O demonstrativo desse sentimento é a minha obsessão por lugares abertos com pouca gente, como aqui onde me encontro, na Praia da Barra, testemunhando a derrocada do próprio fascínio. Vejo o Índico avançando devagar, porém resoluto, ao encontro das dunas ocupadas pelos homens, e parece já não haver nada a fazer perante a fúria do mar. Que vai destruir tudo isto.
Tenho o celular no dispositivo do silêncio, pois não quero ser interrompido nesta audição à música do oceano e dos pequenos montes de areia que vão sendo deluidos pelas ondas. Eu oiço esses montículos cantando dentro de mim a melodia da dor, composta pela ganância e estupidez. E nós mesmos não quisemos perceber os limites da nossa liberdade, indo até onde não deviamos, tocando em obras da natureza feitas apenas para a contemplação.
Eu também faço parte desta praia que vai sendo demolida pelas águas, pedaço a pedaço. Estou aqui há muitas horas e ainda não vi ninguém passando ou chegando, a não ser as aves marinhas voando rasante por sobre as ondas, outras passando perto de mim, saudando-me, ou simplesmente para admirarem alguém que ousa estar sozinho num sítio em decomposição. Sem medo de nada, nem da imensidão assustadora do mar determinado na devastação da terra.
Na verdade não tenho medo de estar aqui, e isso pode significar que estou no zénite, e a solidão, como se sabe, é o ponto mais alto da vida, e eu já estou lá, onde posso delirar livremente nas minhas alucinações provocadas pela incenssante imaginação. Aliás a minha vinda à Barra revela isso, mas no fundo é mentira, nunca estou sozinho. Tenho o mar como almofada, as dunas ruindo, as aves planando, e a presença magnética do silêncio que me faz viver como nunca.
Se há uma ave por estas bandas, arrebatada e desfrutando deste encanto sem limites, eu sou! Não me importam os ponteiros do relógio, nem as chamadas dos amigos que ligam ao meu telefone activado para o silêncio, esses podem esperar, contrariamente a esta consonância entre mim, o Índico, as dunas, os ventos, e o próprio silêncio. Até porque cheguei a pensar que a praia estivesse vazia, ela está repleta desta poção mágica vertida por sobre a minha alma.
A praia da Barra dói-me na música que ela canta, composta no conservatório do fundo dos mares. Ninguém a quer escutar, pois cada vibração é uma facada na esperança. A Barra pende num fio frágil que vai rebentar daqui a pouco, e eu estou aqui assistindo a esse momento dramático, com o celular no silêncio. E como o sol já está a cair no horizonte, por hoje basta, vou-me embora, entristecido, desolado como todo este espaço esplendoroso. Se calhar volte outro dia, sem expectativa, quem sabe!
M´saho é essa grande festa dos chopes, organizada anualmente para esconjurar os espíritos que têm trazido ventos infaustos por aqui. O próprio mwenje, árvore de onde se vai extrair a madeira para produção da timbila, está sendo varrido por poeiras invisíveis que se instalaram em mãos humanas para destruir. De ano para ano a sensação que nos fica é de que o remoinho provocado pelo toque e dança e canto desta tribo do sul de Moçambique está a desvanecer. E para agravar o cenário sombrio, veio a COVID-19 impedir a realização – que teria sido em Agosto – do festival cujo palco entra em consonância com as Lagoas de Quissico.
Warethwa! (Cuidado!). Na verdade quando a xipalapala retumba, é preciso ter-se cuidado com o que vem das mãos e do corpo inteiro dos chopes. Da alma deles. Inabalável. Revolta. Insaciável. Quer dizer, Quissico - o vilarejo eleito - ressurge. Engrandece-se. Embevece. E é projectado para o mundo inteiro, de onde depois traz as pessoas do planeta para este lugar insignificante na sua geografia. Todos querem estar aqui para se embebedarem com a loucura da timbila. Delirarem com as diabruras esvoaçantes da mathchatchulani, que vai parecer uma gazela dançando livre nas savanas, nas manhãs, agradecendo à Deus pelo sol que raia com esplendor no crepúsculo..
