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segunda-feira, 17 julho 2023 05:36

Isaac Zita

Escrito por

mhd

“– Ele vai bater! Hê! Hê! Bate mesmo!...

 

– Deixa lá isso!... – interrompeu o estudante, num tom de voz contrariada e que parecia mais apropriada para um professor.

 

– Olha, n´duwê, eu paguei dez escudos, como você...

 

– Pôrra! Que merda é essa?... Mas não quero que conte!... – replicou o estudante, já com a voz a ficar rouca de ira.

 

– Faz o que quiser, mas eu farei aquilo que entender!...

 

– Merda, pá! Ficar com molwenes, pá, é chato!

 

– Não fala assim para mim, ouviu? Se sou molwene, qual é o mal? Sou molwene e também sei isto – mostrou o punho cerrado com vigor – e isto! – bateu no crânio -  A chim-butso!, irmão...sou de Bilene Macia, nwana mamana! – e abanou a cabeça. – Preto é duro!

 

Bateu com o punho no peito, posto a descoberto pela camisa desabotoada, até ao sítio  onde começava o ventre.”

 

(“Os Molwenes”, Isaac Zita)

 

Não fosse o infortúnio da sua prematura entrevista com a morte, a 17 de Julho de 1983, Isaac Zita ter-se-ia afirmado, indubitavelmente, como o primeiro talento de verdadeiro gabarito na ficção moçambicana no pós-independência, tão surpreendentes quanto invulgares eram as suas qualidades como prosador. A sua erupção literária, no entanto, foi brevíssima, contudo dela ficou o espólio do seu raro dom narrativo. Quis o destino tecer-lhe outros acasos. Um deles este absurdo silêncio em que o seu nome se encontra obnubilado.

 

Albino Magaia, homem culto e de grande generosidade, que me incumbiu de editar a “Gazeta de Artes e Letras”, da ínclita revista “Tempo”, quando eu era apenas um efebo, e que me falava com entusiasmo deste nome assombroso, no prefácio que haveria de redigir para “Os Molwenes”, editado em 1988, pela AEMO, faz uma das pouquíssimas descrições que se conhecem deste jovem escritor, de fina estirpe, desaparecido cinco anos antes: “Era alto, gestos largos, olhar inteligente. Trazia na mão três cadernos escolares, enrolados. Na conversa que se seguiu fiquei a saber que os cadernos continham contos de sua autoria. Vinha pedir que eu lesse e desse a minha opinião sobre eles”.

 

Isaac Zita fora ao encontro do então chefe de redacção da “Tempo”, jornalista, poeta, cronista e ficcionista consagrado. Tinha o aspirante 18 anos. Magaia, quando leu os textos, percebeu, de imediato, que estava perante um “caso” invulgaríssimo: “Isaac Zita era, indubitavelmente, um jovem talentoso e com um poder de observação extremamente agudo”. Publicar-lhe-ia dois contos no hebdomadário. Anos depois, o mestre do nosso jornalismo está entre os que promovem a edição póstuma do livro de contos “Os Molwenes”.

 

A estudiosa Fátima Mendonça redigiria para essa publicação um pungente posfácio. O texto tem um tom pessoal infrequente, o que se justifica pela proximidade e amizade de ambos. É outra peça valiosa sobre o escritor. Isaac Zita fora seu aluno e ela tomara contacto com os seus textos também em 1979: “Isaac Zita, apesar dos seus imaturos 19 anos era senhor de uma escrita segura, reveladora de grande maturidade e possuidor de uma invulgar capacidade de narrar acontecimentos, colhia do real aspectos aparentemente mais irrisórios para os transformar, pelas vias da ficção e da criatividade, em produto estético capaz de exercer forte atracção sobre o leitor”.

 

Isaac Mário Manuel Zita nascera a 2 de Fevereiro de 1961, em Maputo, sexto filho de uma numerosa família de 9 irmãos. Teve uma infância duríssima e uma adolescência inclementemente pobre. Obstinado, fez dos estudos uma forma de vencer aquela maldição. Fê-lo com tenacidade. Estudou sucessivamente na Escola Primária das Mahotas, na Secundária Estrela Vermelha e no Instituto Industrial 1º de Maio. Tendo concluído o curso de Química, em 1978, é afecto à Faculdade de Educação e, durante o ano de 1979, frequenta o curso de formação de professores. Em 1980, concluído o curso, será colocado, a seu pedido, em Cuamba, como professor na Escola Secundária. Tinha formação para leccionar 5ª e 6ª classes. Depois da sua experiência em Cuamba retorna a Maputo em 1982 e retoma a Faculdade de Educação. Seria para uma formação que o capacitasse a dar aulas a alunos de 7ª, 8ª e 9ª classes. Foi quando fazia este curso que a morte o quis no seu conclave.

