Em 2007, o CC chumbou ostensivamente uma norma estabelecida no consulado inicial de Armando Guebuza, que obrigava ao uso da expressão “decisão tomada, decisão cumprida” no fecho da correspondência oficial no Estado. Na altura, Rui Baltazar tinha como pares juristas de gabarito inquestionável como Teodato Hunguana e Orlando Graça (este oriundo da Renamo). Seus acórdãos e deliberações eram escritos de forma assertiva e pedagógica, com um registo irrepreensível de jurisprudência. O CC era uma escola. E havia se consolidado como um importante contrapeso do poder. Dentro do nosso sistema político, era a única entidade que mantinha ainda uma grande dose de respeitabilidade na sociedade.
Quando Rui Baltazar saiu em 2009, pensou-se que ele levara consigo esse perfil de integridade raramente beliscado. Mas não! O CC manteve-se no mesmo registo. Assertivo, evitando cair na esparrela do juridiquês barato como agora está a suceder - apesar da desconfiança gerada com a chegada de Hermenegildo Gamito, em 2011, no início do segundo mandato de Armando Guebuza. Juízes como Orlando Graça e José Norberto Carrilho garantiriam a qualidade e a independência que agora começa a desmoronar. Os dois saíram em 2014. Gamito foi uma escolha pessoal de Armando Guebuza mas foi reconduzido por Filipe Nyusi em 2016. Formado em Direito em Lisboa, na sua carreira esteve mais ligado à gestão de empresas e à política (como deputado na AR pela Frelimo), com uma curta passagem como juiz-desembargador de 1978 a 1981. Duas das empresas de que foi principal gestor, a Mabor e a Maquinag, abriram falência. O CC não é propriamente uma empresa. Um dos seus principais “assets” é a reputação conquistada por via da qualidade dos seus julgamentos. Esse bem, que não é palpável mas se torna fundamental para que a sociedade confie nas instituições democráticas de Moçambique, está se esvaindo.
No actual disputadíssimo processo eleitoral, a sociedade esperava uma actuação do CC ao nível do seu estatuto de instituição suprema de defesa da Constituição. O CC tem-se mostrado, no entanto, na contra-mão. Há duas semanas, quando libertou o acórdão sobre um requerimento da Renamo relacionado à exclusão pela Comissão Nacional de Eleiçōes (CNE) do Eng. Venâncio Mondlane da corrida eleitoral em Maputo, o CC esforçou-se para não analisar matérias fundamentais importantes sob o ponto de vista jurídico (contencioso eleitoral e direito constitucional) e sob o ponto de vista político (direito de renúncia, cessação de mandato ope legis, ratio legis da renúncia como causa da incapacidade eleitoral passiva/inelegibilidade, etc). Essa omissão foi o primeiro alerta vermelho.
Na quinta-feira passada, ao chumbar o recurso da AJUDEM, o CC voltou a se destacar pela negativa, fazendo tábua rasa das irregularidades e ilegalidades praticadas pela CNE em prejuízo do grupo apoiante de Samora Júnior. O CC ignorou o facto de que as cartas dos “desistentes” da relação nominal da AJUDEM não podiam ser tidas, sob o ponto de vista legal, como “declarações de desistência”. O CC fez vista grossa aos requisitos formais das declarações de desistência, bem patentes na Lei n° 7/2018, de 3 de Agosto, nomeadamente o Art° 30, no seu número 2. O CC subscreveu outra irregularidade da CNE, nomeadamente aquela em que o órgão eleitoral concedia um prazo de 10 dias aos alegados “desistentes” da AJUDEM para eles oficializarem essa “desistência”. Essa decisão da CNE não teve qualquer base legal. Ou seja, o CC devia ter considerado a deliberação da CNE como ilegal, mantendo a lista da AJUDEM na corrida eleitoral em Maputo. Ao tomar o caminho que tomou, o CC abriu fendas gigantescas na armadura da sua reputação.
Resta saber como é que o órgão vai dirimir o novo recurso da Renamo sobre a inconstitucionalidade da deliberação da CNE que exclui Venâncio Mondlane. Qualquer que vier a ser a sua decisão, uma coisa parece certa: o CC acaba de dar início ao seu processo de falência moral, passando para si próprio um atestado de incompetência jurídica. Com Hermenegildo Gamito à cabeça. É bom que isto fique registado. Para a História!