Mas hoje em dia eu não sei se o M´saho ainda tem verve. Não sei se esta festa continua a resguardar o unguento dos tempos para amassajar as almas sedentas da secular música vertiginosa dos chopes. Não sei! Tenho as minhas dúvidas. Parece ser urgente e inadiável que se tenha em grande consideração o facto de estarmos perante um Património Cultural da Humanidade. Não que não haja esse respeito, mas a sensação que tenho é de que está-se a fazer pouco, começando pelo palco que acolhe as orquestras. Ou seja, para quem chega antes de começar o M´saho, e antes de chegarem as pessoas da assistência, regra geral o que se vê são pequenos sinais como dísticos apelativos com pouca chama em termos de imagem. E pior do que isso, olhando-se para o palco, a pergunta que vai surgir imediatamente será: é aqui onde vamos assistir às loucuras dos chopes? Na verdade o palco instalado não é de forma alguma digno de receber uma manifestação de tão elevado porte cultural.
É aqui provavelmente onde começa, ou se agudiza a contrariedade. Talvez a decepção. Os executantes são acolhidos naquilo que tende mais para um alpendre carrancudo, do que propriamente para um palco. Quem construiu aquilo provavelmente não tem sensibilidade sobre o que é um festival desta dimensão, sobre a grandeza da timbila no mundo. Não só temos na obra os irritantes pilares múltiplos, como também o tecto atarracado, sufocando os artistas e aqueles que estão sentados nas bancadas.
Em conversa oportuna com Filimone Meigos (director do ISARC) e Rufas Maculuve, músico e professor de música na mesma instituição, eles também indignaram-se com o palco que deve ser repensado urgentemente para os próximos festivais. O lugar tem um tesouro invejável que são as Lagoas de Quissico, esplendorosas, algo que não pode passar despercebido durante o evento. As Lagoas de Quissico devem fazer parte do Festival. E fazer com que aquela paisagem seja pertença do M´saho, passa necessariamente por repensar o palco.
É imperioso e urgente levar as coisas mais a sério, porque aqueles que vão à Quissico pelas alturas do M´saho, querem ver a beleza em si estampada em todo o lado. Os estrangeiros em particular, vão para ali porque já ouviram falar desta manifestação cultural e sabem que é Património Cultural da Humanidade. Sabem que a festa da timbila é elevada, então os organizadores precisam de corresponder à todas as expectativas, tornando o festival num importante eixo que deve passar também pela capacidade de fazer a comunicação e imagem. O Marketing. E espreitar aquilo que se faz noutros eventos pelo mundo fora, porque o M´saho tem dimesão mundial. E em tendo uma dimensão universal, é preciso fazer algo que justifique isso.
Sou morador do bairro Liberdade 3, num canto chamado Fonte Azul, carregado de longa histótória que inclui um campo de futebol denominado Bángwè. É tranquilo como toda a cidade, e ao amanhecer ainda podemos ouvir o chilrear dos pássaros que povoam as árvores, sem medo das pessoas que não as espantam. É uma maravilha que entretanto vai degenerar quando chega a vez dos aparelhos sonoros, acionados pelos donos que deviam conhecer e cumprir com as regras impostas às pessoas que vivem numa comunidade.
A postura camarária determina que da mesma forma que não se deve poluir o ambiente com lixo, também não se deve poluir esse mesmo ambiente com qualquer que seja o som. Mas esta última obrigatoridade é literalmente ignorada por boa parte dos munícipes, que exibem, sempre que lhes aprouver, a potência da sua aparelhagem sem se importarem com os vizinhos. Que estarão sujeitos ao barulho violento.
O pior é que esses senhores que violam sistematicamente um dos nossos direitos humanos que é o sossego e a tranquilidade e a paz, acham-se autorizados a fazer o que bem entendem porque segundo eles próprios, “eu estou na minha casa”. Aliás, nem às estruturas do bairro respeitam, e estes responsáveis, cansados de lhes chamar a atenção, acabam resignando-se de forma incompreensível, pois existem mecanismos para se combater esta anarquia, e um desses recursos é a Polícia Camarária que, na incapacidade de colocar ordem, pode solicitar a intervenção da Polícia de Protecção.
É um verdadeiro caos em todos os bairros da periferia. Aos fins-de-semana não nos deixam dormir. Eu pessoalmente não me canso de ligar ao Comando da Polícia Camarária quando a festa começa. Em determinados momentos eles vêm e resolvem o problema, mas na semana seguinte recomeça, como uma doença degenerativa. Volto a ligar e por vezes não há carro disponível, “está no Tofo a fazer trabalho”. Noutras vezes ainda, dizem para aguardar que “havemos de ir aí”, mas amanhece sem terem vindo, e nós sem termos dormido.
