origem da vigorosa denúncia empreendida por Adrian Hastings sobre o tenebroso massacre de Wiriamu, ocorrido na província de Tete a 16 de Dezembro de 1972, cometido por tropas portuguesas, um dos mais hediondos da história da humanidade. A polícia da DGS interpelou-o. Ele trazia dois livros sobre a teologia da libertação, que foram cuidadosamente revistados, página a página. Levava o relatório no bolso do casaco, a polícia não teve coragem de revistar a sua roupa do corpo. Como emagrecera muito desde que chegara a Moçambique, ainda temeu a possibilidade de lhe descobrirem o manuscrito explosivo. Quando lhe perguntaram: “Tem alguma coisa a declarar?” Foi seco na resposta: “Não!”, olhando o agente, olhos nos olhos. O relatório não incluía as vítimas de Chaworha. Provavelmente, na pressa de fazer sair aqueles documentos, se tenha optado por um deles.
Miguel Buendia e Júlio Moure, ambos da congregação Padres de Burgos, tinham ordens para abandonar Moçambique, em duas semanas, desde 6 de Fevereiro. Na véspera da partida pernoitaram na casa da ordem na Beira e no dia 20, uma terça-feira, quando estavam prontos para seguir para o aeroporto, o padre José Camba, da mesma congregação, que fizera duzentos quilómetros desde a missão de Chimoio, para se despedir deles, entrega a Miguel Buendia o relatório Wiriamu.
Adrian Hastings (1929-2001), padre, historiador e proeminente autor inglês, conseguiu, em Julho de 1973, honras de primeira página no “The Times”, de Londres, e faz a intrépida denúncia. “Um paranoico com a mania de escândalo” disse dele o “A Época”, um órgão afecto à Acção Nacional Popular, em Portugal. Hastings, que mais tarde romperia com a Igreja Católica, não via na liderança da mesma vontade e capacidade de esta estar à altura da renovação do Concílio Vaticano II. Tinha vários anos de experiência em África. “A Igreja Católica em Moçambique está hoje agonizante, não só devido ao carácter altamente opressivo do governo português como também à Concordata. “É preciso que os cristãos de todo o mundo e de todas as igrejas saibam o que se passa”, escreverá Hastings no seu pungente livro “Wiriyamu” (1974).
Miguel Buendia tinha igualmente convicções que se reviam nas ideias defendidas pelo Concílio Vaticano II sobre a função socialmente transformadora da Igreja, sobretudo nas sociedades em desenvolvimento. Não compreendia nem aceitava o silêncio da hierarquia do clero perante a violência sobre os moçambicanos. Escolheu o lado certo da História e combateu, sobretudo nas reuniões sinodais, mas também no apoio material e clandestino aos combatentes e aos jovens que se juntariam à Frente de Libertação de Moçambique. “Buendia era um padre de acção”, afirmará Mustafah Dhada, no seu impressionante livro “O Massacre Português de Wiriamu – Moçambique, 1972” (2016).
Buendia nascera numa Espanha sob o jugo de Francisco Franco, um general que havia liderado as forças nacionalistas na Guerra Civil Espanhola. Os nacionalistas opunham-se aos republicanos, leais à Segunda República progressista, e aglutinavam falangistas, monárquicos e católicos. Os nacionalistas de Franco venceram a guerra e governaram a Espanha a partir de 1939 até à morte do caudilho em 1975.
Foi num clima de acirrada política ultra-nacionalista e autoritária, que inibia liberdades políticas, que deserdara a Espanha de qualquer possibilidade de democracia com base em eleições, que o jovem Miguel haveria de crescer. Aos 16 anos, Buendia descobriu o que tinha sido a Guerra Civil e começa a distanciar-se e a conviver com uma outra Espanha que dissentia da Espanha fascista. A sua trajectória, ligada à religião cristã, faz-se através do distanciamento da ditadura de Franco. A sua fé, como crente primeiro, mais tarde como sacerdote, arreigada numa fé em Deus, opunha-o à falta de liberdade, à opressão e à exploração do homem pelo homem, à ausência de democracia e de justiça.
Em Dezembro de 1970 chega a Moçambique aos 26 anos. Chega ao país, ao seu novo país, como padre da congregação dos Padres de Burgos. Encontra Moçambique mergulhado na guerra. Os nacionalistas moçambicanos lutam pela independência. Os soldados portugueses fazem a guerra colonial. A guerra, nessa época, descia em direcção ao centro de Moçambique. Miguel Buendia defronta-se, de novo, com uma sociedade desigual: país colonizado por um país em ditadura, igualmente fascista, regime profundamente injusto. Não tem dúvida quando escolhe o seu lado. A Igreja e a hierarquia estavam na ala do regime. Buendia do lado da liberdade e do direito dos moçambicanos à independência.
A sua acção cristã faz-se nessa pedagogia pela liberdade. Será, como é óbvio, em grande parte, uma acção clandestina. Para ele, como para muitos dos padres da sua geração, Deus não estava em contradição em relação à liberdade do povo moçambicano. Buendia apoia a Frente de Libertação de Moçambique. Estava em Murraça, na província de Sofala. Um grupo de jovens, interceptados pela DGS, quando se dirigiam ao Malawi, confessam, sob tortura, que tinham estado em casa do padre Buendia e que tinham tido o apoio deste, que os ajudara e facilitara no seu empreendimento e fuga. Miguel Buendia, que apoiara não só estes jovens, como apoiara a Frente e os combatentes, recebe ordem de expulsão.
A Igreja em Moçambique vivia também uma situação complexa. Na Beira, depois de um longo período de pontificado, por assim dizer, do Bispo D. Sebastião Soares de Resende, que sempre que interpusera a favor dos moçambicanos e da liberdade e da justiça, tinha ao leme um bispo vacilante e cobarde. Dom Sebastião morrera a 25 de Janeiro de 1967.
A Concordata de 1940 esteve na origem do aumento de missionários católicos em Moçambique. Chegam ao país companhias missionárias, que trabalhavam há muito em África, como o caso dos Padres de Verona, os Padres de Consolata (ambos italianos na sua maioria), Padres Brancos (que se espalhavam pelo mundo) e os Padres de Burgos. Muitas destas congregações e missões tinham na sua prática missionária a aprendizagem e o conhecimento das línguas africanas, criação de escolas e desenvolvimento local.
Dom Sebastião Soares de Resende acolheu, na diocese da Beira, os Padres Brancos e outros missionários. Para além da sua acção eclesiástica dirigia o jornal “Diário de Moçambique” e tinha à sua volta o apoio de padres que o coadjuvavam nesta acção a favor dos moçambicanos, entre os quais Soares Martins, que se revelaria um dos mais notáveis historiadores sobre o império negreiro em Moçambique – José Capela.
Quando morre o famoso Bispo da Beira, a diocese entra num período turbulento. D. Manuel Ferreira Cabral, nomeado para o substituir, é manifestamente incompetente e tem posições dúbias. Os padres não têm apoio do bispo na denúncia das iniquidades do regime, das prisões arbitrárias, torturas e outras injustiças que são praticadas contra os moçambicanos. Os Padres Brancos vivem mergulhados nesta ambiguidade. Querem uma clarificação da hierarquia, mas esta não se desfaz das ambiguidades nem do apoio velado às iniquidades do regime. Confrontados com esta situação, denunciam a situação. Serão expulsos, em Maio de 1971.
Entretanto, o bispo não resiste. Demite-se. É substituído por um bispo de origem goesa, oriundo da então Sá de Bandeira, actual Lubango, em Angola: D. Altino Ribeiro de Santana. É designado Bispo da Beira em 19 de Fevereiro de 1972. Não resistiu um ano. Morre a 27 de Fevereiro de 1973 de ataque cardíaco. Isto na sequência do julgamento de dois padres e da expulsão de Miguel Buendia e Júlio Moure. A pressão era grande.
A retirada dos Padres Brancos coincide, no entanto, com o recrudescer da guerra na província de Tete. A luta avançava para sul, atravessando o rio Zambeze. Entre Maio de 1971 e Dezembro de 1972 ocorrem, na região, um conjunto de abomináveis atrocidades. Mucumbura foi dos primeiros actos e dois padres de Burgos (Alfonso Valverde e Martin Hernandez) fazem a denúncia junto das autoridades políticas e eclesiásticas. Para além dos massacres, há prisões e torturas, destruição de aldeias, matanças indiscriminadas. Os missionários colocam-se em defesa das populações. Alguns são interrogados. É o caso, entre outros, do padre Vicente Berenguer, ou do padre Domingos Ferrão. Entretanto, Alfonso Valverde e Martin Hernandez são presos na então Rodésia (estavam de visita familiar) e enviados para Lourenço Marques. Nada os intimida.
Para o governo, os missionários são testemunhos indesejáveis em algumas zonas. O massacre de Wiriamu foi uma atrocidade brutal. Como noutros casos, serão os missionários a juntar informação, fazer o relatório para a denúncia junto do Bispo e da Conferência Episcopal. Os protestos junto do governador não surtiram efeito. Nem dos massacres anteriores, nem deste que era de maior envergadura. Os relatórios que corriam no país fora sendo copiados. Com o tempo se percebeu que não haveria localmente acção alguma. Era preciso passar para fora do país esses relatórios e essa informação, mas tal coisa não era fácil.
Adrian Hastings narra, no seu livro “Wiriyamu” como teve conhecimento destes documentos entregues por Miguel Buendia aos Superiores dos Padres de Burgos. Coube-lhe o papel histórico de fazer a denúncia no importante jornal inglês “The London Times”. Marcello Caetano, na sua visita a Londres em Julho de 1973, é confrontado com esta denúncia e com arrojadas manifestações. Hastings (“um inimigo declarado de Portugal”, epíteto dado por porta-vozes de Caetano), foi até às Nações Unidas e a sua incriminação ajudou, de algum modo, a desmascarar o regime que tentou descredibilizá-lo. O Secretário-Geral é Kurt Waldheim. Recebe Adrian Hastings em audiência e ouve-o atentamente. O Conselho de Segurança e a Comissão dos 24 aprovam numerosas resoluções solicitando que o governo português cesse “todos os actos de repressão”. A denúncia de Hastings perante a Comissão é enérgica, persuasiva, eloquente. Marcelino dos Santos está presente em Nova Iorque e fala a seguir ao depoimento de Adrian Hastings. O abraço entre ambos no final da sessão é caloroso.
Da denúncia do massacre à queda do regime passaram nove meses. Entretanto, Miguel Buendia não queria ficar em Espanha. Descoloca-se a Inglaterra para estudar inglês com o intuito de, mais tarde, ir para a Zâmbia. Encontra-se em Fevereiro de 1974 com Óscar Monteiro. Escrevem, ele e outros padres, ao Presidente Samora e contam a sua experiência e falam dos seus propósitos futuros. A resposta de Samora é comovente. Convida-os a juntarem-se à Frelimo. José Maria, Miguel Buendia e Vicente Berenguer escolhem, então, ir para Dar-es-Salaam.
Eclode, entretanto, o 25 de Abril e a história acelera. Os padres estavam divididos, entre a contradição da sua inequívoca solidariedade ao povo e à sua emancipação e a posição dúbia da Igreja. Escrevem a “carta dos Padres de Burgos”. Declararam-se cristãos e marxistas, afirmam que não utilizariam o Evangelho contra o povo e os seus interesses. Roma reage, demite a direcção dos Padres de Burgos. A posição do Vaticano provoca a ruptura de alguns destes padres. Os que estavam em Moçambique deixam a Igreja.
Junto dos camponeses de Chimoio, nas aldeias comunais, Miguel Buendia participa do nascimento da nova Nação. Vai dar aulas para uma escola secundária. A educação sempre fora o seu escopo, o seu desígnio, o sentido e o propósito da sua vida. Mais tarde embrenha-se na educação à distância. Homem do sector educativo, estuda-o e doutora-se na área. É autor de “Educação moçambicana – a história de um processo: 1962-1984” (1993). Nele faz o excurso crítico da educação num contexto colonial e do seu processo político e ideológico libertador no tempo ulterior, o da independência.
Miguel Buendia é um homem compassivo e intelectualmente honesto. Impressiona a sua imensa humanidade e a sua espantosa humildade. Chega a ser comovente como ele é humilde, como se esquiva quando lhe é perguntado sobre o seu papel na História deste país, atribuindo a outros a importância que ele também tem, como libertador. A amnésia e a ignorância e a incultura, entre nós, estão na origem de muitas injustiças que praticamos sobre muitos daqueles que, corajosamente, lutaram por nós e que são nosso inequívoco património histórico. Quando pensamos em heróis somos maniqueístas e atribuímos este distintivo apenas a uns. Miguel Buendia e os seus companheiros, Padres de Burgos, lutaram por este país e são nossos heróis e merecem a nossa homenagem e o nosso preito.
Miguel Buendia é um ser humano superior, de elevadas qualidades humanas, intelectualmente comprometido pelo nosso destino e pelo devir moçambicano. Mesmo nos momentos sombrios – e estes são cada vez mais impressivos – vejo, sobretudo no seu vívido olhar e na sua alocução apaixonada, um amor declarado ao futuro e a este país.
Ao longo destes muitos anos, de convívio e amizade, de irmandade, de camaradagem e de fraternidade, nunca vi o Miguel Buendia reivindicar o seu papel – corajoso, sublinho eu! – na história de Moçambique. A sua humildade é desarmante. Conheci, através dele, o padre Vicente Berenguer, outra grande personagem e tive pena quando este, há seis anos, foi embora de Moçambique, sem haver, oficialmente, um reconhecimento da sua acção e luta. Berenguer falou-me com ternura infinita de Buendia e da sua figura, carisma e grandiosidade. Viviam, Sara e Miguel, vivíamos todos nós, familiares e amigos, a dilacerante partida do filho Mike.
Neste testemunho, necessariamente breve, queria celebrar a vida deste homem livre e lutador pela liberdade, este homem que viveu para a educação, que quis aprender sempre, este homem de uma imensa sabedoria e de uma imensa humanidade, este homem de um coração enorme e de uma bondade incomensurável, este moçambicano sem favor de ninguém, este herói que nos merece todos os preitos, que soube escrever, com os seus companheiros, uma página nobre na história deste país – Moçambique.
Devemos-lhe um tributo, todos os tributos. Devemos um tributo aos Padres de Burgos e a todos os que se interpuseram contra as perversidades, crueldades, injustiças, iniquidades do colonialismo e do seu sistema brutal, feroz e atroz. A todos os que lutaram por este país. Miguel Buendia é um dos nossos melhores. É daqueles que souberam libertar-nos. Nós temos que saber reconhecer isso. Nós merecemos estar à altura da sua imensidão, da sua grandeza, da sua humanidade – da sua compassiva humanidade. A nossa história também tem o brio destas personagens.
