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terça-feira, 26 dezembro 2023 10:52

RUI DE NORONHA

Escrito por

Nelson Saúte

 

Dum grande poeta deu-se o nome

a uma suburbana

 

nem tanto quis em vida

 

das ‘solidões lacustres’

que seu facho ainda alumia

dos nítidos e urbanos

dias ermos

escreveu e morreu”

 

(Sebastião Alba, “O Ritmo do Presságio”)

 

Este belo e pungente poema, que termina com versos lapidares (“fulge limpidamente / nas memórias mais graves / dos melhores de nós”), de Sebastião Alba, sucede, cronologicamente, a um outro, de Noémia de Sousa, “Poema para Rui de Noronha – No aniversário da sua morte”, escrito em 1949, e que termina, de forma igualmente lapidar e lacerante: “Como um cometa / atravessando a noite dos nossos peitos esmagados.” A tragédia do Poeta, que subscreve o mito, teve o seu epílogo no dia 25 de Dezembro de 1943.

 

António Rui de Noronha nascera a 28 de Outubro de 1909, filho de pai originário de Goa e de mãe nascida na África do Sul. Viveu os seus primeiros anos com a mãe biológica, Lena Sophia Bilanculu. Quando o pai, José Salvador Roque das Neves de Noronha, se casa com uma senhora oriunda da Índia, de nome Ana Luisinha de Figueiredo, o pequeno Rui e o seu irmão Amâncio passaram a viver com o pai, a madrasta e os irmãos do casamento subsequente do progenitor. Estudou no liceu que leva hoje o apelido de Escola Secundária Josina Machel, concorreu e foi admitido nos Caminhos de Ferro como aspirante. Ali, a par da sua atividade jornalística, estabeleceu a sua tribuna. Estreou-se aos 17 anos, colaborou em jornais e revistas, fez crítica de teatro e de cinema. Viveu apenas 34 anos.

 

O poeta ferroviário escreverá “No Cais”, publicado em “O Brado Africano”, em 1934: “Há vibrações metálicas chispando / Nas sossegadas águas da baía. / Gaivotas brancas vão e vêm bicando / peixinhos numa louca gritaria.” Este poema foi recolhido na sua obra póstuma “Sonetos” (1946), organizada e apresentada por Domingos Reis Costa, seu antigo professor, que lhe terá adulterado a obra. O poema, igualmente amofinado, termina com o seguinte terceto: “E ouve-se mais forte, mais vibrante, / Os pretos a cantar, a noite adiante, / Por entre a bulha e o pó das carvoeiras…”

 

Mário Pinto de Andrade, intelectual angolano de grande gabarito, num ensaio magistral e fundador, “Origens do Nacionalismo Africano: Continuidade e rutura nos movimentos unitários emergentes da luta contra a dominação colonial portuguesa 1911–1961” fala-nos de uma geração de “proto-nacionalistas”, uma geração que precedeu à sua (cunhada por ele como “Geração Cabral”), que nas primeiras décadas do séc. XX, quer em Portugal, sobretudo em Lisboa, quer nas chamadas colónias (São Tomé e Príncipe, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau e Moçambique) empreenderam os primeiros tentames da resistência e protesto. Seriam “proto-nacionalistas”, “pan-africanistas” ou “nativistas”. A questão racial era central, a problemática do ominoso colonialismo. A verdade é que pertenciam a um “movimento negro anti-racista” que se afirmava. Eram os movimentos pan-africanistas, na América avultavam os movimentos dos direitos cívicos, onde pontificam as figuras de Booker T. Washington, W. E. B. Du Bois ou Marcus Garvey.

 

Creio que a figura de Rui de Noronha deve ser enquadrada nesta geração dos chamados “proto-nacionalistas”. Era o gérmen da rebelião, da contradita, da divergência. Temos por adquirido que o movimento emancipador iniciou nos anos 60. É uma forma oblíqua de ver a História. Há predecessores cujo papel é preciso reparar.  À sua biografia desencontrada, marcada pelo infortúnio, ir-se-á confundir uma obra precursora. Poeta esquecido ao longo de décadas, ao ser evocado não falta a mofina que lhe ditou a vida. Fátima Mendonça, que lhe fixou a obra e esclareceu muitos dos equívocos que a edição, sob a égide de Domingos Reis Costa, estabeleceu, insurge-se contra o determinismo biográfico que obscurece uma poesia que vai além do sofrimento, da infelicidade, do desgosto ou do tormento. O porfiado trabalho de Fátima Mendonça muito fez para obviar esse mito redutor e apoucador que aviltava o estro de Rui de Noronha.