Já alertamos ao presidente do Município usando as redes sociais sobre este mal que nos flagela todos os dias. O que não sabemos é se ele captou esse nosso clamor porque o que está acontecer é na verdade algo muito sério, que precisa de uma intervenção bastante séria e urgente. É uma questão de vontade por parte de quem de direito porque é possível cortar este desmando de uma vez por todas, para trazer a tranquilidade aos munícipes que depositaram o seu voto para que o edil nos dirija e nos proteja.
Uma das estratégias de luta seria reunir primeiro todos os secretários de bairro e seus colaboradores, nomeadamente chefes de quarteirão e chefes de 10 (dez) casas, os agentes da Polícia Camarária e o vereador da área, onde o presidente do Município daria orientações claras de como partir-se para o desmantelamento da poluição sonora. Não é difícil havendo vontade. Esse encontro deve ter cobertura dos órgãos de informação. O edil tem que ter uma intervenção vigorosa, avisando a todos os prevaricadores que a partir daquele momento, seriam sancionados se não cumprirem com o preceituado.
Ainda neste combate a poluição sonora no município de Inhambane, podia-se colocar publicamente por via dos órgãos de informação , nas redes sociais e nas sedes dos bairros, os números de telefone do comando da Polícia Camarária. Às estruturas de bairro deve ser exigida intervenção para salvaguardar o bem estar da comunidade. Outro aspecto ainda, aos que não respeitarem a esta ordem e continuarem a poluir o ambiente, serão confiscadas as aparelhagens e aplicadas.
O presidente do muncípio deve informar à população que é dever de todos denunciar este tipo de comportamentos. É uma questão de vontade e de responsabilidade por arte da edilidade e das estruturas de bairro. De resto o sossego é um dos direitos humanos que nos assiste a todos.
O celular vibrou no bolso das calças e eu achei que podia atender noutra altura, depois de descer do barco. Eram oito horas da manhã de um sábado, e o meu destino era Linga-Linga, onde tenho ido amiúde ver a Fazilange, minha tia. Há dois caminhos para se chegar lá, a partir da Maxixe. O primeiro passa por Móngwè, e o outro por Murrombene. As duas vias têm o seu fascínio próprio, é por isso que me entrego a elas de forma aleatória. Mas existe ainda a esplendorosa estrada do mar, que nos leva ao êxtase da beleza, como se tudo aquilo fosse um paraíso.
Somos seis ocupantes da embarcação, incluindo dois tripulantes experientes, capazes de preverem a mudança dos ventos sem recorrerem ao barómetro, o barómetro são eles. Conhecem pelos nomes, cada lugar deste tapete azul que se estende entre os palmares da Maxixe e Murrombene, e outros palmares que ressurgem em Mucucune e Guidwane. Depois temos uma enorme vaga que nos deixa ver o Índico,por onde vão entrar os barcos de cabotagem que nunca mais apareceram por aqui.
Na verdade estamos no paraíso, e perante esta sumputuosidade da natureza, qualquer palavra será desnecessária. É como se nos prostrássemos a ouvir boa música, interepretada ao som das harpas. Não se fala quando é assim. Fica-se em silêncio, assim como nós estamos, deixando que as emoções triunfem. Também porque neste lugar quem manda são as gaivotas, que escolatam a nossa barcaça, susceptível dos sopros.
Mas eu vou a Linga-Linga ver a Fazilange. Providenciei um pequeno cabaz, que inclui duas garrafas de vinho, as quais vão proporcionar alegria a minha tia que me espera desde ontem, após uma ligação que fiz a dizer assim, Fazi, amanhã estou aí! É minha amiga. Ela gosta muito de mim na mesma proporção em que eu a admiro. Há uma afinidade entre nós. Falamos a mesma linguagem. De paródia.
Fazilange vive numa casa modesta virada eternamente para o mar. É uma mulher muthswa, levada para ali pelo marido, um bitonga pescador atacado e morto por um tubarão em plena faina. Então, a vida da minha tia, mesmo sem perder sentido, ficou profundamente abalada. Pior porque nunca teve filhos, nem ela, nem Khwambe Makwandra, e os dois eram felizes.
Agora vou a casa da minha amiga para matar saudade. Para lembrar momentos vibrantes que passamos juntos com Khwambe Makwandra, um homem jovial que vivia a vida profusamente. Quero ouvir a voz de soprano da Fazilange, tendo como catalizador o vinho que levo. Quero sentir o abraço profundo da minha tia. E já no auge, cantaremos canções dos nossos ídolos, onde não faltará Yimpi ya mafilista (guerra dos filisteus), do hinário da Igreja Metodista Unida.