Miguel Buendia Gomez nasceu a 1 de Abril de 1944 numa Espanha opressiva e ominosa que vivia mergulhada no nacional fascismo. Nasceu depois em Murraça, quando chegou a Moçambique, aos 26 anos. Nasceu quando foi expulso e levou consigo o relatório que denunciou o tenebroso massacre de Wiriamu a 20 de Fevereiro de 1973. Nasceu quando, na carta dos Padres de Burgos, foi contra o silêncio e a tibieza da Igreja em relação aos povos e abandonou o sacerdócio. Nasceu com a nossa independência. Nasceu depois nas aldeias comunais. Nasceu em Chimoio. Nasceu no ensino à distância. Nasceu quando pensou, reflectiu e escreveu sobre a experiência da educação. Nasceu com a Sara. Nasceu com o Mike. Nasceu no tremendo dia 26 de Outubro de 2003. Miguel Buendia nasce todos os dias com toda a sua imensa humanidade. Hoje, 1 de Abril de 2024, ele nasce aos 80 anos.
KaMpfumo, 1 de Abril de 2024
“e se tu és negro, e eu sou branca,
a mesma terra nos gerou”
Alda Lara (in “L.M. Guardian”, 6 de Janeiro de 1952)
A 25 de Março de 1949 morreu em Lisboa o escritor João Dias aos 23 anos deixando uma obra precursora da ficção narrativa moçambicana que seria editada postumamente. A 8 de Junho de 1950, Noémia de Sousa escreve o poema “Godido” e dedica-o à memória de João Dias: “Dos longes do meu sertão natal, / eu desci à cidade da civilização. / Embriaguei-me de pasmo entre os astros / suspensos dos postes das ruas / e atracção das montras nuas / tomou-me a respiração. / Todo esse brilho de névoa, ténue e superficial / que envolve a capital, / me cegou e fez de mim coisa sua”. Assim começa esta homenagem que adiante exclama: “Ah, mas eu não me deixei adormecer! / Levantei-me e gritei contra a noite sem lua, / sem batuque, sem nada que me falasse da minha África, / da sua beleza majestosa e natural / sem uma única gota da sua magia! / A luz verde incendiou-se no meu olhar / e foi fogueira vermelha na noite fria / dos revoltados”. Noémia terá desde logo uma intuição certeira em relação ao contista desaparecido e da sua importância: “Ainda grito, / porque quero ser ainda, sempre, pela vida fora, / o que fui outrora”// “Como tu, meu irmão negro, desorientado e perdido, / na cidade cruel.../ Como tu!”
Muitos anos depois, em 1990, interpelei Noémia de Sousa e quis saber se ela conhecera João Dias: “Foi a mesma coisa com o Rui de Noronha. Nunca convivi com o João Dias. Via-o na rua. Depois soube que ele tinha vindo para Portugal, mas devia ser miúda nessa altura. As irmãs dele foram, durante algum tempo, visitas de minha casa. Eram amigas das minhas primas. Falavam muito do irmão, que era o único rapaz, que andava no liceu, e todos aqueles sonhos à volta dele, que iam mandá-lo para Portugal. Eu nunca tive nenhum contacto com ele. Vi-o às vezes na rua. Encontrávamo-nos na matinée de domingo”.
João Bernardo Dias era filho de um nome insigne do jornalismo – Estácio Bernardo Dias, da geração dos Albasini e de “O Brado Africano”. Nascera a 21 de Maio de 1926 (o mesmo ano em que nasceria Noémia de Sousa), na então cidade de Lourenço Marques. Colaborou, entre outras publicações, em “O Brado Africano” e dedicou-se, para além da ficção narrativa, ao jornalismo e à crítica cinematográfica. É curioso que o mítico grupo dos ruis, anos mais tarde, também se interessavam pelo cinema. Rui Knopfli fez crítica de cinema, Ruy Guerra é hoje um dos nomes mais importantes do Novo Cinema Brasileiro. A ligação com o cinema é um esteio literário interessante e por explorar.
Numa entrevista a Michel Laban, Noémia de Sousa relembra-o: “Pareceu-me sempre uma pessoa muito metida consigo e solitária. Faço ideia o que deve ter sido o liceu para ele – frequentou o liceu em Lourenço Marques – o que deveria ter sido, naquela época: o único negro que andava no liceu. Deve ter sido uma experiência horrorosa.”
João Dias, através da personagem Godido sobretudo, mas também de outras personagens, relata-nos, nos seus contos, essa experiência dolorosa do quotidiano dos negros. O autor foi vítima dessa discriminação e viveu dilacerado numa sociedade preconceituosa e extremamente racista. Mesmo nos textos ulteriores, nos quais se relata a experiência como estudante em Portugal, é possível detectar o vexame do racismo e da discriminação.
No pórtico do seu livro póstumo escreve João Dias: “Lei de bronze! Com os seus armamentos de ferro, o reino de Godido era então o mais forte da região. Superava quantos lhe apareciam. Em todo o sítio a voz do vátua era indiscutivelmente a voz de baixar a cabeça e saudar Bayette! Bayette!!! E não se toleravam insubmissões. De uma vez, para castigar um induna revolto, o régulo chamou-o à sua cubata e ele próprio lhe enterrou uma navalha nos pulmões. A vida de glória enchia todo o povo vátua que corria de norte a sul, escangalhando com majestade tudo que lhe aparecia pelo caminho.”
Desde os seus escritos da adolescência que se nota o seu espírito indómito e combativo, revoltado e insubordinado. Aliás, aos dezassete anos escrevera: “Mais uma vez bradamos pela justiça porque todo o homem sujeito à opressão tem o direito de reagir, de destruir tudo o que se oponha a sua liberdade”. Foi incompreendido. Viveu, na sua passagem de cometa por este mundo, sempre dilacerado com esse anátema da incompreensão. Escreveu uma obra escassa, mas significativa. A sua escrita, fortemente marcada socialmente, tendo como personagem recorrente Godido. É uma personagem-metáfora. Nela se faz a alegoria de um tempo, a representação de uma sociedade, a figuração do colonialismo e das suas acintosas tropelias e enormidades. “Godido será gente? Talvez...talvez tivesse nascido cão; e talvez seja homem.” “Porque és negro e de negro não passas”. “Sua negra! Cadela! Safa-te quanto antes. Sua...” (“Godido”) “Canalha!!!” (“Sonho negro”) “Se fosses como teus irmãos, mero carregador do cais, ou desentupidor de fossas!...não levantarias novos problemas a ti e a nós. A vida seria suavemente menos alcantilada. Serias feliz porque eras do teu mundo, e te bastava nele.” (“Individuo negro”).
João Dias estudou Direito em Coimbra durante três anos e posteriormente transferiu-se para Lisboa. Morreu, aos 23 anos, vítima de doença incurável. Para além dos escritos que enforma a edição póstuma de “Godido e outros contos”, deixara alguns escritos de juventude e colaboração diversa em “O Brado Africano, “Itinerário”, “L.M. Guardian”, “Agora”, “Gazeta de Coimbra”, “Via Latina”, “Meridiano”, entre outras publicações.
Em 1952, chancelado pela África Nova, impresso na Casa Minerva, em Coimbra, sob a iniciativa dos amigos Alda Lara (de Angola), Orlando de Albuquerque e Vítor Evaristo (de Moçambique), com o patrocínio da secção Moçambique da Casa dos Estudantes do Império, é dada à estampa, a reunião “Godido e outros contos” de João Dias. Albuquerque, poeta e médico, que se casaria com a poeta e médica Alda Lara, redige a introdução: “João Dias morreu quando começava a mostrar-nos a reais possibilidades do seu talento. A obra que nos deixou é pequena e inacabada. Entretanto, mesmo assim, é suficiente para nos dar o quanto das suas possibilidades e justificar a iniciativa de alguns dos seus amigos em lha editar, evitando que, lamentavelmente, se viesse a perder no esquecimento que, tarde ou cedo, acaba por cobrir aqueles que a morte leva...”
Em 1987, no jornal “Domingo”, Nikos Kakurios, interroga-se: “João Dias: escritor maldito?”: “Embora sabendo que havia sido publicada uma obra intitulada “Godido” não havia forma de ter acesso ao livro.” “A curiosidade sobre esta estranha maldição de um livro que nem os meus amigos com bibliotecas pessoais de qualidade possuíam ou conheciam sequer”. Um grupo de jovens cria nesses anos 80 a Brigada João Dias. A “Charrua” faz-lhe menção no seu número inaugural (Junho de 1984) e publica o seu conto mais emblemático.
Trinta e sete anos depois da primeira edição, a Associação dos Escritores Moçambicanos haveria de reeditar esta obra seminal em Agosto de 1989, com um prefácio de Cyprian Kwilimbe, que foi um entusiasmado divulgador da obra e figura de João Dias, lutando, ele também, contra o esquecimento. Kwilimbe, que participou da aventura da revista “Charrua” escreve no referido prefácio: “Com uma ressonância ao mesmo tempo individual e universal, João Dias, numa linguagem clara e rica, bradou pela justiça humana: individual porque ele mesmo sofreu a injustiça; universal porque descreveu as arbitrariedades e a injustiça comuns no mundo através da História.”
Hélder Muteia, da geração da “Charrua”, assina o texto da contra-capa: “Várias vezes humilhado e vexado, João Dias nunca se rendeu ao acanhamento e, entregando-se inteiramente à luta, numa originalidade que sempre o caracterizou na arte e na vivência, deixou por onde passou, gravado bem o fundo, o cunho de uma personalidade ímpar”.
Noémia de Sousa intuíra a sua importância, Orlando de Alburquerque vaticinara-lhe um lugar cimeiro na fundação da literatura moçambicana, Cyprian Kwilimbe apostrofava a questão central do racismo e do preconceito que sofrera na sua obra, Hélder Muteia relevava a “voz humanitária e realista”. João Dias seria, quanto a nós, a consciência inicial da moçambicanidade na nossa ficção narrativa, que se elevaria, quinze anos após a sua morte, na pluma esplendente de um outro jovem, Luís Bernardo Honwana, com a sua obra genial “Nós Matámos o Cão Tinhoso”.
Para além dos quinze textos que integram a edição inicial de “Godido e outros contos”, o livro traz um novo prefácio, sem excluir o anterior, apondo-lhe um poema, de Alda Lara, em jeito de posfácio: “É tempo companheiro! / Caminhemos.../ Longe a Terra chama por nós, / e ninguém resiste à voz / da Terra...// Nela, / o mesmo sol ardente nos queimou, / a mesma lua triste nos acariciou, / e se tu és negro, e eu sou branca, / a mesma terra nos gerou..”
A denúncia, o grito, a revolta. A imputação do colonialismo, a acusação contra o racismo, a incriminação contra as desigualdades marcam a obra de ambos. Os dois são contistas – João Dias e Luís Bernardo Honwana - de apurado sentido estético e de um poder de observação poderoso. A economia da linguagem e a riqueza vocabular também os aproxima. Os textos são curtos, marcantes e marcados. Sobretudo socialmente. A obra de João Dias é claramente incipiente, denuncia ainda certas tibiezas, como lhe apontava Orlando de Albuquerque, mas é, ao mesmo tempo, um referencial histórico fundador.
“Godido” é, no entanto, um texto precursor, pioneiro, vanguardista. O seu autor é um arauto, alguém que anuncia, que nos dá notícia de um tempo novo na nossa literatura. “Nós Matámos o Cão Tinhoso” estabelece o cânone e será a obra referencial da nova ficção em Moçambique. É uma obra fundadora. É, no entanto, tributária, de certo modo, de “Godido e outros contos”.
Num ensaio notável e pioneiro, ulterior a dois textos importantes, um de Rui Knopfli de 1974 e outro de Orlando Mendes de 1980, Fátima Mendonça, numa periodização da literatura moçambicana, em 1987, refere: “Em 1949 morria em Lisboa um jovem moçambicano, estudante de direito, João Dias, que deixava inédito um conjunto de textos, “Godido e outros contos”, publicado postumamente pela C.E.I. (1952). É neste período que “surge uma literatura marcada pela rejeição do carácter colonial do contacto com Portugal”. “A sua génese encontra-se no clima provocado pelas alterações históricas determinadas pelo final da 2ª guerra mundial”, considerava Fátima Mendonça, sem omitir as condições políticas específicas ocorridas em Portugal na sequência do movimento à volta de Norton de Matos em 1948 e que teve repercussões no caso moçambicano, acrescento aqui, no caso da geração de Noémia de Sousa e da sua acção reivindicativa, política e cultural.
João Dias foi um incompreendido. Há quem tenha visto nele um “germinador de ódios”, mas Godido e, por extensão, João Dias, são a metáfora pungente da vida dos negros numa cidade e numa sociedade extremamente segregada, as suas desventuras, o seu quotidiano, o seu infortúnio: dão-nos conta do destino de um povo que se viu historicamente privado da sua dignidade. Bem podem os defensores do indefensável proclamar os avatares do colonialismo, querendo apregoar que o colonialismo português era benevolente, altruísta ou generoso, a realidade histórica demonstra o contrário. Leiam, entre outras obras, “Godido”. Está lá a notícia do colonialismo e das suas perversidades.
Por outro lado, aqueles que ainda hoje persistem em fazer da cidade de Lourenço Marques justa, magnânima, copiosa ou supina, em artigos e invocações superabundantes, bastaria uma leitura destes contos para ficarmos esclarecidos sobre a cidade e a sociedade excludentes, uma cidade discriminatória, hostil, segregada, preconceituosa, intolerante, racista, classista, diferenciada. João Dias, que sofreu o facto de ser negro, soube descrevê-lo e denunciá-lo e os seus escritos são um alerta contra a desmemória e a mistificação da história.
Este e outros escritores de juventude, podemos subsumir, colocam João Dias entre aqueles que empreenderam, antes da geração dos libertadores, um acérrimo combate pela liberdade. Há uma geração, sobretudo do movimento negro, que combate o racismo, exige direitos para as populações das então colónias, criticam o sistema. Esse movimento negro tem importantes ligações ao pan-africanismo e aos movimentos civis negro-americanos. Parte dos chamados proto-nacionalistas, como Mário Pinto de Andrade, irá caracterizar a geração que antecede à “Geração Cabral”, são a consciência primeira da luta, do combate, do empenho ou contenda pela emancipação política dos africanos. É importante lê-lo também para perceber que o gérmen libertário vem de longe. A nossa história é redutora, lacunar e maniqueísta.
João Dias morreu muito jovem, sem tempo para aprimorar esses escritos e essa consciência combativa, mas o seu desagravo, o seu desacordo, a sua briga, a sua discórdia ou dissentimento são inequívocos. Também, daí, resulta, de algum modo, a sua importância. Sendo que, no seu caso, temos a fortuna do seu talento e do seu génio, que a morte prematura impediu que se desenvolvesse. Seja como for, é impressivo e expressivo os primórdios do cânone que aqui se intenta ou desenha. Não obstante o facto de ser uma obra fragmentária e inacabada.