 

“Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do mistério. / Dormes! e o mundo rola, o mundo vai seguindo…/ O Progresso caminha ao alto de um hemisfério / E tu dormes no outro o sono teu infindo…” As sim inicia o poema “Surge et Ambula”, imbuído da sua “missão de fazer despertar consciências adormecidas”, como assevera Fátima Mendonça, num continente “onde fervilhavam já as expressões nacionalistas que o pan-africanismo sugeria”. O texto “Rui de Noronha, o esquecido?” foi publicado na revista “África” n.º 13, em 1986. Nesta mesma publicação, no seu número inaugural, em 1978, Francisco de Sousa Neves, no texto “A poesia de Rui de Noronha” defendia que as versões da edição póstuma de “Sonetos” poderiam corresponder a variantes deixadas pelo próprio poeta. Esta “tese” ia em sentido contrário às posições de Rodrigues Júnior que tinha acusado Domingos Reis Costa, encarregado da edição da poesia de Rui de Noronha, de lhe ter alterado e adulterado os sonetos. Isto em 1951! Mais de vinte anos depois, nos anos 70, Guilherme de Melo voltou à liça: um exame ao espólio do poeta revelava isso. Uma atitude preconceituosa em relação a quem denunciara tal aviltamento arrastaria a questão que denigre o Poeta por décadas. Os estudiosos e os antologiadores, por descaso ou abulia, não se ativeram à denúncia de Rodrigues Júnior e reiteradamente mantiveram a franquia torpe de Reis Costa.

 

Fátima Mendonça debruça-se sobre esta questão: “Foi um erro de que a literatura moçambicana foi vítima e que urge remediar, repondo a verdade. Efetivamente, grande parte dos sonetos publicados apresenta versões que não correspondem às que foram publicadas em vida pelo poeta, em “O Brado Africano”. Um exame ao espólio do poeta – em poder da sua filha – revela que o professor Reis Costa, por sua própria mão, alterou grande parte dos sonetos sobre os originais, tornando-os praticamente ilegíveis. Desta forma, o espólio devolvido à família está praticamente inutilizado. De notar ainda que o compilador deixou de lado inexplicavelmente alguns sonetos e toda a produção poética que não obedecia a esta forma”.

 

Fica, no entanto, quanto a mim, um enigma por elucidar: por que razão Reis Costa consignou de volta à viúva do Poeta, Albertina dos Santos Noronha, os textos ultrajados? Para mim, é um mistério. Soberba? Zombaria? Confiava demasiado na sua sobranceria ou debochava da crítica e do crivo futuros?

 

Fátima Mendonça, que defendia na época em que produziu o seu texto, informado e vigilante, advertia que a obra e o poeta Rui de Noronha obrigavam-nos a promover uma edição crítica e reparadora da injustiça praticada por Reis Costa. Vinte anos depois, foi editada a obra “Os Meus Versos – Rui de Noronha” com organização, notas e comentários de Fátima Mendonça. O título do caderno original deixado pelo poeta era justamente “Meus versos” e essa era a intenção da organizadora. O zeloso editor acrescentou-lhe “os”, alterando-lhe título. É irónico: parece que o poeta está fadado a este tipo de infortúnios. Não quero imaginar a fúria da estudiosa.

 

Primeiro fora Rui Knopfli, que lhe chamara “a primeira voz” (na revista “Tempo, em 1973), e depois Sebastião Alba, que o homenageara no belo poema (publicado em 1974) que serve de epígrafe a este texto, e, mais tarde, José Craveirinha que lhe chamara “o Grã poeta da circunvalação”, que haviam estimulado o interesse e o fascínio que Fátima Mendonça desenvolveria sobre a obra e a figura de Rui de Noronha. Aliás, recordo-me das vezes que Craveirinha o evocava e descrevia na geografia emocional e cultural da Mafalala. Também Noémia de Sousa falar-me-ia de Rui de Noronha e de outras ínclitas figuras daquela época, como Estácio Dias, Karel Pott, os Dahan ou os Mata e todos aqueles que habitavam “O Brado Africano”, como os fundadores João e José Albasini.