Fazilange agora move-se com dificuldades, ela treme nas pernas, mas por dentro emana energia, testemunhada pela voz equalizada que canta versos antigos. É isso que me leva a visitá-la constantemente, como hoje, que vou passar aqui todo o sábado e todo o domingo, sem atender a nenhuma chamada do telefone que não pára de vibrar. Estou pouco me lixando para os que querem falar comigo, nem que seja para me comunicarem a última tragédia. Deixem-me ao menos desfrutar deste pedaço de paz, depois voltarei às azáfamas!
A primeira experiência que tive foi terrível, eu tinha apenas catorze anos. A minha mãe sofria de uma doença desconhecida. Estranha. Rastejava como um grande lagarto humano. Por vezes contorcia-se lembrando as serpentes em desespero. Na nossa casa o silêncio era por demais aterrador, e os meus dois irmãos mais novos chegaram a um ponto em que já não falavam. De fome. Parecia que estavam num funeral sem fim, assistindo aos seus próprios corpos descendo ao abismo. Vezes sem conta acercavam-se da mamã, abraçando-a sem se importarem com o mau cheiro que exalava. Eles também, como eu, cheiravam mal por falta de banho.
Não tinhamos nada. O papá foi-se embora para onde até hoje ninguém sabe, numa altura em que ainda não podiamos perceber as coisas, e a minha mãe nunca nos explicou sobre o desaparecimento do nosso projenitor porque ela perdeu a fala. Fomos crescendo como filhotes de uma fêmea abandonada. Incapaz. Sem provento. Pior do que isso, uma fêmea decepada por dentro, que vai passar a vida inteira sem poder caminhar na vertical. Era arrepiante ver minha mãe erguendo o corpo como uma grande salamandra e ir a casa de banho para a satisfação das necessidades. E regressava sem se lavar adquadamente porque não tinhamos sabão. Não tinhamos nada. Absolutamente nada. Não sabendo, até hoje, como é que chegamos vivos até àquele limite.
Mas eu já não podia suportar mais uma situação que superava as nossas capacidades de sofrimento. Era um castigo que queimava mais que o fogo do vale de Guehena. Então, precisa urgentemente de fazer qualquer coisa. Tinha que me mover, não como a salamandra encarnada na minha mãe, mas como alguém capaz de abdicar do corpo e entregar-se aos sabujos. Era mais fácil assim, segundo o que eu pensava, do que procurar trabalho com a idade que tinha. Por isso decidi vender-me para alimentar meus irmãos e tentar mudar a vida da minha mãe.
Apesar de criança, eu possuía corpo de mulher. Era bonita, e já tinha consciência de que nenhum homem resistiria aos encantos da minha fisionomia. Era portador de um activo valioso, que podia ser colocado na mesa das negociações com alguma arrogância. Aliás, antes de entrar nesse carreiro do diabo, já conversava com as minhas vizinhas que tinham uma longa carreira de prostituição e elas falavam-me das manhas que era preciso ter se quisesse fazer aquele trabalho catalogado no patamar do abominável. Até porque fui relutante, porém cheguei ao ponto em que já não aguentava assistir a minha família sucumbindo.
Expus-me resolutamente na montra da noite, preparada para o pior, vestindo saia curta, comprada com dinheiro que pedi emprestado a uma daquelas que viriam a ser minhas companheiras do infortúnio.. Sabia que estava entrando para o inferno, porém nas circunstâncias em que vivia com a minha mãe e meus irmãos, eu precisa entrar no inferno, para dar o Céu aos meus irmãos. À minha família. Não era o prazer que me chamava, mas o dinheiro, esse metal do diabo, que sem ele não haverá pão em casa.
Parou ao meu lado um carro de luxo, e o homem que ia ao volante convidou-me gentilmente a entrar. Já me tinham dito, as minhas amigas, que eu valia ouro, por isso não devia brincar em serviço, ou seja, tinha que cobrar de acordo com o meu estatuto. E foi isso que fiz. Sem saber, todavia, que a experiência seria amarga.