Trinta e cinco anos depois da segunda edição de “Godido e outros contos” não temos conhecimento de que a obra inspiradora de João Dias tenha conhecido outra sorte que não seja a ventura das vicissitudes a que obras e autores semelhantes estão sujeitos neste país: o opróbrio do silêncio, a ignomínia da desatenção e do descaso, o desconhecimento e a negligência. A indiferença, o abandono, a omissão.
Quando passam hoje setenta e cinco anos sobre a sua morte precoce, queria aqui lembrá-lo, neste breve tributo. João Dias é sem dúvida um dos nossos intérpretes ou, se quiseram, um dos nossos melhores. Socorro-me do auxílio da esplendente pluma da Noémia de Sousa, outra vez, para esta reverência, vénia ou homenagem a João Dias:
“Por isso é que este meu canto ingénuo que soa banal,
traz no seu fundo mais fundo, Godido, meu irmão
a marca rubra dum selo fraternal,
constante e imortal”
KaMpfumo, 25 de Março de 2024
Ricardo Rangel é, indubitavelmente, o mais sagaz, intrépido e profícuo fotógrafo moçambicano do “instante decisivo”. O grande fotojornalista moçambicano do século XX: arguto, vivo, veloz, ágil, astuto. É também um dos fundadores do fotojornalismo entre nós. Nasceu na então cidade Lourenço Marques (Maputo) a 15 de Fevereiro de 1924 – há 100 anos! –, e seria conhecido, celebrado e festejado em muitos lugares do Mundo, onde expôs a sua arte e o seu génio. Tinha nas veias sangue africano, grego e chinês. Andou a vida toda com uma máquina em riste e devemos-lhe um país em imagens ao longo de décadas. Um país que se demarcava do conformismo colonial e nos remetia para a dissensão, para a defesa dos proscritos, para a justiça e para a liberdade e dignidade da maioria excluída. Era, sobretudo, um fotojornalista. A sua lente tinha arte, mas dava-nos sempre notícias. Notícias do seu tempo, o nosso tempo. Era, no fundo, um jornalista arrojado e audaz, intrémulo e resoluto. Um dos nossos maiores intérpretes. Um dos maiores intérpretes da moçambicanidade.
O fotojornalismo, sabe-se, informa. O fotojornalismo é quando a fotografia tem o carácter e a urgência da notícia. O fotojornalista mostra, revela, expõe, denuncia, opina. Interpela, interpela-nos. Indaga, indaga-nos. Esta “disciplina”, por assim dizer, afirmou-se no período ulterior à Primeira Guerra Mundial, entre as décadas 20-30 do século passado. Isto no Ocidente. A Moçambique chegará atrasada, nos anos 30-40. Deve-se, sobretudo, ao “Lourenço Marques Guardian”, de Arthur William Bayly, um famoso comerciante e publicista, oriundo de Durban, que se instalou na antiga Delagoa Bay e prosperou. Uma casa homónima haveria de marcar a cidade durante décadas. Mais tarde, seria o vetusto “Notícias” que haveria de desenvolver a fotografia como informação. Primeiro como pura ilustração do texto. Sempre como apanágio dos ideários da época: do Império, dos colonos e da metrópole e das suas glórias, amesquinhando um povo que Rangel haveria de ajudar a sublevar.
Ricardo Rangel e Sebastião Langa seriam os primeiros não-brancos a fazer fotografia no país. Iniciaram a aprendizagem em estúdios profissionais que existiam na época. Os estúdios fotográficos começaram a ser instalados nos finais do século XIX em Moçambique com a chegada do daguerreótipo. O retrato populariza-se então. Nos anos 30-40 surgem, no país, publicações ao estilo das que então proliferavam na Europa e nos Estados Unidos. O “Ilustrado” no “Notícias”, entre 1933-34, seguindo-se-lhe o “África Ilustrada”, no mesmo grupo editorial, nos anos 40. Mais tarde, em 1951, o “Império”. A cidade de Lourenço Marques e/ou a sua pujança, que lhe advinha sobretudo do seu porto, assume um ineludível protagonismo.
Nos anos 50, primeiro no “Notícias da Tarde” e, posteriormente, no “Notícias”, Ricardo Rangel, já conhecedor dos segredos técnicos da sua profissão – expendera anos na câmara escura –, desfaz o estereótipo: é o primeiro fotojornalista não-branco na imprensa em Moçambique. É também ele que irá romper com os arquétipos vigentes. Rangel empresta à época e ao fotojornalismo um olhar inédito, sempre inconformado e, sobretudo, insubmisso. Recusa os ditames e subverte a linguagem. Uma outra realidade, aquela que só aparecia para justificar o proselitismo do regime, ganha estatuto e dignidade na sua lente. Diverge dos interesses e da ordem estabelecida. Denega o exótico que era prática e traz para as páginas da imprensa uma outra realidade social.
O jornal “A Tribuna”, quando surge nos 60, vai para além da “fronteira do asfalto” (Luandino dixit) e Ricardo Rangel é um dos responsáveis por cartografar, ali, a chamada “cidade de caniço”. Vale, a propósito, ler o que Luís Bernardo Honwana ou Calane da Silva testemunharam sobre o tema. Aliás, muitos anos depois, o próprio fotógrafo haveria de exultar, ao lembrar-se daquelas páginas que se rasgavam diante de outros olhares e através das quais ele moçambicaniza a fotografia. Estamos num tempo – ulterior à Segunda Guerra Mundial – em que uma geração de jovens intelectuais se afirma e há uma importante agitação cultural nos jornais e nas agremiações culturais e cívicas: Noémia de Sousa, José Craveirinha, Fonseca Amaral, Rui Nogar, Luís Bernardo Honwana, Rui Knopfli, Ruy Guerra, entre outros. Há, no entanto, os ecos de “O Brado Africano” e a acção da Associação Africana ou das figuras de Rui de Noronha ou José Albasini.
Rangel calcorreava a cidade com a máquina em riste e há no seu vasto repositório a memória dolorosa do tempo colonial que o mito intenta obnubilar. A periferia e as suas contradições estão também, por assim dizer, inscritas no seu mítico “Pão Nosso de Cada Noite”. Rangel conheceu e amou a noite de Lourenço Marques. Para trás ficaria a memória da Delagoa Bay ancorada ali no tempo, entre os arrabaldes da antiga Baixa, do antigo presídio e toda aquela zona onde se situava a Praça 7 de Março (hoje 25 de Junho).
O porto e a navegação internacional fizeram de Delagoa Bay, primeiro, Lourenço Marques, depois, um lugar de referência para os marítimos de passagem. Fizeram, no fundo, a própria Lourenço Marques. Na baixa, que era o centro da cidade, as ruas tinham um bulício que impregna alguma da nossa boa literatura. Lourenço Marques fora a cidade dos trens, dos “rickshaws” e das galeras puxadas a parelhas. Fora a cidade dos quiosques da praça, dos “bars” e das cervejarias.
Foi naqueles anos fervilhantes e excitantes para os que viviam ou passavam temporadas em Lourenço Marques – anos 50 e 60, sobretudo – que Ricardo Rangel fotografou a vida nocturna de uma das mais emblemáticas ruas da baixa – a Rua Araújo. Desde meados do século XIX que a Rua Araújo se revestira de um carácter dúbio: durante o dia mantinha todo o aspecto normal duma rua comercial e de escritórios, ao fim do dia ganhava os contornos de clandestinidade que a tornariam mais tarde célebre.
Foi com a descoberta das minas do ouro do Rand e a construção da linha férrea para o Transvaal que Lourenço Marques deixar-se-á invadir por gente exótica e estranha. Será esta gente que transformará depressa a Rua Araújo, à noite, numa pequena rua do “Far West”, cheia de “saloons” com bebidas e jogos animados pelas “barmaids”. Na década de 30 do século XX apareceram os casinos com as “taxi-girls”, então em moda em Joanesburgo, e donde veio depois da última guerra outra vaga de “night-clubs”, “cabarets” e “dancings”. Tudo isto em Lourenço Marques, a conhecida Xilunguine, ou a antiga Delagoa Bay. De Reinaldo Ferreira a José Craveirinha, passando por autores diversos, há textos notáveis sobre a Rua Araújo. Há personagens míticas, como Daíco, musas ou deusas.
O jazz, que lhe chegava da longínqua telefonia primeiro, depois dos discos que os marinheiros que faziam a rota do Cabo e aqui aportavam lhe ofereciam, fará de Ricardo Rangel o indutor desta sua paixão entre nós. A Rangel, Moçambique deve a devoção pelo jazz. Não tocava, mas é dos seus maiores divulgadores e promotores. Conhece e fotografa os seus maiores intérpretes. Em 1971, o contra-baixista Charlie Haden, num concerto em Portugal, interpreta “Song for Che” e dedica-a a revolucionários de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Ricardo está na plateia e exulta. Esteve com os seus mitos: Dizzy Gillespie, Miles Davis, Thelonious Monk, Ornette Coleman. Fotografou-os. Apostrofou-os. Os lugares de culto do jazz na cidade guardam a sua presença: Topázio, Zambi, Sanzala, Costa do Sol, Princesa, ou Chez Rangel na Estação dos CFM. Abdullah Ibrahim, aliás Dollar Brand, descobriu na casa de Rangel um disco seu que ele próprio não tinha.
O título imaginoso de José Craveirinha – “Pão Nosso de Cada Noite” – está na origem do livro-álbum, de Ricardo Rangel, publicado nos seus 80 anos, em 2004. O fotógrafo deambulara pelo “Notícias”, “A Tribuna”, “Diário de Moçambique” e “Notícias da Beira”. Estivera na fundação da revista “Tempo”, outro marco. Tudo isto no tempo anterior à independência. Regressaria ao “Notícias” em 1977. Em 1981 torna-se o primeiro director do semanário “Domingo”. Mais tarde irá criar o Centro de Formação Fotográfica, onde se manteve activo – na companhia cúmplice e firme de Beatrice – até ao fim e empreendeu como formador e como uma reserva de sabedoria. Os mais jovens profissionais encontravam nele disponibilidade para partilhar os seus vastos conhecimentos e os seus avisados ensinamentos. Mas também o homem assertivo, incisivo, crítico, indignado. O Mestre.
Não tinha um génio fácil, antes pelo contrário. Era difícil, irascível. Por vezes impulsivo ou truculento. Vituperava a mediocridade, desgostava-lhe o paupérrimo jornalismo, ou a ausência dele. O seu “Notícias” passara a ser um jornal de anúncios e não de notícias. Vociferava, zangado, contra o estado das coisas. Era um conversador brilhante, maravilhoso, contador de histórias, tinha um sorriso rasgado e os olhos e os zigomas que o aproximavam das suas origens orientais. Tinha um olhar brutal, indagador, frontal, poderoso. Por vezes, intimidatório. Mas era fraternal, de uma ternura no sorriso e no olhar, amigo dos seus amigos. No fundo, as suas fotografias transmitiam essa ternura, que ele disfarçava.
Fotojornalista de longo curso, homem profundamente enraizado na história do seu país e do seu povo, Ricardo Rangel testemunhou, não indiferente, uma longa era da vida de Moçambique, tendo-a documentado, como jornalista e como artista. No Centro que criou registou o nosso país em imagens. Um trabalho ciclópico e primordial. É um dos seus legados. Como as suas belíssimas e pungentes fotografias que são o primeiro rascunho da História. O jornalismo – o fotojornalismo – é também isso: o primeiro esboço da História.
Ricardo Rangel era um prodigioso homem do “instante decisivo”, com uma intuição, uma sensibilidade, uma prática e poética que estão na origem de fotografias que fixavam, na “linguagem do instante”, o momento, a essência e o significado da nossa História no século XX. É o fotógrafo de Moçambique. Mas é também um grande fotógrafo de África. Num texto remoto disse de Ricardo Rangel: “Que belo o teu ofício e dos que te antecederam e daqueles que se seguem, este de nos devolverem algo que é nosso antes de nos ter pertencido”.
Foi sobretudo um fotógrafo do olhar. Um dia ofereceu-me uma fotografia da mulher da gabardine com um olhar dilacerantemente melancólico. Ela está na célebre rua, tem uma cabeleira emprestada e nota-se-lhe uma profunda tristeza. Tem a mão esquerda sobre a cintura. Há silhuetas de uma parelha ocasional por trás. Esta, como tantas outras fotografias de Ricardo Rangel, faz parte de uma poética partilhada por uma geração única. De um mito geracional. De uma estética e poética. De uma ética. Guardo-a ciosamente, como guardo a lembrança feliz do amigo.
Ricardo Rangel, que morreu aos 85 anos, a 11 de Junho de 2009, nascera a 15 de Fevereiro de 1924, há precisamente 100 anos! É uma efeméride que nos diz muito. A despeito de sermos um país do descaso, da desmemória ou do esquecimento. O seu nome está entre os nossos maiores intérpretes: José Craveirinha, Noémia de Sousa, Luís Bernardo Honwana, Malangatana, Alberto Chissano ou Fany Mpfumo. Os nossos instauradores. Os grandes intérpretes da moçambicanidade.
Cidade do Cabo, 15 de Fevereiro de 2024
“Caminhai célere, ó jovem povo do Quiteve, e vinde ouvir a história de Malidza, que morreu de amor. Uma grande ternura agasalhava-lhe o corpo de ébano (que ela protegia para Kilomko, o guerreiro) e punha nos seus olhos cintilações habitadas pelos génios antigos das florestas. O colo guardava a macia tepidez das sombras e era tão silenciosamente como a luz que Malidza percorria as veredas, as savanas. Requestavam-na os mais expeditos; transformou em temeridade a audácia dos mais valentes. Caíram alguns no calor das refregas, peito trespassado pela lança dos guerreiros de Maruça. Havia nas suas gargalhadas duas coisas: a alegria da brisa das alvoradas que despenteia as árvores e, também das árvores, a frescura da seiva.
Um dia apareceu na aldeia o nhamessoro para invocar Zúzu, o espírito das águas. Todas as moças acabadas de donzelar na última lua, espantadas ainda pelo prodígio grandioso de um pouco de sangue entre as coxas, dançavam então o seu espanto. Dois embondeiros soberanos, tão cheios de rumores eucarísticos como dois altares, cruzavam as ramagens por cima do terreiro lançando sobre as moças uma bênção de sombra. Malidza, como as outras, dançava. Dançava e ria. Kilomko, de longe, espreitava-lhe o corpo a requebrar-se nos espasmos da dança. Os seus feitos de guerra enchiam de espanto as aringas. Pela noite adiante, quando as famílias se acocoravam em torno das fogueiras, os mais velhos evocavam Kilomko e os mais novos tremiam de uma admiração sagrada.”
Carneiro Gonçalves (Contos e Lendas)
Este belíssimo texto tem oito brevíssimos parágrafos e é uma pungente e trágica história de amor. Kilomko encontrou Malidza, em certa madrugada, regressava ele dos seus combates. Diante do seu olhar, caiu-lhe a lança da sua mão invencível, pela primeira vez. Esperava desde então o fim das guerras para a desposar. Mas, um dia, o “nhamessoro” apareceu na aldeia para invocar o espírito das águas. No momento da dádiva, o mago poderia escolher a jovem que o impressionasse mais. Essa escolha recaiu sobre Malidza.