 

Em 1980, o INLD quis publicar-lhe um livro de contos. Extremamente modesto, confessava à sua professora Fátima Mendonça: “penso que ainda estou ´verde´”. Foi naquele ano em que se iniciou a publicação da mítica colecção Autores Moçambicanos e que deu estampa a obras de José Craveirinha (“Cela 1” e “Xigubo”), Luís Carlos Patraquim (“Monção”), Orlando Mendes (“Lume Florindo na Forja” e “Portagem”), Carneiro Gonçalves (“Contos e Lendas”), Sebastião Alba (“O Ritmo do Presságio” e “A Noite Dividida”), Rui Nogar (“Silêncio Escancarado”), Jorge Viegas (“O Núcleo Tenaz”) e Albino Magaia (“Assim no Tempo Derrubado”).

 

Anos depois, Zita integraria, no entanto, a colecção Karingana, da AEMO, que antes dele publicara: Mia Couto (“Vozes Anoitecidas”), Albino Magaia (“Malungate”), Aníbal Aleluia (“Mbelele e Outros Contos”) e Calane da Silva, “Xicandarinha na Lenha do Mundo”. Estava em boa companhia. Falhara a ideia de o editar como primeiro nome da colecção “Início”, que era dedicada a jovens talentos e que revelou, entre outros, o arrebatado e arrebatador poeta Eduardo White, com o livro  “Amar sobre o Índico”.

 

Fátima Mendonça, que manteve correspondência com o jovem escritor, quando ele se encontrava em Cuamba, cita parte da mesma, com data de Março de 1980: “Sobre os livros, aqui na escola há uma biblioteca que tem livros sem interesse: são “metafísicos” ou algo parecido porque isto era coisa de padres. Só levei três que são: “O Jogador” de Dostoievsky, “A Morte de Ivan Ilich” de Tolstói e outro de Tchekhov, “A Enfermaria nº 6 e Outros Contos”. Zita era um leitor exigente, com critérios. Escrupuloso.

 

A sua escrita para além das características que lhe apontaram Albino Magaia e Fátima Mendonça, denota, quanto a mim, uma grande e prematura erudição, uma riqueza vocabular e um domínio linguístico irrepreensível. A sua dicção é extraordinária, o recorte das personagens patenteiam a sua sensibilidade, os ambientes descritos com firmeza de um verdadeiro mestre da narrativa. Aliás, mesmo a esta distância, não abundam, entre nós, indivíduos da mesma casta e com as mesmas qualidades na fábula. Isaac Zita era um escritor admirável. Precisaria de tempo para se afirmar, é certo. Esse tempo os deuses, sempre caprichosos, não lhe quiseram dar.

 

Para além de dominar a descrição, é habilidoso nos diálogos. Os diálogos são, na ficção narrativa, de difícil conseguimento. É uma das técnicas mais árduas. Poucos escritores sabem fazer diálogos. A escrita de Zita ostentava já, não obstante a sua idade, uma acurada carpintaria literária. Os temas ou os motivos são aparentemente sem grande relevância, mas depois, na sua indústria, desencadeiam conflitos e tensões que nos colhem de surpresa.

 

Creio não estar muito longe da verdade se asseverar que Isaac Zita é, à época, o mais directo e dilecto herdeiro de Luís Bernardo Honwana. Os seus textos são sempre muito breves, numa notável e sedutora prosa, de uma elegância incensurável, translúcida e bem urdida. Há outras afinidades com o autor de “Nós Matámos o Cão Tinhoso”: os temas da infância e juventude, os ambientes e as personagens.

 

Isaac Zita está, por conseguinte, na tradição dos grandes contistas moçambicanos, daqueles que sabem armar uma história, contá-la sem artifícios desnecessários. Um narrador de grande quilate. Produziu abundante e febrilmente, devia suspeitar que teria uma curtíssima vida. Os contos, que estão reunidos no livro “Os Molwenes”, são parte um acervo que a família confiou, quando ele morreu, à Associação dos Escritores Moçambicanos.