Eu era virgem, e o homem, ao aperceber-se disso, despejou sobre mim todo o seu sadismo. Estuprou-me com violência, e ainda revirou-me como carne no espeto sobre o fogo, sem se importar com o sangue que molhava os lençóis da pensão. Eu gemia de dor, e ele castigava-me mais a cada gemido.
Voltei para casa de madrugada. Esfarrapada no corpo e na alma. Revoltada. Decidida a nunca mais voltar a entregar-me às noites. Mas era mentira. Nesse dia a luz materializou-se na nossa casa. Comemos pão com salada e peixe frito, como nunca o tinhamos feito. Os meus irmãos tomaram banho com sabão. E a minha mãe, sem me dizer nada, chorou por perceber tudo. E comeu a comida da ignomínia. Mas tinha que comer para sobreviver.
Tornei-me profissional depois de todas as dores. Depois de toda a vergonha. A minha ferramente era o corpo. Usado e abusado, mas era uma importante jazida de rubis esgotáveis. Comprei um apartamento. Levei minha mãe ao tratramento médico na África do Sul, de onde regressou curada. Os meus irmãos estão formados, com a universidade paga pelo meu corpo subjugado. Mesmo assim, continuo a ser uma cobra, apesar das vestes de púrpura que me cobrem.
Há uma semana que havia saído de casa, e como vivo sòzinho, a música dos pássaros vai ficar sem auditório. A diarista vinha, na escala combinada, e sentia falta de mim. Abria a porta do quintal e não tinha a quem dizer bom dia. Ela tem as chaves da casa. Conquistou a minha confiança e já não há limites, dentro dos limites que a boa convivência e respeito mútuo aconselham.
Chama-se Hambvu e gosto muito dela. Mesmo assim não sei como é que está aqui comigo este tempo todo. O meu carácter é irrecomendável. Fervo em pouca água e sou capaz de pegar no ouro que me deram com amor e atirá-lo na pocilga. Já fiz isso, aliás venho fazendo isso na minha vida inconsequente. É por isso que as pessoas aproximam-se de mim, e logo no dia seguinte vão-se embora. Decepcionadas.
Hambvu é ouro puro. Sinto medo dela, todos os dias, não sei porquê. Por vezes sou impelido a ajudar em qualquer coisa e ela diz assim, deixa, tio, eu vou fazer. É uma mulher transformada numa obra grandiosa de arte pela minha imaginação. Pelos meus sentimentos humanos. Não se toca num quadro belo pendurado na parede, e Hambvu é um quadro belo que se move na minha casa. Fazendo tudo para que eu me sinta bem.
Nunca fui pessoa apaixonada pela comida, mas a comida da Hambvu mudou o meu paladar. Ando limpo, com roupa bem lavada, e tudo isso deve-se a esta mulher delicada, que merece muito mais do que aquilo que lhe pago. Aliás, sempre que chega o fim do mês, sinto que é um insulto dar-lhe aquelas migalhas, mas não posso fazer mais porque eu também recebo migalhas, então divido as minhas migalhas com Hambvu.
No quinto dia após eu ter saído de casa ela ligou para mim e perguntou, tio quando é que volta? E eu repondi, no domingo.
Na verdade eu sentia saudade da minha casa. Da Hambvu. Queria voltar para onde o meu coração bate em liberdade. Onde nas noites, depois de acompanhar os noticiários, desligo tudo, e deixo o reflexo da luz da varanda gotejar no meu quarto. E será nesse momento que vou fazer o exame da minha consciência, e o resultado é que não fiz nada de extraordinário. Sou uma mbila desafinada.
Domingo é dia do meu aniversário, e eu vou comemorar sòzinho, sem champanhe e sem ninguém para me abraçar. Mas isso não importa, o que eu quero é voltar para casa, mesmo metido neste pequeno autocarro barulhento, com gente a beber e a ouvir música em volume alto, desrespeitando as recomendações sobre a Covid-19.
Cheguei à casa exausto, são vinte e trinta. E neste estado não quero mais nada a não ser um banho e uma soupa quente que Hambvu preparou e deixou na geleira. Mas antes de abrir a porta, vejo um buquê de flores no chão. Fiquei assustado. Peguei no presente e reparei que não havia nenhuma mensagem a identificar a pessoa que me oferecia. Então o que me restava era guardar a surpresa esperar.