Mais não conto. A lenda está no livro “Contos e Lendas” ou em antologias de contos moçambicanos. O seu autor: Carneiro Gonçalves.
António Carneiro Gonçalves, nascido a 21 de Junho de 1941, morreu a 20 Janeiro de 1974, faz hoje 50 anos, num inexplicável acidente de viação, aos 32 anos, deixando não apenas este texto, que iria integrar o livro póstumo “Contos e Lendas”, editado pela mão do poeta Sebastião Alba (pseudónimo de Dinis Albano Carneiro Gonçalves), seu irmão, mas também contos que dariam para um outro livro e um romance escrito e reescrito. Era jornalista, deveria integrar, naquele ano, a redacção do “Expresso”, em Lisboa, viajava para a então Lourenço Marques, hoje Maputo, onde iria apanhar o avião para Lisboa, ia também no carro o poeta Julius Kazembe.
O prefácio do livro é um dilacerado elogio de irmão para irmão. Escreve Sebastião Alba: “Na noite de 20 de Janeiro de 1974, meu irmão ia ao volante, ao largo das estrelas. Seu companheiro de viagem ter-lhe-ia dito: “Carneiro Gonçalves, olha que noite!”; e o carro em que seguia despistava-se a vinte quilómetros de Vilanculos; ele morreria hora e meia depois, no posto sanitário dum areal nocturno. Tinha trinta e dois anos e – rigorosamente – o que sonhou. A mim, apenas quinze meses mais velho do que ele, fora destinado o definitivo infortúnio de escrever estas linhas.”
O texto de Alba é escrito vinte dias depois da tragédia e é o prólogo do livro que ele organizou. Traz duas lendas, entre as quais “Malidza”, contos e o fragmento de uma novela. Um ano antes, na revista “Tempo”, no suplemento literário dirigido por Rui Knopfli, que o entrevistara, o autor de “Contos e Lendas” deixaria a sua biografia sintética e magistralmente grafada: “Tenho trinta e um anos, vi a luz do dia em Braga, mas nasci em Tete. Faço questão de conhecer o Zambeze. Com os contos que tenho poderia pelo menos publicar dois livros. Lá virá o dia. Ensaiei um romance que reescrevi já algumas vezes. Ontem mesmo ia na primeira página...”
“Malidza” é um dos textos da minha mitologia literária. Acompanha-me desde o secundário. Nele fui sufragar o seu riquíssimo vocabulário, as expressões linguísticas, as metáforas. Um único parágrafo daria para discussão de uma aula inteira. O dicionário para encontrar o significado das palavras. O exercício da sinonímia. A riqueza vocabular, a riqueza semântica, a expressiva capacidade de contar, em pouco mais de três páginas, uma belíssima história seriam, para mim, uma grande lição de escrita.
Aprendi ainda, com este texto, que a narrativa ou a prosa não eram expressões despidas de poesia. Antes pelo contrário. A bela prosa era também a expressão cabal de boa poesia. O ritmo das frases. As suas metáforas. As suas imagens. O seu encadeamento. As suas invocações. A escolha das palavras. As palavras certas na frase. As palavras escolhidas com desvelo. As palavras ditas com enlevo. As palavras escritas com inequívoca beleza. A musicalidade das palavras.
Em 2005, foi publicado em Portugal o volume “A Escrita de Anton”, de Carneiro Gonçalves (organização e estudo introdutório de Calane da Silva e notas biobliográficas de António Sopa), que recolhe os textos que haviam sido dados à estampa na recolha “Contos e Lendas”. Acrescenta-se-lhe uma lenda pelo menos, alguns contos, crónicas e um punhado de textos puramente jornalísticos. Li o longo texto do Calane da Silva, polvilhado de muita informação, que ajudam a compor o perfil deste escritor desaparecido precocemente. Chamavam-no os mais próximos de Anton, o nome do seu primeiro contista predileto, Anton Tchekov.
Rui Knopfli num texto remoto dizia-nos: “Carneiro Gonçalves comete às letras moçambicanas o ânimo e a frescura do seu discurso lesto e elegante, de um rigor que não pactua com fáceis efeitos de embelezamento, antes se cinge aos calculados riscos de uma disciplina que é, simultaneamente, a da cultura e a de uma ática simplicidade. (...) Razão, talvez, por que a sua prosa desencadeia em nós a fragrância de um vinho novo e generoso, acidulado e nobre.”
Sebastião Alba aduziria na sua lancinante evocação: “Meu irmão caminhava em sombra; caminharia sem se voltar até ao fim das nossas vidas. E, afinal, era o que a todos nos restava dele. Não estou certo de que tenha feito uma boa escolha, pois de quase nada estou seguro. Como sucede com muitos de nós, ele acreditava que aquilo a que se chama a visão de um artista é a sua primeira imagem poética do mundo, essa que ao longo da vida se busca fixar num fundo de luz permanente. Vinte dias após a morte dele, não posso ainda impedir-me de esbarrar no que se me afigura uma evidência pavorosa: a obra desde já irrealizável e a que, algum dia, lograsse acabar, tiveram para ele um mesmo e último sentido.”
Carneiro Gonçalves tinha uma estranha predileção pela lua. A lua ou o luar são títulos de seus contos ou escritos, atravessam as suas histórias. Naquela noite de 20 de Janeiro de 1974, ele ia ao volante e terá dito o seu companheiro de viagem: “Olha que noite! Que luar tão lindo!”. Carneiro Gonçalves, ao que parece, fascinado com o luar, despistou-se entregue a essa visão sublime que o prendeu ali para sempre.
No texto de Alba, redigido próximo da morte do irmão, não aparece a referência ao luar: “Que luar tão lindo!” Calane da Silva acrescenta-lhe essa frase e diz que a confirmou de um amigo indefectível de Carneiro Gonçalves, João Schwalbach. Sou amigo, há mais de trinta anos, do Julius Kazembe. Sei que ele ia com o Carneiro Gonçalves naquela noite, falámos eventualmente de Carneiro Gonçalves, mas sempre evitei abordar a história e os pormenores de um dos trágicos acidentes que marcam a história literária de Moçambique. Hoje, para além de “Malidza”, que recitei ao largo desta noite de lua envolta numa perseverante neblina, voltei a pensar no meu amigo Julius Kazembe e no trágico destino do Carneiro Gonçalves. Um dos melhores entre nós. Passam 50 anos sobre a sua morte e uma nuvem espessa de desmemória e deslembrança cobre-lhe o nome e a obra. O que, de todo, não é estranho entre nós, onde avulta o olvido e a omissão, o descaso e o desapreço.
Cidade do Cabo, 20 de Janeiro de 2024
Nelson Saúte
“Dum grande poeta deu-se o nome
a uma suburbana
nem tanto quis em vida
das ‘solidões lacustres’
que seu facho ainda alumia
dos nítidos e urbanos
dias ermos
escreveu e morreu”
(Sebastião Alba, “O Ritmo do Presságio”)
Este belo e pungente poema, que termina com versos lapidares (“fulge limpidamente / nas memórias mais graves / dos melhores de nós”), de Sebastião Alba, sucede, cronologicamente, a um outro, de Noémia de Sousa, “Poema para Rui de Noronha – No aniversário da sua morte”, escrito em 1949, e que termina, de forma igualmente lapidar e lacerante: “Como um cometa / atravessando a noite dos nossos peitos esmagados.” A tragédia do Poeta, que subscreve o mito, teve o seu epílogo no dia 25 de Dezembro de 1943.
António Rui de Noronha nascera a 28 de Outubro de 1909, filho de pai originário de Goa e de mãe nascida na África do Sul. Viveu os seus primeiros anos com a mãe biológica, Lena Sophia Bilanculu. Quando o pai, José Salvador Roque das Neves de Noronha, se casa com uma senhora oriunda da Índia, de nome Ana Luisinha de Figueiredo, o pequeno Rui e o seu irmão Amâncio passaram a viver com o pai, a madrasta e os irmãos do casamento subsequente do progenitor. Estudou no liceu que leva hoje o apelido de Escola Secundária Josina Machel, concorreu e foi admitido nos Caminhos de Ferro como aspirante. Ali, a par da sua atividade jornalística, estabeleceu a sua tribuna. Estreou-se aos 17 anos, colaborou em jornais e revistas, fez crítica de teatro e de cinema. Viveu apenas 34 anos.
O poeta ferroviário escreverá “No Cais”, publicado em “O Brado Africano”, em 1934: “Há vibrações metálicas chispando / Nas sossegadas águas da baía. / Gaivotas brancas vão e vêm bicando / peixinhos numa louca gritaria.” Este poema foi recolhido na sua obra póstuma “Sonetos” (1946), organizada e apresentada por Domingos Reis Costa, seu antigo professor, que lhe terá adulterado a obra. O poema, igualmente amofinado, termina com o seguinte terceto: “E ouve-se mais forte, mais vibrante, / Os pretos a cantar, a noite adiante, / Por entre a bulha e o pó das carvoeiras…”
Mário Pinto de Andrade, intelectual angolano de grande gabarito, num ensaio magistral e fundador, “Origens do Nacionalismo Africano: Continuidade e rutura nos movimentos unitários emergentes da luta contra a dominação colonial portuguesa 1911–1961” fala-nos de uma geração de “proto-nacionalistas”, uma geração que precedeu à sua (cunhada por ele como “Geração Cabral”), que nas primeiras décadas do séc. XX, quer em Portugal, sobretudo em Lisboa, quer nas chamadas colónias (São Tomé e Príncipe, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau e Moçambique) empreenderam os primeiros tentames da resistência e protesto. Seriam “proto-nacionalistas”, “pan-africanistas” ou “nativistas”. A questão racial era central, a problemática do ominoso colonialismo. A verdade é que pertenciam a um “movimento negro anti-racista” que se afirmava. Eram os movimentos pan-africanistas, na América avultavam os movimentos dos direitos cívicos, onde pontificam as figuras de Booker T. Washington, W. E. B. Du Bois ou Marcus Garvey.
Creio que a figura de Rui de Noronha deve ser enquadrada nesta geração dos chamados “proto-nacionalistas”. Era o gérmen da rebelião, da contradita, da divergência. Temos por adquirido que o movimento emancipador iniciou nos anos 60. É uma forma oblíqua de ver a História. Há predecessores cujo papel é preciso reparar. À sua biografia desencontrada, marcada pelo infortúnio, ir-se-á confundir uma obra precursora. Poeta esquecido ao longo de décadas, ao ser evocado não falta a mofina que lhe ditou a vida. Fátima Mendonça, que lhe fixou a obra e esclareceu muitos dos equívocos que a edição, sob a égide de Domingos Reis Costa, estabeleceu, insurge-se contra o determinismo biográfico que obscurece uma poesia que vai além do sofrimento, da infelicidade, do desgosto ou do tormento. O porfiado trabalho de Fátima Mendonça muito fez para obviar esse mito redutor e apoucador que aviltava o estro de Rui de Noronha.
“Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do mistério. / Dormes! e o mundo rola, o mundo vai seguindo…/ O Progresso caminha ao alto de um hemisfério / E tu dormes no outro o sono teu infindo…” As sim inicia o poema “Surge et Ambula”, imbuído da sua “missão de fazer despertar consciências adormecidas”, como assevera Fátima Mendonça, num continente “onde fervilhavam já as expressões nacionalistas que o pan-africanismo sugeria”. O texto “Rui de Noronha, o esquecido?” foi publicado na revista “África” n.º 13, em 1986. Nesta mesma publicação, no seu número inaugural, em 1978, Francisco de Sousa Neves, no texto “A poesia de Rui de Noronha” defendia que as versões da edição póstuma de “Sonetos” poderiam corresponder a variantes deixadas pelo próprio poeta. Esta “tese” ia em sentido contrário às posições de Rodrigues Júnior que tinha acusado Domingos Reis Costa, encarregado da edição da poesia de Rui de Noronha, de lhe ter alterado e adulterado os sonetos. Isto em 1951! Mais de vinte anos depois, nos anos 70, Guilherme de Melo voltou à liça: um exame ao espólio do poeta revelava isso. Uma atitude preconceituosa em relação a quem denunciara tal aviltamento arrastaria a questão que denigre o Poeta por décadas. Os estudiosos e os antologiadores, por descaso ou abulia, não se ativeram à denúncia de Rodrigues Júnior e reiteradamente mantiveram a franquia torpe de Reis Costa.
Fátima Mendonça debruça-se sobre esta questão: “Foi um erro de que a literatura moçambicana foi vítima e que urge remediar, repondo a verdade. Efetivamente, grande parte dos sonetos publicados apresenta versões que não correspondem às que foram publicadas em vida pelo poeta, em “O Brado Africano”. Um exame ao espólio do poeta – em poder da sua filha – revela que o professor Reis Costa, por sua própria mão, alterou grande parte dos sonetos sobre os originais, tornando-os praticamente ilegíveis. Desta forma, o espólio devolvido à família está praticamente inutilizado. De notar ainda que o compilador deixou de lado inexplicavelmente alguns sonetos e toda a produção poética que não obedecia a esta forma”.
Fica, no entanto, quanto a mim, um enigma por elucidar: por que razão Reis Costa consignou de volta à viúva do Poeta, Albertina dos Santos Noronha, os textos ultrajados? Para mim, é um mistério. Soberba? Zombaria? Confiava demasiado na sua sobranceria ou debochava da crítica e do crivo futuros?
Fátima Mendonça, que defendia na época em que produziu o seu texto, informado e vigilante, advertia que a obra e o poeta Rui de Noronha obrigavam-nos a promover uma edição crítica e reparadora da injustiça praticada por Reis Costa. Vinte anos depois, foi editada a obra “Os Meus Versos – Rui de Noronha” com organização, notas e comentários de Fátima Mendonça. O título do caderno original deixado pelo poeta era justamente “Meus versos” e essa era a intenção da organizadora. O zeloso editor acrescentou-lhe “os”, alterando-lhe título. É irónico: parece que o poeta está fadado a este tipo de infortúnios. Não quero imaginar a fúria da estudiosa.
Primeiro fora Rui Knopfli, que lhe chamara “a primeira voz” (na revista “Tempo”, em 1973), e depois Sebastião Alba, que o homenageara no belo poema (publicado em 1974) que serve de epígrafe a este texto, e, mais tarde, José Craveirinha que lhe chamara “o Grã poeta da circunvalação”, que haviam estimulado o interesse e o fascínio que Fátima Mendonça desenvolveria sobre a obra e a figura de Rui de Noronha. Aliás, recordo-me das vezes que Craveirinha o evocava e descrevia na geografia emocional e cultural da Mafalala. Também Noémia de Sousa falar-me-ia de Rui de Noronha e de outras ínclitas figuras daquela época, como Estácio Dias, Karel Pott, os Dahan ou os Mata e todos aqueles que habitavam “O Brado Africano”, como os fundadores João e José Albasini.