 

Aníbal Aleluia, em dezembro de 1950, escreveria sobre o Poeta em “O Brado Africano”. Michel Laban , em 1992, quando o entrevistou, não evitou a pergunta óbvia: “Conheceu Rui de Noronha?” Aleluia retorquiu: “Conheci. Era um homem solitário, um temperamento a um tempo romântico e melancólico, de uma sensibilidade rara. A sua poesia traduzia a um tempo fatalismo e inconformismo. Parecia profundamente afectado pelo racismo então muito forte nesta terra. Creio que foi isso que o levou ao abandono de si mesmo, qualquer coisa como a busca do Nirvana. Não quero aludir a aspectos da sua vida que jogam com sentimentos íntimos, uma paixão não correspondida que se lhe atribui e que, no dizer de alguns, ditou o seu precoce passamento pela Terra.” (“Moçambique – Encontro com Escritores”)

 

Eduardo White (“Rui de Noronha, o poeta que a morte não poupou”, 1984), quase trinta e cinco anos depois irá descobri-lo. Da mesma geração, Mikas Dunga (Pedro Chissano) irá sobre ele discorrer na “Charrua”: “Encontro marcado com Rui de Noronha” (“Charrua” n.º 2, 1984). Importa referir o importante trabalho de Olga Iglésias, profusamente citado por Fátima Mendonça. Manuel Ferreira, um dos precursores, em Portugal, do estudo e divulgação das nossas literaturas, situou-o diligentemente. Mário Pinto de Andrade também o fizera na “Antologia Temática de Poesia Africana”.

 

Logo no texto que abre a coleção dos textos “Meus versos” escreve o poeta: “Mas o meu canto é mágoa.” Isto lhe define o destino: “Cruel destino o meu que ao meu caminho trouxe”, escreverá no soneto subsequente, que termina assim: “Que eu ficarei cantando o nosso eterno amor!” Estes versos primeiros parecem definir-lhe o anátema: “Vem de séculos, alma, essa orgulhosa casta, / Repudiando a dor, tripudiando a lei, / Num gesto de altivez que em onda leva, arrasta, / Inteiras gerações de amaldiçoada grei.”

 

A dor, a tristeza, a solidão, a amargura, a noite, o frio, a mágoa, os infernos, entre outros sintagmas, dominam estes versos que ajudam a construir a imagem de um poeta enjeitado pela raça e pela amada e que se deixa destroçar até à morte. “Porque é através da Dor, não da Alegria / Que eu mais sinto a beleza, a poesia / Duma manhã que canta e de um poente…” Ou num outro poema: “Oh, minhas ilusões, mágoas sem fim!”. “E eu sou tristeza sempre, sempre pranto…”.“… E eu nada tenho por amar-te tanto!”

 

A dor reiterada: “Só nesta dor que me sepulta, ignoto / Não chega a luz da lua e nunca noto / A beleza das cousas sempiternas.”. Os “Dias Tristes”: “Tristeza de si própria comovida…” A dor, sempre a dor: “A dor eterna é dor; mas dor maior / É aquela que um momento foi menor / E se tornou imensa em dor volver…” No poema “Caminhos”: “E eu entristeço e penso em quanta mágoa”. E no texto “Eternamente” escreve: “E esta amargura acerba de cair.” Ou no poema “Menti?”: “Vê tu quanta amargura novamente...”