 

Quarenta anos depois do seu ocaso, sobreveio-lhe o oblívio, comum aos nossos melhores. Esta parece ser a sina a que estão fadados os autores moçambicanos. Isaac Zita subscreve uma espécie de fatalismo trágico na nossa literatura. Há uma data de escritores que morreram muito jovens e, no entanto, deixaram, alguns deles, obras notáveis. Muitos deles, ou quase todos, porém, não sobreviveram à desmemória e permanecem soterrados num espesso limbo de esquecimento.

 

Esta escrita, iminentemente biográfica, tem marcas, muito presentes, da sua infância e adolescência extremamente pobres. Isaac Zita, sabe-se, ficou órfão muito cedo, sendo criado pela mãe (um dos contos é justamente “A Mãe”). A figura do pai aparece subliminarmente em algumas passagens do seu livro, mas as personagens essenciais da sua obra literária são aquelas que estão desprovidas de tudo, as que vivem submergidas na miséria, aquelas cujo futuro é, seguramente, a marginalidade ou a morte. Esta escrita não esconde a angústia e o desespero, o desengano e o desencanto.

 

Por outro lado, está aqui magistralmente cartografada uma época e as suas profundas fissuras sociais, muitas destas anomias apenas se travestiram, mas permanecem duráveis na sociedade. Pese embora muitos dos seus textos se situem temporalmente no período anterior à independência, os problemas que sondam são actuais. Isaac Zita é, por conseguinte, um escritor actualíssimo. Aliás, a sua escrita dá-nos notícia de um tempo, o que é, afinal, um dos avatares da literatura - a grande literatura faz justamente isso mesmo.

 

Vivemos, temo-lo dito, num país que se compraz com o esquecimento e desdenha os seus melhores. Mortos ou vivos, alguns dos nossos mais altos criadores, alguns dos nossos singulares intérpretes, não escapam ao opróbrio do esquecimento, ao oblívio, à omissão, à supressão, à deslembrança, ao olvido. Parece um anátema da moçambicanidade.

 

Existe, em Maputo, uma rua Isaac Zita (no caso até com o nome mal grafado, o que revela falta de diligência dos intendentes camarários), mas não há notícia de muito mais que se tenha feito pela obra e pelo nome deste escritor. A fortuna, nos nossos dias, cobre nomes adiposos. Ou aos que se prestam ao ufanismo - à estouvada algazarra sobre a Pátria.

 

Retorno, todavia, ao texto lancinante de Fátima Mendonça:

 

“Em 1982 Isaac Zita regressou à U.E.M. para completar a 2ª fase do seu curso. Fui então de novo sua professora. Continuava a escrever. No bairro de Hulene onde vivia com a mãe idosa e alguns dos numerosos irmãos numa modesta casa que fazia lembrar a casa descrita no conto “O Areal”. Não era de alvenaria. Não tinha electridade. Isaac escrevia “romanticamente” à luz de um candeeiro de petróleo. Sobre uma tosca mesa rectangular. Pouco mais.

 

3 dias antes de a vida o abandonar mostrou-me um poema. Notava-se a presença de Craveirinha em casa verso. Disse-lhe com a franqueza que a nossa amizade autorizava: Isaac, deixa-te de versos! O que tu vais ser é um grande prosador! Trocámos  mais algumas palavras sobre as dores de cabeça que ultimamente vinha sentido. Lês demais, disse-lhe, deves andar cansado! Despedimo-nos. Até segunda. Era uma sexta-feira de Julho e o sol estava frio. Na segunda-feira de manhã fui colhida com a notícia brutal: O Isaac morreu. Durante momentos o sentido das coisas perdeu-se. Depois família, amigos, colegas, professores fomos deixar o Isaac para sempre na terra. Durante semanas as nossas aulas eram tristes e o lugar do Isaac ficou vago.”

 

Com este testemunho doloroso balizo, aqui, esta memória de Isaac Zita, que morreu com apenas 22 anos, a 17 de Julho de 1983 – passam hoje 40 anos! Era um escritor de primeiríssima água, narrador de finíssima sensibilidade, homem que cauterizava as injustiças sociais e que buscava, empenhadamente, iludir o destino que lhe parecia ter cabido na dura infância e na árdua adolescência tão luminosamente descritas em “Os Molwenes”, livro que, conjecturo, deve pertencer, sem favores, ao cânone literário moçambicano.

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