À noite, enquanto dormia, pensava em quem podia ser a pessoa que me trouxe as flores, mas não encontro a resposta até hoje, e já passam seis meses. A mulher mais recente que me visitava com alguma regularidade, morreu há dois anos, e de lá para cá nunca tive ninguém. Perguntei a Hambvu se tinha chegado alguém durante a minha ausência e ela respondeu assim, mas tio, aqui eu nunca vi nenhuma mulher, nem pegadas. Afinal o que é que se passa, tio?
O aeroporto de Maputo tremeu, não porque aterrava uma gigantesca aeronave, mas porque Timbila ta Mhono ia voar, como as águias que dominam as montanhas de pedra. Na capital inglesa, onde tudo vai começar, as televisões vão dando sem se cansar, excertos das actuações dos moçambicanos, para publicitação daqueles que irão actuar no Estádio de Wembley. Não há nenhum jornal que não insere publicidade da já considerada a maior orquestra de timbila de todos os tempos. Os melhores jornalistas ressurgem, soberbos, com reportagens espectaculares antes de chegarem as “águias”. Muitos desses jornalistas que agora retomam os apontamentos, estiveram no estádio da Machava, na despedida, e descrevem tudo aquilo sem, no entanto, conseguirem dizer tudo, porque, segundo eles próprios, o Timbila ta Mhono é infinito. As rádios abrem as suas emissões com o som da timbila e deixam essa secular melodia devastar os corações dos ouvintes por horas sem fim, muitos ingleses e outros europeus que estão em Londres, são entrevistados para dizer qualquer coisa sobre este vulcão que se anuncia, e a única coisa que eles conseguem dizer é, isto é simplesmente incrível, é imperdível.
Falta um dia para a abertura das comportas e tornar o Wembley numa albufeira sagrada dos chopi, para onde os europeus serão chamados a mergulhar e de lá sairem purificados, Wembley vai se transformar, com a chegada do Timbila ta Mhono, em lago Betsaida, onde o anjo Gabriel chegou e agitou a água para que todos mergulhassem e se puruficassem, e esse anjo Gabriel é, na linguagem dos jornalistas mais afoitos e mais criativos, que faziam estas comparações todas nas suas reportagens, Mathxinguiribwa, que não vai carregar a banda às costas, mas vai à frente dela, como Jesus Cristo ia à frente dos seus discípulos. Estas parábolas citadas nos jornais, aumentam a ansiedade, e os locutores chamam à atenção dos seus compatriotas para controlarem as emoções e reprimirem a ansiedade porque, como repetiam, a ansiedade mata.
Em Londres os hoteis estão abarrotados de gente que foi de diversos cantos da terra de Sua Majestade para testemunhar aquilo que é apelidado, por aqui, de meteorito sagrado, eles também querem ser fustigados, querem ver de perto esse mito vivo. A Polícia e o exército e a Polícia secreta, foram mobilizados para controlar a situação, e já fazem isso há um mês, mas nesta noite que antecede ao espectáculo, a vigilância redobra-se, em todas as ruas há agentes da autoridade trabalhando discretamente, também notam-se agentes da cavalaria movendo ora a passo, ora a trote, os seus pujantes cavalos, sem entretanto incomodarem as pessoas. À volta do estádio há várias lareiras com labaredas vivas, circundadas por jovens que cantam e dançam e bebem e comem carne assada em espetos, à espera que amanheça e concrectizem o sonho anunciado, e nesta alegria inefável, há um jovem que manda calar à todos para recordar o velho ditado, não é por muito madrugares que o sol vai nascer mais depressa. Mas esse raciocínio dos sábios não é relevante neste momento, dizia outro, para nós já amanheceu desde que estamos aqui. E a festa de antecâmara continua com muito sangue jovem, que ferve nas veias. Com verve.
É primavera, e as folhas caiem e espalham-se nas ruas e nas avenidas, folhas estas que não podem ir ao estádio ver o Timbila ta Mhono, porque dali, do chão, serão retriradas para o lixo, ou para servirem de adubo, o Big Ben aumenta a ansiedade dos corações em cada badalada, que ecoa para toda a cidade e soa directamente para os microfones de todas as estações de rádio ingleses, que não páram de anunciar o grande show.
Já amanheceu, os portões estão abertos, e as pessoas começam a entrar mesmo sabendo que ainda faltam muitas horas para iniciar o grande espectáculo que será sem dúvida, memorável, porque esta orquestra que vem de Moçambique, foi criada para estar permanentemente no cume, e aquilo que está no cume, a sua vocação é manter a luz acesa para todos os que estão no sopé. E perante Timbila ta Mhono todos sentem-se no sopé. E precisam dessa luz africana personificada em Mathxinguiribwa. Para iluminar a alma.
