Nunca falei com esta mulher, jamais ousei aproximar-me de um vulto tão profundo e tão desconhecido e tão vulcânico. Na verdade já estive variadíssimas vezes perto dela, no mercado, onde quase todos os dias nos cruzamos e quase nos roçagamos, mas é só assim, sem nenhuma palavra. Eu sempre senti-me pequeno demais para um empreendimento que de longe supera todas as minhas capacidades. Não porque a desejasse, no fundo o que eu almejava era ser um simples conhecido de alguém que parece um felino, uma bela gata.
Pode ter ultrapassado o limite dos sessenta, e nessa idade o corpo, todo ele por inteiro, começa a secar e sobram poucos fios capazes de nos atrair e lembrar-nos de que estamos vivos. Porém, apesar dessa tragédia inevitável provocada pelo tempo, esta obra do Altíssimo ainda reverbera. Tudo nela parece intacto, incluindo o olhar fugidio, frequente em donzelas que transportam nos gestos as tenazes armadilhas da paixão.
Chama-se Genoveva Chacassane, um nome que parece resumir toda a estrutura de uma criatura que em si só já é um vendaval que não pára de criar o caos no seu percurso. Anda invariavelmente vestida de capulana e lenço de cabeça e chinelos e um cesto pendurado no braço, tudo novo, o que me leva a pensar que ela tem um baú interminável. Aliás o outro pormenor que a destingue é o colar de ouro que dança no peito farto, e as várias pulseiras, também de ouro, adornando os braços. Nos dedos não tem nenhum anel.
Há dias em que vou ao mercado só para ver a Genoveva Nhacassane, que brilha para além dos diamantes. Conheço a hora dela, não falha. Por vezes saio decidido a dizer-lhe qualquer coisa, nem que seja um disparate, mas quando chega a hora da verdade, vacilo como os mabecos humilhados pelos grandes predadores. Tremo de alto a baixo e volto para casa envergonhado pela minha incapacidade. Tento de novo outro dia e... nada! Bebo uns copos para ver se o álcool ajuda-me..... também nada!
Genoveva Nhacassane se calhar nem sabe que eu existo. Pior do que isso, provavelmente sabe e não me vê como nada. E na verdade pode ser este caso onde sou um personagem secundário, dispensavel, porque sempre que chego perto dela, sinto-me um nenhumano. Fico com medo perante tanta beleza chocante.
Genoveva Nhacassane é uma jazida de vários metais preciosos, já me apeteceu dizer isso para ela ouvir, mas as palavras nunca foram para além dos meus sentimentos, até ao dia em que tudo se revelou como o dia clareando a favor da nossa liberdade.
Partilhamos pela primeira vez o mesmo autocarro, num trajecto de cerca de dez quilómetros, de Guiúa (onde tinhamos ido fazer compras na feira agrícola das sextas-feiras) à cidade de Inhambane onde moramos. Estamos sentados lado a lado no mesmo banco, e eu pensar que seria aquele o momento para pelo menos dizer qualquer coisa, talvez um bom dia... qual! Encolhi-me na concha da minha derrota.
Genoveva significa “mulher branca como a espuma do mar”, e eu preparei-me várias vezes para dizer isso a ver se ao menos vai passar a conhecer-me, e nem isso consegui. Não tenho coragem. Agora não vejo outro caminho senão continuar a ir ao mercado, apenas para contemplá-la. Para contemplar esta linda gata que me mata aos pedaços.