Aníbal Aleluia, em dezembro de 1950, escreveria sobre o Poeta em “O Brado Africano”. Michel Laban , em 1992, quando o entrevistou, não evitou a pergunta óbvia: “Conheceu Rui de Noronha?” Aleluia retorquiu: “Conheci. Era um homem solitário, um temperamento a um tempo romântico e melancólico, de uma sensibilidade rara. A sua poesia traduzia a um tempo fatalismo e inconformismo. Parecia profundamente afectado pelo racismo então muito forte nesta terra. Creio que foi isso que o levou ao abandono de si mesmo, qualquer coisa como a busca do Nirvana. Não quero aludir a aspectos da sua vida que jogam com sentimentos íntimos, uma paixão não correspondida que se lhe atribui e que, no dizer de alguns, ditou o seu precoce passamento pela Terra.” (“Moçambique – Encontro com Escritores”)
Eduardo White (“Rui de Noronha, o poeta que a morte não poupou”, 1984), quase trinta e cinco anos depois irá descobri-lo. Da mesma geração, Mikas Dunga (Pedro Chissano) irá sobre ele discorrer na “Charrua”: “Encontro marcado com Rui de Noronha” (“Charrua” n.º 2, 1984). Importa referir o importante trabalho de Olga Iglésias, profusamente citado por Fátima Mendonça. Manuel Ferreira, um dos precursores, em Portugal, do estudo e divulgação das nossas literaturas, situou-o diligentemente. Mário Pinto de Andrade também o fizera na “Antologia Temática de Poesia Africana”.
Logo no texto que abre a coleção dos textos “Meus versos” escreve o poeta: “Mas o meu canto é mágoa.” Isto lhe define o destino: “Cruel destino o meu que ao meu caminho trouxe”, escreverá no soneto subsequente, que termina assim: “Que eu ficarei cantando o nosso eterno amor!” Estes versos primeiros parecem definir-lhe o anátema: “Vem de séculos, alma, essa orgulhosa casta, / Repudiando a dor, tripudiando a lei, / Num gesto de altivez que em onda leva, arrasta, / Inteiras gerações de amaldiçoada grei.”
A dor, a tristeza, a solidão, a amargura, a noite, o frio, a mágoa, os infernos, entre outros sintagmas, dominam estes versos que ajudam a construir a imagem de um poeta enjeitado pela raça e pela amada e que se deixa destroçar até à morte. “Porque é através da Dor, não da Alegria / Que eu mais sinto a beleza, a poesia / Duma manhã que canta e de um poente…” Ou num outro poema: “Oh, minhas ilusões, mágoas sem fim!”. “E eu sou tristeza sempre, sempre pranto…”.“… E eu nada tenho por amar-te tanto!”
A dor reiterada: “Só nesta dor que me sepulta, ignoto / Não chega a luz da lua e nunca noto / A beleza das cousas sempiternas.”. Os “Dias Tristes”: “Tristeza de si própria comovida…” A dor, sempre a dor: “A dor eterna é dor; mas dor maior / É aquela que um momento foi menor / E se tornou imensa em dor volver…” No poema “Caminhos”: “E eu entristeço e penso em quanta mágoa”. E no texto “Eternamente” escreve: “E esta amargura acerba de cair.” Ou no poema “Menti?”: “Vê tu quanta amargura novamente...”
O poema “Sonho Desfeito”, não coligido na edição póstuma, é assertivo quanto ao seu infortunado amor: “Foi curta a história desse amor que eu tive, / Mas foi profundo e triste o rasto seu. / Foi rápido e fugaz como o declive / Do aerólito que no céu correu…” José Craveirinha, na entrevista que concedeu a Michel Laban, em 1993, também se lhe refere: “Eu lembro-me do Rui de Noronha a dizer-me: ‘Continua, miúdo. Continua…’ Ele passava aqui, nesta rua, vou-lhe mostrar a casa onde ele morava. Ele saía de serviço, trabalhava no Caminho de Ferro, vinha para casa. Depois da casa, vinha assim sozinho, seu fatinho de linho, seu chapéu na mão… Esta rua não era alcatroada, era areia. Andava à volta e passava pela sua Dulcineia – a mulher que o inspirou sempre e que casou com outro. Mas que ele amou até à morte. Ele ia assim, passava e ela às vezes aparecia na varanda. Ele ficava assim, só para ver – já casada com outro. E ele voltava. Era um homem triste. Nunca o vi exuberante, a rir-se. Eu cheguei a vê-lo no “Brado Africano”, chegou a ser chefe de redacção do “Brado Africano”, mas sempre triste. Aliás, morreu cedo: ele não morreu, matou-se. Sim, praticamente matou-se, porque ele estava proibido de beber e bebia álcool puro.” (“Moçambique – Encontro com Escritores”).
Rui de Noronha: “Amei-te tanto, meu amor, oh, tanto!…/ Que ver cair tão súbito este encanto / Eu acredito que te amei bem pouco…”. Ou num outro poema: “Ninguém te amou como eu te amei outrora”.
Mas Rui de Noronha foi também o poeta que escreveu sobre os “Patshises” (carregadores no cais): “A pena que me dá ver essa gente / com sacos sobre os ombros cansadíssima / Às vezes é meio-dia, o sol tão quente / E os fardos a pesar, Virgem Santíssima!”, ou sobre os “Mavikis” (contratados à semana): “De manhãzinha, a mata ainda escura, / Ainda dormindo os colibris nos ninhos, / Partem cantando uma canção obscura, / Em variados grupos ou sozinhos”. Poeta que reparou da humilhação de um herói: “E o Gungunhana, em pé, sereno o aspecto, / Fitava os dois, o olhar heroico, augusto”. Isto diante de Mouzinho. Poeta extraordinário desse fabuloso “Quenguêlequêze”.
Fátima Mendonça é assertiva: “É esta contradição, lucidamente assumida, que Rui de Noronha expõe aos homens do seu tempo. E é precisamente um dos polos do eixo em que se move essa contradição que a edição póstuma de “Sonetos” escamoteia. A seleção feita por Domingos Reis Costa criou uma imagem deformada do homem e a da obra, esta a servir aparentemente de refúgio para as inquietações e angústias daquele. Se a obra de Rui de Noronha exibe permanentemente um conflito não resolvido , dela faz também parte a afirmação da identidade africana.” (“Literatura Moçambicana – A História e as Escritas”).
Noémia de Sousa, no “Poema para Rui de Noronha” escreve: “Mas o archote, murcho e fraco, / que tuas mãos diáfanas mal lograram suster, / deixa que nós o levemos!” Rui de Noronha fica assim consagrado como a voz fundadora da poesia moçambicana, pese embora, na Ilha de Moçambique, José Pedro Campos Oliveira, seja efetivamente o primeiro poeta nascido em Moçambique. O mito fundador fica assim endossado pela poderosa voz de Noémia de Sousa. Com José Craveirinha, Fonseca Amaral, Rui Nogar, entre outros, ela estará na origem da poesia de raiz marcadamente moçambicana, anos depois, no dizer de Rui Knopfli. Naquele poema evocativo, de 1949, a autora de “Sangue Negro” concedera a Rui de Noronha, que morrera seis anos antes, no dia 25 de dezembro de 1943, passam hoje 80 anos, os “trilhos abertos a golpes de catana” na literatura moçambicana.
“Desperta! O teu dormir já foi mais do que terreno.
Ouve a voz do Progresso, este outro Nazareno
Que a mão te estende e diz-te: - África, surge et ambula!”
(Rui de Noronha)
P.S. – Rui Knopfli morreu - coincidência infeliz!-, num dia 25 de dezembro, em 1997.
KaMpfumo, 25 de dezembro de 2023
Quando o infortúnio lhe sobreveio, aos 84 anos, a 6 de Dezembro de 2013, nos arredores de Paris, avultavam, a favor de França, na biografia do poeta Virgílio de Lemos, 50 anos do seu porfiado exílio. Nascera na Ilha do Ibo, a 29 de Novembro de 1929, e pertencera ao escol dos poetas que se afirmaram nos anos ulteriores à Segunda Guerra Mundial em Moçambique, alguns dos quais, como Noémia de Sousa, José Craveirinha, Fonseca Amaral, Rui Knopfli, Orlando Mendes ou Rui Nogar, são responsáveis por intuir e instituir aquilo seria uma poesia de raiz marcadamente moçambicana. Apesar disso, o seu percurso e a sua poesia fazem-se por meios e características diversas daqueles.
Fátima Mendonça, num instigante ensaio de 1987 que estabelece uma periodização da literatura moçambicana, recolhido em Literatura Moçambicana – A História e as Escritas (1989), identifica-lhe proximidades ao surrealismo. Américo Nunes, num texto que antecede A Dimensão do Desejo (2009), fala de “uma experiência simultaneamente lúdica e trágica, erótica e profundamente desassossegada” da sua poesia: “Virgílio de Lemos é um lírico desdobrado de um metafísico.” Reconhece-lhe a “militância” anti-colonial e anti-fascista, mas “não é isso que traduz a essência da sua poesia”. Creio que Poemas do Tempo Presente (1960) não declina um espírito irreverente, contudo, não prossegue o que uma poesia como a de José Craveirinha ou Noémia de Sousa propugnam.
Craveirinha, numa remota entrevista a Michel Laban (Moçambique – Encontro com Escritores, I vol, 1998), não tergiversou quanto a dúvidas que chegou a ter sobre o papel e a personagem de Virgílio de Lemos: “Eram simplesmente dúvidas: de que lado é que o tipo está? E depois aquela coisa de ele pedir-me originais para pôr no jornal da Mocidade Portuguesa…” Aliás, Craveirinha declina quando este lhe propõe colaboração nas folhas “Msaho”, em 1952. Queria ver primeiro, contudo, “Msaho” soçobrou no primeiro número. Colaboram Noémia de Sousa, Reinaldo Ferreira ou Ruy Guerra. Reinaldo pertencia, com Domingos de Azevedo e Virgílio, à coordenação da publicação. Da sua amizade com Reinaldo Ferreira, da sua cumplicidade, há um testemunho afectivo e poético de Virgílio.
Virgílio de Lemos foi preso duas vezes. Foi absolvido no caso da “capulana vermelha e verde” e condenado a 16 meses (o tempo que expendera na prisão) no caso de subversão. O seu ideário (chamou-lhe “crioulismo” ou “barroco estético dos moçambicanos”) passava, a seu ver, por uma amálgama cultural e uma vivência urbana que incluía “brancos, mistos, indianos, chineses e os pretos que dormiam no fundo dos quintais”. Casou com a artista Bertina Lopes (pai português e mãe moçambicana) e teve dois filhos. Contudo, em 1963, desfeito o laço matrimonial e cansado dos imbróglios com os esbirros e as impugnações destes, parte para o exílio. A África do Sul, onde estudara e vivera algum tempo, não lhe parece lugar auspicioso para tal desiderato. Aterra em Paris em Dezembro desse ano longínquo.
Michel Laban fez-lhe a pergunta que se impunha: “Poderia supor-se que, saindo tu da cadeia, te juntasses ao movimento nacionalista organizado…” A resposta de Virgílio de Lemos é honesta: “Cheguei aqui e fiz um balanço para mim. Verifiquei que acima das ideias do movimento de libertação nacionalista, eu devia valorizar a minha própria liberdade de pensamento e de acção, embora denunciando o colonialismo, o salazarismo.” Nada mais lídimo. Quando, por vezes, se fazem exabundantes afirmações sobre o dissentimento de Virgílio de Lemos, creio que vale lembrar a sua liberdade como poeta que lhe divisa a franquia. E respeitar isso. Por conseguinte, a este respeito, nada de pregões.
Era adepto do “barroco estético”, uma demanda que se inseria numa busca de antropofagia cultural baseada numa mestiçagem identitária, o tal crioulismo que ele sempre procurou. No frontispício do livro Negra Azul (1999), que é uma espécie poética de “Cahier d´um retour au pays natal” (Aimé Césaire dixit), fica explicitado: “retratos antigos de Lourenço Marques de um poeta barroco.”
Se é facto que retoma versos da sua dissensão (“bayete-bayete-bayete / à Kapulana vermelha e verde, / se subsistirem no tempo / capulanas de várias cores”), o que temos neste “regresso” é uma poesia sobre uma “cidade, na alucinada posse / que supera o irreal”, na “babilónia de gozos / frágeis luzes e amores”, ou “na solidão que o Infinito / transporta”, “o despertar do fogo e da orgia”, de quem “viveu teu corpo / por dentro” – “a erótica dimensão da noite”.
“O coração da cidade bate
nesta Baixa plural
Polana e Malhanga, Mafalala
e Malanga,
Zélias e Detinhas, Júlias
de grandes decotes e brincos.”
Ou ainda estes versos: “Olhos / de teu corpo / que deslizam dentro / da cidade / viagens pelas ancas / pelas pernas / fogos da cripta / que subvertem / o desejo.” É o retorno ao “mais feminino pôr-de-sol da minha infância”: “minhas mãos entre teus seios / tuas mãos em meus infernos / devaneios, girassóis.” Há, nesta poesia, de Negra Azul, essa “temporalidade sem tempo”, esse “espanto”, “como se adivinhasse as coisas / ávido de liberdade, corpo interior solto, sereno / face à morte, seio, exuberância, gozo em mim dos deslimites”.
É essa a ideia com que ficarei da sua poesia inicial, de um certo exotismo e de uma ideia erotizante de uma realidade muito mais problemática, complexa e inquietante. Provavelmente, uma ideia inexacta ou imperfeita. No livro de homenagem ao seu amigo de geração, o grande poeta Reinaldo Ferreira, Virgílio de Lemos é mais metafísico e estabelece um vasto diálogo com poetas importantes na sua formação e afirmação. Com Reinaldo e na companhia do psiquiatra Fernando Ferreira liam poetas como Rainer Maria Rilke. Mas também Goethe (Wherter), Joyce ou Proust.
“Senta-te aqui Ricardo Reis entra neste jogo
e charla de café, ajuda-nos a irmos mais longe,
superar sonhos gregos e persas, e atravessar
gentes e línguas de oceanos, portos e ilhas.”
Este poema parece denunciar a sua ideia de “barroco estético” e aquilo que então Virgílio prossegue como ideário poético. Cito ainda do mesmo poema:
“Rangel meio chinês e grego, africano tal
os Nicolaus, Rui Guerra e Zé, afro-alentejanos
Cabo-Verdes e Algarves, Carlos Maria e
eu, Virgílio, vindos da malandragem, libertinos.”
Virgílio de Lemos irá escrever no fim do texto: “nós que vadiamos na descontracção de surrealismos, / somos lusismos, cubismos e dadaísmos das artes.” Fernando Pessoa, disse-o, mas também Cesário Verde, Sá Carneiro, Padre António Vieira, Guerra Junqueiro, Jorge de Sena, Camões – safra dos portugueses –, os brasileiros Manuel Bandeira, Cecília Meireles ou João Cabral de Melo Neto, ou poetas como Cavafy, Borges, Mallarmé ou T. S. Eliot fazem a estiva da sua busca. Mas também a música, a pintura, a poesia, a língua. E sempre a presença de Reinaldo Ferreira.