Sempre que passo por aqui nas manhãs, em obediência a rotina das minhas caminhadas de manutenção física, ela está a varrer o quintal, mais ou menos às mesmas horas. A casa dela fica ao longo da “Rua branca”, que sai do Handling e termina no Posto Médico. É um troço pouco movimentado, sobretudo a esta hora em que as pessoas ainda se preparam para sair e enfrentar o desafio da vida. Mesmo assim, depois de virem cá fora, as coisas não vão alterar muito porque a cidade de Inhambane não tem muito para onde ir.
É uma mulher que pode estar entre os cinquenta e os sessenta, mas ainda vibra. Sinto isso na forma como me olha. Há qualquer coisa naquele coração, mas eu tenho medo de avançar para perceber de perto o enigma. Se calhar é uma ilusão de óptica da minha parte. Provavelmente ela nem me vê como nada. E se na verdade me acha opaco, então está absolutamente protegida pela razão. Mas eu não deixo de alimentar a esperança que me habita desde o primeiro dia que os meus sentimentos mudaram de frequência, ao entrar em contacto com aquele ponto luminoso.
É ela que comanda a minha mente ao raiar do dia. Penso nela, logo salto da cama. O meu corpo inteiro entra em consonância consigo mesmo, e mesmo antes de beber a minha mistura de beterrada e cenoura e banana para me energizar, estou apto. Estou insuflado do sonho de ver alguém que me arrebata competamente. Então o meu dia começa nas nuvens. Ou seja, tenho algo importante em que pensar, mesmo que essa sensação seja boba. O que importa é abrir o leito da imaginação e deixar o rio correr livremente. E o rio é a minha paixão.
Não conheço o nome dela, e eu nunca quis sabê-lo por via de terceiros. Isso pode esvaziar todo este enredo que vou construindo não propriamente de forma desinteressada, mas sem pressa, como o faço com os livros que escrevo na minha fascinante solidão. Posso esperar o tempo que for necessário, até porque estou preparado para perder algo que nunca ganhei. Algo que me atrai sem que eu saiba o que vai dentro daquela cintilação. O pior é ela um dia dar-me um beijo, e tornar-se, a partir daí, na minha futura ex-companheira. É esse o medo que tenho. O medo de magoar. De voltar a magoar uma mulher.
Ontem passei novamente daquele espaço que se tornou especial na minha vida, ao ritmo da passada habitual e ela já estava ali, como sempre, desde o primeiro dia que a vi. Desta vez não está a varrer, e tudo leva a crer que vai sair, pois no lugar da capulana, veste uma saia florida que vai até um pouco abaixo dos joelhos, traja uma blusa amarela, e as duas peças entram em perfeita combinação. O cabelo grisalho com tranças finas e brincos de ouro e sapatinhos rasos de cabedal, dão-lhe o estatuto de celebridade. Ela é uma estrela.
Cheguei a pensar que ficou ali a minha espera, antes de seguir seu caminho, para que a visse naquelas vestes. Tentei fazer um esforço para não dizer nada, mas o brilho era demais. Muito forte por demais. E eu falei assim para ela, a senhora é muito bonita! E ela respondeu-me assim, você também!
Fiz-lhe um thxau com a mão, e ela retribuiu-me estalando os lábios dela em forma de beijo. E agora!
O dinheiro que ganhavam não era o mote. Nunca pensaram nessa mola de impulsão antes de, com os pés descalços, dominarem o esférico. Nem nas massas que viriam a encher os estádios. Eles nasceram com a bola nos pés, então urgia que descessem aos campos onde ressurgia a luz da glória. E eles nem sabiam do brilho que lhes esperava. Não podiam saber porque a força que lhes movia era maior. De modo que só lhes incumbia obedecer aos impulsos até se tornarem na força motriz das vitórias.
Luís Suquice fazia parte dessa panóplia que reverberava mesmo em dias infaustos. Eles eram o testemunho dos ditos intemporais de Deus, segundo os quais muitos serão chamados e poucos escolhidos. É por isso que o delírio do povo começava antes de o juiz da partida apitar para dar início ao turbilhão. Havia crença nesse tempo. Uma fé inabalável que lhes dava a força dos bisontes. Tudo o que faziam era vertiginoso, os passes, as defesas no último reduto, as estiradas dos guarda-redes e o engodo pela baliza.