 

O poema “Sonho Desfeito”, não coligido na edição póstuma, é assertivo quanto ao seu infortunado amor: “Foi curta a história desse amor que eu tive, / Mas foi profundo e triste o rasto seu. / Foi rápido e fugaz como o declive / Do aerólito que no céu correu…” José Craveirinha, na entrevista que concedeu a Michel Laban, em 1993, também se lhe refere: “Eu lembro-me do Rui de Noronha a dizer-me: ‘Continua, miúdo. Continua…’ Ele passava aqui, nesta rua, vou-lhe mostrar a casa onde ele morava. Ele saía de serviço, trabalhava no Caminho de Ferro, vinha para casa. Depois da casa, vinha assim sozinho, seu fatinho de linho, seu chapéu na mão… Esta rua não era alcatroada, era areia. Andava à volta e passava pela sua Dulcineia – a mulher que o inspirou sempre e que casou com outro. Mas que ele amou até à morte. Ele ia assim, passava e ela às vezes aparecia na varanda. Ele ficava assim, só para ver – já casada com outro. E ele voltava. Era um homem triste. Nunca o vi exuberante, a rir-se. Eu cheguei a vê-lo no “Brado Africano”, chegou a ser chefe de redacção do “Brado Africano”, mas sempre triste. Aliás, morreu cedo: ele não morreu, matou-se. Sim, praticamente matou-se, porque ele estava proibido de beber e bebia álcool puro.” (“Moçambique – Encontro com Escritores”).

 

Rui de Noronha: “Amei-te tanto, meu amor, oh, tanto!…/ Que ver cair tão súbito este encanto / Eu acredito que te amei bem pouco…”. Ou num outro poema: “Ninguém te amou como eu te amei outrora”.

 

Mas Rui de Noronha foi também o poeta que escreveu sobre os “Patshises” (carregadores no cais): “A pena que me dá ver essa gente / com sacos sobre os ombros cansadíssima / Às vezes é meio-dia, o sol tão quente / E os fardos a pesar, Virgem Santíssima!”, ou sobre os “Mavikis” (contratados à semana): “De manhãzinha, a mata ainda escura, / Ainda dormindo os colibris nos ninhos, / Partem cantando uma canção obscura, / Em variados grupos ou sozinhos”. Poeta que reparou da humilhação de um herói: “E o Gungunhana, em pé, sereno o aspecto, / Fitava os dois, o olhar heroico, augusto”. Isto diante de Mouzinho. Poeta extraordinário desse fabuloso “Quenguêlequêze”.

 

Fátima Mendonça é assertiva: “É esta contradição, lucidamente assumida, que Rui de Noronha expõe aos homens do seu tempo. E é precisamente um dos polos do eixo em que se move essa contradição que a edição póstuma de “Sonetos” escamoteia. A seleção feita por Domingos Reis Costa criou uma imagem deformada do homem e a da obra, esta a servir aparentemente de refúgio para as inquietações e angústias daquele. Se a obra de Rui de Noronha exibe permanentemente um conflito não resolvido , dela faz também parte a afirmação da identidade africana.” (“Literatura Moçambicana – A História e as Escritas”).

 

Noémia de Sousa, no “Poema para Rui de Noronha” escreve: “Mas o archote, murcho e fraco, / que tuas mãos diáfanas mal lograram suster, / deixa que nós o levemos!” Rui de Noronha fica assim consagrado como a voz fundadora da poesia moçambicana, pese embora, na Ilha de Moçambique, José Pedro Campos Oliveira, seja efetivamente o primeiro poeta nascido em Moçambique. O mito fundador fica assim endossado pela poderosa voz de Noémia de Sousa. Com José Craveirinha, Fonseca Amaral, Rui Nogar, entre outros, ela estará na origem da poesia de raiz marcadamente moçambicana, anos depois, no dizer de Rui Knopfli. Naquele poema evocativo, de 1949, a autora de “Sangue Negro”  concedera a Rui de Noronha, que morrera seis anos antes, no dia 25 de dezembro de 1943, passam hoje 80 anos, os “trilhos abertos a golpes de catana” na literatura moçambicana.

 

“Desperta! O teu dormir já foi mais do que terreno.

 

Ouve a voz do Progresso, este outro Nazareno

 

Que a mão te estende e diz-te: - África, surge et ambula!”

 

(Rui de Noronha)

 

P.S. – Rui Knopfli morreu - coincidência infeliz!-, num dia 25 de dezembro, em 1997.

 

KaMpfumo, 25 de dezembro de 2023

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