Durban, Lisboa, Paris, Cidade do México, Alexandria, Ibo e Zanzibar. Cidades, ilhas, destinos da sua poesia, da sua metafísica e do seu incessante desassossego. Mas sobretudo esse mito chamado Ilha de Moçambique. Chega à ilha pela primeira vez em 1952, na companhia de Gilberto Freyre, com quem discute uma identidade culturalmente mestiça, crioula, apontando-lhe imperfeições no seu luso-tropicalismo.
“A cultura específica das ilhas é herança barroca”, declarará mais tarde. Ilha de Alberto de Lacerda (onde nasceu e escreverá versos iridescentes) e de Rui Knopfli (autor dessa belíssima A Ilha de Próspero), ilha que será de Luís Carlos Patraquim ou Eduardo White, anos mais tarde, ilha que fora de Camões ou Jorge de Sena, quatro séculos depois, sempre numa invenção poética, numa celebração da língua e da sua mitologia de exílio.
“ilha
que dorme na utopia
pródigo mito
da poesia.”
Estes versos estelares pertencem a Ilha de Moçambique – A língua é o exílio do que sonhas (1999). Ali, onde evoca “os deuses do mar à minha volta”, naquele lugar onde não foge do erotismo (“teu corpo é bruma” ou “sou erotismo / na vulcânica geografia”), onde vive um “incandescente êxtase”, uma “insondável magia”:
“Eu sou pássaro migrante,
das ilhas-mulheres singulares
nenhum corpo igual a outro corpo,
face ao mar o irreal navega.”
Ali onde o poeta viaja e se declara: “sou português swahili / sou celta judeu / não confúcio mas buda”, sempre “no erotismo entre oceanos e / palavras”, “na pátria do desejo”. Na mesma ilha onde homenageia Camões e Pessoa nestes belos versos:
“A ilha de amores é a casa dos mortos, a nau
habitada de infernos, tumultos, espantos, a gruta
dos fogos da alma e obsessões do corpo, culto
das rotas interiores. Solidão, medo e fim, erras
na bruma, sol e sedas do teu corpo, silêncios
e gritos, inventário de mitos, a beleza em busca
de si mesma, confiante, inquieta, fulgurante e neutra
interrogando-se acoplada ao destino em ti.”
Canto desse “mar tão exoticamente azul” e dessa “sensual sensação na sedução azul”, nessa “própria luz feita desejo”. “Nasceste do sonho e pelo sonho morrerás / na revolução que tu próprio estrangulaste. / Foste a Europa, o Império, o mundo foste / na mais erótica irisão do que inventaste.”
Se há uma poesia do Índico, se há uma tradição poética desse destino Oriental, desse Moçambique e desse Oceano, dessa viagem que inclui espaços e ilhas, destinos e espantos, que o poeta exprime nas suas várias línguas, que o poeta sagra e consagra em francês, inglês ou em português, nessa busca assombrada do mar e da sua fortuna – Para fazer um mar (2001) – , é nessa mesma poesia que Virgílio de Lemos faz a sua perquirição, na sua “osmose”, “no diálogo com os mortos”, na “luz oriental da volúpia”. Mas também o inventário das suas ilhas, dos seus mitos e duendes, da sua Ibo matricial, mas tudo o que “antropofagicamente” desencadeia a sua nostalgia poética, passional e iminentemente índica.
Essa nostalgia poética exprime-se e imprime-se luminosamente nesse Eroticus Moçambicanus (1999) demandado no Brasil e pelo entusiasmo de Carmen Lúcia Tindó. Ou em: Lisboa, oculto amor (2000). Do seu longo e obstinado exílio francês: Object à trouver (1988), L´obscene pensée d´Alice (1989) e L´aveugle et l´absurde (1990), livros que suspendem quase trinta anos de silêncio. Duarte Galvão, Bruno dos Reis ou Li Lee Yang, numa heterónima e numa incessante inventiva e busca de si próprio, “a cor, o traço, o som e o gesto”, da sua liberdade e da sua poesia, da sua alquimia, da sua rebeldia, da sua paixão, da sua aventura, do seu gozo e da sua solidão. “O existir feito / deserto e / caos”.
“Serei em tudo “barroco estético” ou nada.
Na fragilidade de palavras e silêncios,
Serei espaços de deslocação,
desconstrução, desenraizamento,
universalidade no singular e plural,
respiração no seio da tragédia
ficção e sonho.”
(Virgílio de Lemos, A Dimensão do Desejo)
KaMpfumo, 6 de Dezembro de 2023
“porque cedo me deram a poesia, essa voz cândida, funda, pela qual empobreço escrevendo versos”
Eduardo White (Os Materiais do Amor seguido de O Desafio à Tristeza)
Eduardo White foi, provavelmente, entre os poetas da minha geração, aquele que levou ao extremo o ideário da poesia – da verdade, da liberdade, da justiça e do entendimento – e aquele que viveu ao limite a ideia romântica de ser poeta. Era talentosíssimo, o mais talentoso dos poetas que gravitaram à volta da “Charrua” e que fizeram dos anos 80 o arrimo da sua poesia, da sua rebeldia e da sua afirmação. Era um vulcão em permanente erupção. Um poeta empolgadíssimo que punha nas palavras o acento da sua intrépida paixão pela vida, o seu amor proclamado pela mulher, pela viagem, pelo Índico, pelo Oriente. Mas também poesia sublinhada (ou sublimada) pelos seus fantasmas, as suas aflições ou os seus tormentos.
Indubitavelmente, o mais talentoso, o mais instigante, o mais inventivo, o mais enérgico, o mais fecundo entre todos nós. Era também luminosamente obscuro. Ou obscuramente luminoso. Escreveu hinos, versos, epifanias. Foi visitado pelos deuses. Testemunho disso: as inspirações, as visões, as centelhas. Escreveu imenso. Trabalhou duramente. Era também um obstinado esteta. Um artífice da palavra. Era fervoroso, vibrante, arrebatado. Poderia ser, ao mesmo tempo, obcecado, truculento, feroz. Escreveu soberbamente. Era um poeta encantado pela língua, pela poesia, pelo destino e pela loucura de ser poeta. Viveu em permanente sobressalto. A sua poesia era um sobressalto continuado. Era lírico, engajadamente lírico. Os problemas do seu tempo e da sociedade não lhe eram alheios, antes pelo contrário. Era um poeta do amor que não virava costas à realidade social. Não suportava as desigualdades, aviltava a mediocridade. Cauterizou sempre a mediocridade e foi cortante com a mediania que trespassa o devir moçambicano.
Eduardo White fez da poesia um acto de combate. Um acto de rebeldia. Um acto de liberdade. Ele propugnava a liberdade livre. Um poeta tem de ser isso mesmo: um homem livre. Livre diante das palavras e do seu tempo, e dos homens e do seu tempo. A liberdade poética de Eduardo White está na origem de algumas das mais belas páginas da nossa lírica. Inscreve-se entre os que estão no cume dessa invenção e dessa aventura de ser moçambicano. Mas era, simultaneamente, um grande poeta da língua portuguesa.
A sua vastíssima obra iniciou-se com um livro que foi uma pedrada no charco. Amar sobre o Índico, editado em 1984 pela Associação dos Escritores, tinha o autor 21 anos, em que escreve “Felizes os homens / que cantam o amor. // A eles a vontade do inexplicável / e a forma dúbia dos oceanos”. Aqui parece produzir-se um ideário e um programa. A esta distância, estes versos parecem pacíficos. No entanto, nos anos em que foram escritos, em que deram corpo, voz e rosto a um poeta (Eduardo White), não poderiam ser mais resolutos. Vivíamos os tempos da revolução e numa circunstância em que os seus prosélitos não anteviam outra possibilidade senão os amanhãs que cantam.
White e a sua geração denegaram a incumbência de cantar a revolução, ou até a luta armada. Não se assumiram ufanos, nem fizeram da Pátria um destino ou uma desinência, mas sim a poesia e a liberdade do indivíduo num tempo e num contexto histórico em que o assomo colectivo e colectivista não admitia nenhuma contradita. Escrever sobre o amor era, por assim dizer, uma sedição.
O seu segundo livro decorre de uma contingência: o hediondo massacre de Homoíne, em 18 de Julho de 1987. A nossa amnésia condescende até com a barbárie. Somos um povo resignado. Num magro volume, de um poema em oito partes, justamente intitulado Homoíne (1987), Eduardo White recusa o anátema: “Os nossos mortos são muitos, / são muitos os nossos mortos / dentro das valas comuns” e este seu gesto é (também) a negação do “pássaro lento do esquecimento” dessa “morte explodindo como um tiro” e desse “impiedoso silêncio”: “Mas o que os mortos não sabem nem imaginam, / é que no coração dos que ficam, no coração dos vivos / inteiros permanecem e decididos VIVEM.”
O terceiro livro, obra do seu amadurecimento, surge em 1989: O País de Mim. O amor, de novo: “Eu já amava e escrevia versos / nas paredes do útero da minha mãe”: “Assume o amor como um ofício / onde tens que te esmerar”. A mulher (“MULHER! / Essa palavra que só secreta / cabe na boca / e que apetece tê-la, constantemente, / a meio da língua”). O corpo (“Teu corpo é o país dos sabores” ou “teu corpo essa casa feliz”). As palavras: “Não gosto do pudor de certas palavras”. O Índico: “És o Índico – numa tarde quente de Janeiro”. A morte. “Quando morrer / quero fazê-lo sem rumor algum, / sem ninguém que me chore / ou a quem doa”.
A morte, depois de Homoíne, irrompe brutalmente na poesia de Eduardo White. Neste livro, é vista como “nocturna ave”. A ave e o voo serão sintagmas importantes da obra subsequente. Mas a morte aqui é impressiva: “Diário é também / o ofício da morte neste país / essa gangrena de fome e de sede / e de desentendimento”. Quase quatro décadas depois, estes versos permanecem dilacerantes, verdadeiros e actuais. Perturbadores, avassaladores. Diria que este livro – O País de Mim – está nessa bissectriz entre o amor e a morte: “E aqui estamos, amor, vivos / na nossa morte”.
Em 1992, Eduardo White publica Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave. Retorna à prosa poética que publicara esparsamente nos meados dos anos 80. Na “Gazeta” da ínclita Tempo haveria de publicar, naqueles ominosos anos, um belíssimo texto inédito em livro: “O país de Inês” (1986). No tempo em que lhe era hodierno, o poeta apostrofa: “Eu não posso morrer qualquer dia com todo este desconhecimento sobre as aves. Peço licença à poesia. Quero-as voando em meus versos e também um mar e dois ou três navios que se achem por perto que desmereça toda a beleza disso deixai que escreva pois a vontade prevalece e queima”.
A morte ronda este livro. Mas também a fuga à realidade obsidiante. “Podemos sonhar sem limites mesmo que a insónia nos castigue”. A vontade da escrita: “Uma mão relampeja na casa da escrita.” “Escrever é uma droga antiga, / uma bebedeira que queima com lentidão / a cabeça, / traz as luzes desde as vísceras, / o sangue a ferver nas vias tubulantes, / traz a natureza estimulante das paisagens / que temos dentro.” A loucura de ser poeta (“Dá-me aquela secreta mão de Deus” ou “este desejo irrevogável do meu poeta”). O dom do voo e a oferenda da escrita: “Voar é uma dádiva da poesia.”
A recusa da morte. A morte, sempre. A morte interior. Ou, se quisermos, o milagre da vida, em anteposição. “Voar é não deixar morrer a música, a beleza, o mundo e é também fazer por escrever tudo isso”. Os assombros do poeta. Os pavores do poeta. Os seus desesperados. Os seus “sonhos terríveis”. Os espantos do poeta.
Os Materiais do Amor seguido de O Desafio à Tristeza (1996) traz os sinais da viagem ao Oriente: “Amo-te sem recusas e o meu amor é esta fortaleza, esta Ilha encantada, estas memórias sobre as paredes e ninguém sabe deste pangaio que ao Norte e na Ilha traz um amante inconfortado.” Mas é também o lugar “onde igualmente possa chorar a minha trágica fatalidade de poeta”. Ou o lugar da beleza, da poesia e da mulher: “tu que és uma mulher e explodes pela beleza de ser isso.”
Eduardo White: “Todos os dias enlouqueço de uma loucura qualquer, de qualquer sentido doente que sobre o meu sangue se curva. Todos os dias tenho perguntas para tudo e não tenho respostas nenhumas e a minha mente, que é carnal de medo e memória sem propósito, não descansa.” Ou: “A vida que é um suposto mal entendido como, aliás, eu próprio.” Ou ainda: “Estou cansado de trazer este peso comigo, este abismo para onde me atiro”. Isto é terrível. Mas o que vem a seguir é ainda mais assombroso: “Por isso é que deixei que os versos me desvanecessem a juventude até onde podiam”.
White: “Por isso é que não existo como um número e o Estado não me dá importância devida. Por isso é que sou liberal só nas coisas em que tenho que ser liberal. Por isso é que a polícia me vigia. Por isso é que não há tranquilidade para quem se põe a escrever. E por isso também é que pergunto porque escrevo e que sentido é que terá a escrita dessa maneira que ninguém a lê. Por isso é que as respostas não existem e eu estou aqui a matar-me sem razão aparente para o fazer”.
A resposta a esta tremenda questão encontrá-la-emos no livro ulterior – Janela para Oriente (1999) – “Escrever é uma razão forte, é uma audácia profunda”, “Não quero outra coisa senão este mistério em que me invento”. O poeta estabelece nesta obra outro cume da sua invenção. “Para que precisa um poeta de glória quando não pode escrever?” Este é um belíssimo hino à condição do Índico e da vontade do Oriente. Mas também um solilóquio de um poeta aturdido com o destino do mundo e do homem. Um homem solitário no interior da poesia. “Mas eu não suporto a solidão, reconheço-o , não suportar estar só com tanta clareza, com tanta consciência.”. Um poeta que reconhece a realidade contraditória em que vive. “No fundo o Oriente é o desejo transbordante de tão súbito desespero, uma fuga ao enclausuramento.” “O Oriente é também uma ambição”: “A janela do quarto de onde escrevo é de um esplendor que dá vontade de saltar por ela”.
A poesia de Eduardo White torna-se mais ontológica, reflexiva, doutrinária e questionadora. Em Dormir com Deus e Um Navio na Língua (2001) permanecem as inquietações: “Vivo intensamente todos os dias esse milagre de não parecer estranho o que se parece estranho em mim, porque posso perguntá-lo, tentar conhecê-lo porque posso traduzi-lo traduzindo-me”. A língua é também um território de pertença: “Preciso dela, pois é tudo o que tenho como ferramenta e como trabalho, como propósito e intuição. Escrevo para que se entenda”. White amou implacavelmente a língua, a sua língua. Amou como poucos a língua portuguesa: “Doer-me-ia se tivesse que viver exilado dela, morreria se a ela fosse impossível voltar.” Não há muitos como ele, entre nós, que se tenham elevado tão assim no canto desta língua: “Tem uma origem divina esta língua quando a pronuncio e me embevece, um bálsamo pra o que choro”. Isto é de uma beleza comovedora. Isto é pungente. Pungentemente belo.