Luís Siquice não era o único, mas avultava entre os tigres. Era o algoz escolhido para matar em momentos cruciais, e o veneno aspergido nos pés ainda no ventre da mulher que lhe deu a luz, era inoculado sem piedade para o desespero dos guarda-redes. Luís era essa águia imparável, e a história nunca vai perdoar aqueles que não o deixaram planar até outros céus, onde iria exuberar no zénite. E agora só nos resta ovacionar com estrondo a alma da nossa estrela que se aparta de um corpo que nos últimos momentos da errância pela terra, parecia resignado.
Na verdade o cheiro de Luís Siquice anda impregnado por aí, no bairro do Chamanculo e no Xiphamanine onde se desumbilicou. É também nas adegas de thonthontho (aguardente caseira) que os bebedores inveterados, frustrados e destruídos, não observam um minuto de silêncio, mas desencadeiam memórias, contando histórias sem fim de um artilheiro de ouro, que passou toda a vida sem nada material nas mãos. Misturando-se com as massas para as quais se tinha tornado um pequeno deus. Mas não haverá palavras suficientes para exaltar o mortífero avançado. Porém ele não merece o silêncio, nem as lágrimas.
Escrevo este texto imaginando o caixão de Luís Siquice entrando pela porta da maratona do Estádio da Machava, carregado aos ombros dos colegas do seu tempo, e nas bancadas um público de pé, eufórico, ovacionando o craque que se despede para sempre.
Hamba kalhe (vai em paz)!
Os meus dois amigos bebem cerveja tranquilamente na esplanada do restaurante, um sentado numa mesa, outro noutra, mesmo assim partilham a mesma garrafa. De Txilar. Parecem desolados, cada um fazendo as contas a vida sem dirigir palavra ao companheiro que está no outro barco navegando num rio triste. Na verdade esta esplanada é um rio triste no sentido de que não emana alegria. Eles são os únicos que estão alí, aliás, num dos cantos há mais um cliente degustando um peixe em silêncio, de costas para a rua vazia, contrariando os cowboys nos saloons.
Escrevi um poema na memória ao vê-los cada um ocupando a sua mesa, porém muito próximos um do outro, absortos nos telemóveis, completando assim o silêncio da cidade de Inhambane que daqui a pouco vai ficar entregue a outro silêncio, o do néon. Os últimos carros já passaram de recolha aos aposentos, e não vejo nenhum pedestre por aqui. Contudo, apesar deste mutismo, ainda consigo ouvir o derradeiro canto das tuta-negras penduradas nos cabos de electricidade. Outros nas copas das velhas acácias, despedindo-se do dia e agradecendo a Deus por terem saciado o bandulho sem precisarem de trabalhar.
Cheguei por volta das 16, convidado pelos dois “bradas” que dividem a Txilar, e o que me fascina a esta hora, é a total liberdade da urbe. É o silêncio. É a possibilidade de ouvir os batimentos compassados do coração. Também estou aqui em respeito a estes companheiros. É essa consideração aliás que levou-me a aceitar de pronto o chamamento, porque de outra forma não teria saído de casa, onde já me enclausurava mesmo antes da Covid-19. A pandemia quando chegou eu já era um prisioneiro do sossego que os meus aposentos me oferecem, ainda por cima um sossogo abrilhantado pela música diária dos pássaros.
Saudei aos dois, e as mesas estão de tal maneira dispostas que ao me sentar a uma delas, sou a ponte que os vai fortalecer a ligação. Se calhar sou a jangada. E antes que a conversa estalasse, um deles perguntou-me o quê que ia beber, e eu respondi, água! A água associa-me aos rios que venero, e aqui sou a ponte sobre o rio, ligando duas margens que se irmanam. Duas margens que bebem a mesma Txilar e comunicam-se por via do silêncio.
Estou com os meus amigos entregue ao vento das palavras. Livre como as gaivotas voando por sobre as marés vibrantes de verão. Aliviado dos pensamentos. Bebendo água, não num copo, mas numa taça de vinho. O garçon trouxe uma garrafa de água e serviu numa taça de vinho sem que eu desse por isso, nem os meus companheiros, mas também não acho isso importante. Água é água, num copo ou numa taça. Ou num rio. Mata sede na mesma. Mas há quem acha que as coisas devem ser colocadas nos seus devidos lugares, como este outro amigo que chega e exclama, estás a beber água numa taça de vinho!