Seguem-se-lhe, na estante de autor, As Falas de Escorpião (2002), O Manual das Mãos (2004), O Homem a Sombra e a Flor e Algumas Cartas do Interior (2004), Até Amanhã Coração (2007), A Fuga e a Húmida Escrita do Amor (2008), Dos Limões Amarelos do Falo às Laranjas Vermelhas da Vulva (2009), A Mecânica Lunar e a Escrita Desassossegada (2012), O Poeta Diarista e os Ascetas Desiluminados (2012) e o epílogo Bom dia, Dia! (2014). De permeio, O Libreto da Miséria (2010). As mesmas inquietações. O mesmo destino de ser poeta. “Um poeta não é para se perceber, é para sentir-se” (O Manual das Mãos). A aspereza desse fatalismo. “Aqui ninguém liga peva à poesia. Nem à poesia e nem a outra coisa nenhuma que cheire a cultura.” Canta o destino do poeta: “Nos poetas cada palavra tem o seu milagre”, mesmo diante da realidade acerba. Aliás, sobretudo diante da rudeza ou acrimónia da realidade.
Diria, como súmula, que o poeta Eduardo White contraditou, obstinadamente, essa realidade brutalmente áspera, agreste, rude, dura, insensível, severa, insensível. Aliás, se quisermos intuir o sentido da sua poesia, do seu alto canto e do seu destino foi uma implacável contestação dessa realidade, foi uma objecção permanente, um questionamento, uma indagação e uma demanda constante. Um poeta amante da vida e do amor. Amante da sua loucura de ser poeta.
Poeta apaixonado, arrebatado e arrebatador, efusivo e fervoroso, amante feroz da mulher e do seu corpo, da língua e do seu destino, navegante do Índico e do Oriente, implacável contra a morte e esse “pássaro do esquecimento”, oficiante da língua e esconjuro da morte, ele divisou a vida e a fortuna da poesia como a “vontade do inexplicável” e “a forma dúbia dos oceanos”.
Amou a língua e os poetas. Amou Rui de Noronha ou Jorge Viegas, José Craveirinha ou Glória de Sant’Anna, leu Rui Knopfli ou Luís Carlos Patraquim, leio-os com método, foi indefectível de Sophia de Mello Breyner Andresen, Herberto Helder, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Vinícius de Moraes ou Fernando Pessoa, viveu a loucura de ser poeta. Aliás, Jorge Viegas, seu conterrâneo, escrevera: “No meu país / a única forma de liberdade permitida / é a loucura”. Eduardo White buscou incessantemente essa liberdade e essa loucura. Viveu como poeta, amou como poeta, morreu como poeta. Teve essa coragem e essa afoiteza. Foi capaz da contradita, da sedição. A poesia foi nele um gesto de audácia. Os versos do poema 60 de O País de Mim parecem inscrever, na pedra angular do tempo, esse destino indesmentível de poeta e esse tom irrevogavelmente elegíaco: “Estamos na morte com o mesmo encanto e com a mesma mestria com que estivemos na vida.” São premonitórios. O poeta declinaria a 24 de Agosto de 2014, aos 50 anos. Viveu até ao fim com estrépito. Celebrou sempre o milagre da vida. Com ímpeto, com arroubo, com veemência. Recordo-o assim: a sua coragem e a sua euforia de ser poeta. A sua alegria, também. A sua fúria. A sua bebedeira até ao fim, embriagado pela vida e pelo amor. Tinha nascido, em Quelimane, a 21 de Novembro de 1963, passam hoje, precisamente, 60 anos.
Cidade do Cabo, 21 de Novembro de 2023
“– Ele vai bater! Hê! Hê! Bate mesmo!...
– Deixa lá isso!... – interrompeu o estudante, num tom de voz contrariada e que parecia mais apropriada para um professor.
– Olha, n´duwê, eu paguei dez escudos, como você...
– Pôrra! Que merda é essa?... Mas não quero que conte!... – replicou o estudante, já com a voz a ficar rouca de ira.
– Faz o que quiser, mas eu farei aquilo que entender!...
– Merda, pá! Ficar com molwenes, pá, é chato!
– Não fala assim para mim, ouviu? Se sou molwene, qual é o mal? Sou molwene e também sei isto – mostrou o punho cerrado com vigor – e isto! – bateu no crânio - A chim-butso!, irmão...sou de Bilene Macia, nwana mamana! – e abanou a cabeça. – Preto é duro!
Bateu com o punho no peito, posto a descoberto pela camisa desabotoada, até ao sítio onde começava o ventre.”
(“Os Molwenes”, Isaac Zita)
Não fosse o infortúnio da sua prematura entrevista com a morte, a 17 de Julho de 1983, Isaac Zita ter-se-ia afirmado, indubitavelmente, como o primeiro talento de verdadeiro gabarito na ficção moçambicana no pós-independência, tão surpreendentes quanto invulgares eram as suas qualidades como prosador. A sua erupção literária, no entanto, foi brevíssima, contudo dela ficou o espólio do seu raro dom narrativo. Quis o destino tecer-lhe outros acasos. Um deles este absurdo silêncio em que o seu nome se encontra obnubilado.
Albino Magaia, homem culto e de grande generosidade, que me incumbiu de editar a “Gazeta de Artes e Letras”, da ínclita revista “Tempo”, quando eu era apenas um efebo, e que me falava com entusiasmo deste nome assombroso, no prefácio que haveria de redigir para “Os Molwenes”, editado em 1988, pela AEMO, faz uma das pouquíssimas descrições que se conhecem deste jovem escritor, de fina estirpe, desaparecido cinco anos antes: “Era alto, gestos largos, olhar inteligente. Trazia na mão três cadernos escolares, enrolados. Na conversa que se seguiu fiquei a saber que os cadernos continham contos de sua autoria. Vinha pedir que eu lesse e desse a minha opinião sobre eles”.
Isaac Zita fora ao encontro do então chefe de redacção da “Tempo”, jornalista, poeta, cronista e ficcionista consagrado. Tinha o aspirante 18 anos. Magaia, quando leu os textos, percebeu, de imediato, que estava perante um “caso” invulgaríssimo: “Isaac Zita era, indubitavelmente, um jovem talentoso e com um poder de observação extremamente agudo”. Publicar-lhe-ia dois contos no hebdomadário. Anos depois, o mestre do nosso jornalismo está entre os que promovem a edição póstuma do livro de contos “Os Molwenes”.
A estudiosa Fátima Mendonça redigiria para essa publicação um pungente posfácio. O texto tem um tom pessoal infrequente, o que se justifica pela proximidade e amizade de ambos. É outra peça valiosa sobre o escritor. Isaac Zita fora seu aluno e ela tomara contacto com os seus textos também em 1979: “Isaac Zita, apesar dos seus imaturos 19 anos era senhor de uma escrita segura, reveladora de grande maturidade e possuidor de uma invulgar capacidade de narrar acontecimentos, colhia do real aspectos aparentemente mais irrisórios para os transformar, pelas vias da ficção e da criatividade, em produto estético capaz de exercer forte atracção sobre o leitor”.
Isaac Mário Manuel Zita nascera a 2 de Fevereiro de 1961, em Maputo, sexto filho de uma numerosa família de 9 irmãos. Teve uma infância duríssima e uma adolescência inclementemente pobre. Obstinado, fez dos estudos uma forma de vencer aquela maldição. Fê-lo com tenacidade. Estudou sucessivamente na Escola Primária das Mahotas, na Secundária Estrela Vermelha e no Instituto Industrial 1º de Maio. Tendo concluído o curso de Química, em 1978, é afecto à Faculdade de Educação e, durante o ano de 1979, frequenta o curso de formação de professores. Em 1980, concluído o curso, será colocado, a seu pedido, em Cuamba, como professor na Escola Secundária. Tinha formação para leccionar 5ª e 6ª classes. Depois da sua experiência em Cuamba retorna a Maputo em 1982 e retoma a Faculdade de Educação. Seria para uma formação que o capacitasse a dar aulas a alunos de 7ª, 8ª e 9ª classes. Foi quando fazia este curso que a morte o quis no seu conclave.
Em 1980, o INLD quis publicar-lhe um livro de contos. Extremamente modesto, confessava à sua professora Fátima Mendonça: “penso que ainda estou ´verde´”. Foi naquele ano em que se iniciou a publicação da mítica colecção Autores Moçambicanos e que deu estampa a obras de José Craveirinha (“Cela 1” e “Xigubo”), Luís Carlos Patraquim (“Monção”), Orlando Mendes (“Lume Florindo na Forja” e “Portagem”), Carneiro Gonçalves (“Contos e Lendas”), Sebastião Alba (“O Ritmo do Presságio” e “A Noite Dividida”), Rui Nogar (“Silêncio Escancarado”), Jorge Viegas (“O Núcleo Tenaz”) e Albino Magaia (“Assim no Tempo Derrubado”).
Anos depois, Zita integraria, no entanto, a colecção Karingana, da AEMO, que antes dele publicara: Mia Couto (“Vozes Anoitecidas”), Albino Magaia (“Malungate”), Aníbal Aleluia (“Mbelele e Outros Contos”) e Calane da Silva, “Xicandarinha na Lenha do Mundo”. Estava em boa companhia. Falhara a ideia de o editar como primeiro nome da colecção “Início”, que era dedicada a jovens talentos e que revelou, entre outros, o arrebatado e arrebatador poeta Eduardo White, com o livro “Amar sobre o Índico”.
Fátima Mendonça, que manteve correspondência com o jovem escritor, quando ele se encontrava em Cuamba, cita parte da mesma, com data de Março de 1980: “Sobre os livros, aqui na escola há uma biblioteca que tem livros sem interesse: são “metafísicos” ou algo parecido porque isto era coisa de padres. Só levei três que são: “O Jogador” de Dostoievsky, “A Morte de Ivan Ilich” de Tolstói e outro de Tchekhov, “A Enfermaria nº 6 e Outros Contos”. Zita era um leitor exigente, com critérios. Escrupuloso.
A sua escrita para além das características que lhe apontaram Albino Magaia e Fátima Mendonça, denota, quanto a mim, uma grande e prematura erudição, uma riqueza vocabular e um domínio linguístico irrepreensível. A sua dicção é extraordinária, o recorte das personagens patenteiam a sua sensibilidade, os ambientes descritos com firmeza de um verdadeiro mestre da narrativa. Aliás, mesmo a esta distância, não abundam, entre nós, indivíduos da mesma casta e com as mesmas qualidades na fábula. Isaac Zita era um escritor admirável. Precisaria de tempo para se afirmar, é certo. Esse tempo os deuses, sempre caprichosos, não lhe quiseram dar.
Para além de dominar a descrição, é habilidoso nos diálogos. Os diálogos são, na ficção narrativa, de difícil conseguimento. É uma das técnicas mais árduas. Poucos escritores sabem fazer diálogos. A escrita de Zita ostentava já, não obstante a sua idade, uma acurada carpintaria literária. Os temas ou os motivos são aparentemente sem grande relevância, mas depois, na sua indústria, desencadeiam conflitos e tensões que nos colhem de surpresa.
Creio não estar muito longe da verdade se asseverar que Isaac Zita é, à época, o mais directo e dilecto herdeiro de Luís Bernardo Honwana. Os seus textos são sempre muito breves, numa notável e sedutora prosa, de uma elegância incensurável, translúcida e bem urdida. Há outras afinidades com o autor de “Nós Matámos o Cão Tinhoso”: os temas da infância e juventude, os ambientes e as personagens.
Isaac Zita está, por conseguinte, na tradição dos grandes contistas moçambicanos, daqueles que sabem armar uma história, contá-la sem artifícios desnecessários. Um narrador de grande quilate. Produziu abundante e febrilmente, devia suspeitar que teria uma curtíssima vida. Os contos, que estão reunidos no livro “Os Molwenes”, são parte um acervo que a família confiou, quando ele morreu, à Associação dos Escritores Moçambicanos.
Quarenta anos depois do seu ocaso, sobreveio-lhe o oblívio, comum aos nossos melhores. Esta parece ser a sina a que estão fadados os autores moçambicanos. Isaac Zita subscreve uma espécie de fatalismo trágico na nossa literatura. Há uma data de escritores que morreram muito jovens e, no entanto, deixaram, alguns deles, obras notáveis. Muitos deles, ou quase todos, porém, não sobreviveram à desmemória e permanecem soterrados num espesso limbo de esquecimento.
Esta escrita, iminentemente biográfica, tem marcas, muito presentes, da sua infância e adolescência extremamente pobres. Isaac Zita, sabe-se, ficou órfão muito cedo, sendo criado pela mãe (um dos contos é justamente “A Mãe”). A figura do pai aparece subliminarmente em algumas passagens do seu livro, mas as personagens essenciais da sua obra literária são aquelas que estão desprovidas de tudo, as que vivem submergidas na miséria, aquelas cujo futuro é, seguramente, a marginalidade ou a morte. Esta escrita não esconde a angústia e o desespero, o desengano e o desencanto.
Por outro lado, está aqui magistralmente cartografada uma época e as suas profundas fissuras sociais, muitas destas anomias apenas se travestiram, mas permanecem duráveis na sociedade. Pese embora muitos dos seus textos se situem temporalmente no período anterior à independência, os problemas que sondam são actuais. Isaac Zita é, por conseguinte, um escritor actualíssimo. Aliás, a sua escrita dá-nos notícia de um tempo, o que é, afinal, um dos avatares da literatura - a grande literatura faz justamente isso mesmo.
Vivemos, temo-lo dito, num país que se compraz com o esquecimento e desdenha os seus melhores. Mortos ou vivos, alguns dos nossos mais altos criadores, alguns dos nossos singulares intérpretes, não escapam ao opróbrio do esquecimento, ao oblívio, à omissão, à supressão, à deslembrança, ao olvido. Parece um anátema da moçambicanidade.
Existe, em Maputo, uma rua Isaac Zita (no caso até com o nome mal grafado, o que revela falta de diligência dos intendentes camarários), mas não há notícia de muito mais que se tenha feito pela obra e pelo nome deste escritor. A fortuna, nos nossos dias, cobre nomes adiposos. Ou aos que se prestam ao ufanismo - à estouvada algazarra sobre a Pátria.
Retorno, todavia, ao texto lancinante de Fátima Mendonça:
“Em 1982 Isaac Zita regressou à U.E.M. para completar a 2ª fase do seu curso. Fui então de novo sua professora. Continuava a escrever. No bairro de Hulene onde vivia com a mãe idosa e alguns dos numerosos irmãos numa modesta casa que fazia lembrar a casa descrita no conto “O Areal”. Não era de alvenaria. Não tinha electridade. Isaac escrevia “romanticamente” à luz de um candeeiro de petróleo. Sobre uma tosca mesa rectangular. Pouco mais.
3 dias antes de a vida o abandonar mostrou-me um poema. Notava-se a presença de Craveirinha em casa verso. Disse-lhe com a franqueza que a nossa amizade autorizava: Isaac, deixa-te de versos! O que tu vais ser é um grande prosador! Trocámos mais algumas palavras sobre as dores de cabeça que ultimamente vinha sentido. Lês demais, disse-lhe, deves andar cansado! Despedimo-nos. Até segunda. Era uma sexta-feira de Julho e o sol estava frio. Na segunda-feira de manhã fui colhida com a notícia brutal: O Isaac morreu. Durante momentos o sentido das coisas perdeu-se. Depois família, amigos, colegas, professores fomos deixar o Isaac para sempre na terra. Durante semanas as nossas aulas eram tristes e o lugar do Isaac ficou vago.”
Com este testemunho doloroso balizo, aqui, esta memória de Isaac Zita, que morreu com apenas 22 anos, a 17 de Julho de 1983 – passam hoje 40 anos! Era um escritor de primeiríssima água, narrador de finíssima sensibilidade, homem que cauterizava as injustiças sociais e que buscava, empenhadamente, iludir o destino que lhe parecia ter cabido na dura infância e na árdua adolescência tão luminosamente descritas em “Os Molwenes”, livro que, conjecturo, deve pertencer, sem favores, ao cânone literário moçambicano.
Eu, o Povo
Conheço a força da terra que rebenta a granada do grão
Fiz desta força um amigo fiel.
(Mutimati Barnabé João)
Quando, naquele remotíssimo sábado, de 2 de Julho de 1994, o Luís Carlos Patraquim me ligou a dar a notícia da morte de António Quadros, já se tinha balcanizado o mito do guerrilheiro morto na frente de combate que deixara “Eu, o Povo”, como legado ou testamento poético da revolução, que fora o breviário de jovens que o estudariam afanosamente anos a fio como uma espécie de cartilha. Reconheço-me nesses moçoilos e nesse livro e naqueles poemas inauditos. Não tenho dúvida de que fizeram de nós mais moçambicanos. “Mutimati é a voz individual que corporiza a voz colectiva.”
Tinha visto, entretanto, o filme de John Ford, “O Homem que Matou Liberty Valance”, e continuava a sufragar a lenda mesmo diante da verdade. Aliás, anos mais tarde, ao antologiá-lo, em “Nunca Mais é Sábado”, no texto biográfico redigi: “a lenda por vezes torna-se verosímil com o tempo”. A colectânea, de 2004, também resgatava outro dos seus heterónimos, o mais facundo de todos: João Pedro Grabato Dias. Parece haver, em termos biográficos, um apelo recorrente nas datas: em 1964, António Quadros vai para Moçambique, em 1984 é o epílogo dessa experiência, o ocaso da sua vida dá-se em 1994.
À época, eu batucava a minha prosa no jornal “Público” e dei conhecimento ao meu editor, Torcato Sepúlveda, de gratíssima memória, deste infausto acontecimento. Quando me dirigia para a redação, aonde iria fazer o obituário que se impunha, recordei-me de um livro que me assombrara nos meus tempos de debutante. Encontrara-o numa vetusta livraria do Alto-Maé, que hoje cedeu espaço e memória a uma dessas lojas que vendem quinquilharias. Era um livro de pequeno formato, tê-lo-ei perdido algures, na defluência dos anos. A despeito, o seu humor truculento e profundamente feroz ainda ecoam na memória: “Como o morto nunca nos diz nada / vem daí o extremo penoso da sua presença”. O título da obra – “O Morto – Ode Didáctica” (1971) -, assinado por João Pedro Grabato Dias, o seu heterónimo mais exabundante.
Fora o Luís Carlos Patraquim que me dera a ler “40 e Tal Sonetos de Amor e Circunstância e Uma Canção Desesperada” (obra inicial do poeta, editada em 1970). Quando isso sucedeu, eu já associava o nome de Grabato Dias ao de Rui Knopfli, o meu poeta electivo, por causa da revista “Caliban”, que ambos haviam editado nos anos 70. Disse-me o Knopfli em 1989: “Quem teve a ideia de se publicarem os cadernos “Caliban” foi o João Pedro Grabato Dias. O progenitor é ele”. Em 1996, Rui Knopfli assentiria que os publicasse, numa edição fac-símile, com a benesse do meu bom amigo José Soares Martins.
Foi através de um prémio, atribuído, em 1968, pela antiga Câmara Municipal de Lourenço Marques, hoje Maputo, que surgiu, para o espanto dos jurados, “40 e tal Sonetos de Amor e uma Canção Desesperada”. Quando foi da publicação da obra remunerada, dois anos depois, Eugénio Lisboa, que estivera no júri, redigiria numa das badanas: “Voz singular, ulcerada e mitológica, ensimesmada, onírica, ironicamente realista, brutal, descabelada”, tudo isto, segundo o ensaísta, “traduzido por uma extraordinária ´fauna lexical´ que a um tempo nos subjuga e desorienta”. Num dos volumes, da sua monumental obra memorialística, “Acta es Fabula. Memórias III – Lourenço Marques Revisited – 1955-1976” (2013), Lisboa dar-nos-á uma circunstanciada notícia desse acontecimento literário único e fará a cartografia desta personagem singularíssima: António Quadros.
Também devo ao Patraquim o conhecimento de “As Quybyrycas – poema étyco em ovtavas”, publicado em 1972, para celebrar os 400 anos de “Os Lusíadas”, ínclita obra de Luís de Camões. Assinada por Frey Ioannes Garabatus, tinha J. P. Grabato D. como seu Editor. Esta obra que mereceu um erudito prefácio de Jorge de Sena. “Cada um faz a homenagem que pode” – era a divisa do frontispício. O Editor, assim grafado, agradecia a M.L. Cortez, E. Lisboa, R. Knopfli e A. Quadros com um “embaraçado obrigado pelo estímulo permanente”. Já era óbvio o chiste literário. O autor era um heterónimo de António Quadros – o pintor.
António Quadros foi pintor e professor, artista gráfico e ilustrador, ceramista e escultor, fotógrafo e cenógrafo, pedagogo e apicultor. Interessou-se por arquitectura, comunicação, biologia ou ecologia. Era vário, múltiplo, complexo. Talvez daí, também se explique, a sua heteronímia, os vários poetas que encarnou: ele foi João Pedro Grabato, ele foi Frey Ioannes Garabatus, ele foi Mutimati Barnabé João, ele foi António Quadros. (“Pois que todo o proposto é uno e vário”, deixará escrito algures).
Para além dos livros acima aludidos, publicou: “A Arca – Ode Didáctica na Primeira Pessoa” (1971), “Uma Meditação. 21 Laurentinas e Dois Fabulírios Falhados” (1971), “Pressaga – Ode Didáctica” (1974), “Facto-Fado – Piqueno Tratado de Morfologia Parte VII” (de 1986), “O Povo é Nós” (1991) e “Sagapress” (1992). Todos eles assinados por João Pedro Grabato Dias. A sua poesia é exuberante, os seus versos são avassaladores, o seu tom desmedido, muitas vezes burlesco, faustoso, quase sempre, poesia que denuncia uma afortunada versatilidade imagética e um dos estros mais prósperos da poesia que se produziu em Moçambique.
António Quadros era uma personagem: complexa, heterogénea, vasta, abundante, profusa. Expendeu 20 anos da sua prodigiosa vida em Moçambique, entre 1964 e 1984, e aí produziu grande parte, ou a totalidade, da sua obra (“Produzo mas não crio, quando interpreto”.) Isto muito longe de “Mil novecentos e quarenta em lisboa. Lisboa após Expo” quando se entrevista com “o meu amigo da guiné / o ansiado irmão que vivia mais perto do sol” que “estava ali, tinha chegado no anoitecer de inverno / sem ser prevenido da névoa de lisboa, sem camisola de lã / sem calças à golfe, sem luvas de malha”.
A cidade, a “baixa laurentina”, o Djambu, o Continental, a “polana das coutadas”, Maxaquene, mais tarde, a Machava, fazem parte da sua geografia poética, numa vida em que, diz o poeta, “em palavras gastei tudo”. Muitos anos depois, do epílogo dessa experiência africana, não deixará de se referir aos seus “áfricos remorsos”, uma indisfarçável melancolia e, provavelmente, imprescindível desencanto. Quem o lê, atentamente, escrutina na sua poesia o estertor de um tempo – isso é comum a Rui Knopfli – e o entusiasmo pelo tempo ulterior que que lhe provocará um inevitável desengano. A revolução teve as suas contradições e, de permeio, acotovelou quem não devia.
Não o conhecera pessoalmente, mas sabia-o figura lendária em Moçambique. Tenho uma vaga memória de o ter visto, de relance, algures em Maputo. Mas pode ser uma paródia da minha própria memória. O José Capela (nome de historiador de José Soares Martins) falava-me amiúde dele, com saudade, das vezes que este o visitava e ficava, à varanda, a escrever ou a pintar. Tinha, aliás, obras de Quadros nas paredes. O José Craveirinha (“sinto que fiz um verso à Zé Cravé, alô Mafalala!”) também me falava dele. O Rui Knopfli falou-me dele. O Luís Carlos Patraquim, idem. A Amélia Muge, outrossim. A minha amiga Lisdália, de saudosa memória - (“Feitiços? Vivi deles, vivo, como de factos em bruto”, entre outros, “no rir da Lisdália”) – rememorava, liricamente, João Pedro Grabato Dias. Quem não me falou de António Quadros?
António Augusto Lucena Quadros nasceu em Santiago de Besteiros, em Viseu, a 9 de Julho 1933, onde iria falecer a 2 de Julho de 1994, a dias de fazer 61 anos, depois de muitos exílios. (“Nunca me libertei da infância.”) Estudou Pintura na Escola Superior de Belas Artes do Porto e Gravura e Pintura a fresco em Paris. Parte da sua obra plástica está antologiada em “O Sinaleiro de Pombas” (2001).
Numa entrevista à revista “Tempo”, quando deu à estampa a sua glosa camoniana – Camões e Fernando Pessoa eram seus deuses tutelares – afirmaria: “Se eu soubesse o que é ser europeu, saberia talvez o que é ser moçambicano. Tirando o anedotário da coca-cola, falta a soma das criações de mais de duas gerações, para se definir o que é ser moçambicano, para o bem e para o mal. Daí a tremenda responsabilidade de um criador, hoje e aqui, onde o pouco que há feito muito pouco denuncia o muito que há por fazer (...) No fim de contas, haverá dois mundos, não sei. A “tese” que o meu trabalho defende é que existe só um universo e nós com ele. Se à poesia de minha lavra se pode censurar a falta de tambores, luares africanos e queimadas, note que a que produzi de 50 a 64 pelos sucessivos exílios em que andei, e onde o mental não foi o menor, é impublicável por isso mesmo”.
Não me parece que haja dúvidas que este homem singular sabia exercer a arte de pitonisa e haveria de se antecipar à discussão da moçambicanidade na sua extensa e complexa obra. Mais do que isso: quis zombar da História e inventara a mítica obra que faz a sagração de Moçambique livre: “Eu, o Povo”. “Mutimati é a voz individual que corporiza a voz colectiva” – assim se escrevia no frontispício: “É agora pertença de Moçambique. O Povo Moçambicano é o seu Autor”.
Sabe-se: António Quadros não conseguiria descartar-se da suspeita de ser o autor daquele hino da revolução e da nação emergente. Aliás, rezam os velhos mitos que Samora Machel terá feito, mais tarde, um repto irrecusável que irá resultar em “O Povo É Nós” (1991), uma glosa – ou uma sequela? -, de “Eu, o Povo”, assinada por João Pedro Grabato Dias.
António Quadros foi um permanente exilado (“estaremos sempre votados a este exílio”), nos vários solos que lhe pertenceram. “Com três estações intermédias, djambu, casa e colmeia / ou do rovuma ao maputo como diriam nas rolhas diversas” – escreve Grabato Dias, sempre com o seu humor finíssimo e assertivo. Foi cantado por José Afonso ou Amélia Muge, pouco lido e ainda menos discutido ou estudado, como mereceria.
Em 2021, em Portugal, foi editada uma antologia – “Odes Didácticas”, numa coleção de poesia coordenada por Pedro Mexia, na Tinta da China, com um extenso e importante posfácio de António Cabrita, que intenta interpretar a vasta e complexa obra de João Pedro Grabato Dias. O arquitecto José Forjaz fizera um texto imprescindível para a reedição de “Eu, o Povo” da Cotovia (2008). Releio o poeta. Volto aos versos que me perturbaram na juventude: “Devo velar os meus mortos. / Vigiá-los, com doçura, mas vigiá-los. / Estar atento nas franjas do silêncio. / Alguma coisa deve acontecer / na espera.” “Um morto esquecido é tantíssimo perigoso”. A paródia, a sátira, a critica acerba, sempre. “É preciso ter muita coragem para assumir o medo”.
Provavelmente, esquecido hoje em Moçambique. Luís Carlos Patraquim evoca-o num belo poema: “Frei Mutimáti Barnabé João”: “P´la estrada da Machava, à esquina da Meseta / como Rolando sob a última frechada / ou como quem tropeça piqueno / em um Morto muito / lhe devo versos – o cono! - / mai-lo zarolho que lhe deu / claramente visto o Povo, / lá vai Frei João, o Mutimáti, / ao grabato da Alma. // Psiu, D. Antónia; João dos barcos / desencorados da infância: Amélia, / múgica guitarra onde sob os cabelos / a voz e tu, menino, / que arado adunco nos mostrasse em obra, / visto que o autor é o seu próprio processo, / e dele nem Virgílio o nomeia / em verde prado onde os deuses apascentou; / Psiu, que pelo céu de Inhaminga, / p´lo caminho de Santiago com a Rosa na Arca/ e a sapata grossa ecoando, cavernosa, / uas quybyrycas de Barcelos, / lá Mutimáti mai-lo cachimbo / de chicaocao e canho adornando ogres, / floresta obscura, parva savana nívita.” E o poema lá vai e não termina sem evocar, outros deuses tutelares da poesia moçambicana: “o Cravé ainda salga os velhos espíritos/ e o Rui sangra a sombra ardida e verde”.
Ironicamente, quando morreu, estava para sair, naquele mês, o disco da Amélia Muge (“Todos os Dias”), que tinha uma canção com versos de João Pedro Grabato Dias, intitulada “Estar vivo”. Começava e terminava assim: “Estar vivo é estar à morte”. Foi o título óbvio para noticiar a passagem de António Quadros - “percebi logo a morte”, dirá ele num dos seus versos onde, como sempre, zomba da morte (ou tenta exorcizá-la?) -, que nascera a 9 de Julho de 1933, faz hoje, precisamente, 90 anos.
Cidade do Cabo, 9 de Julho de 2023