A Raínha Elizabeth, em visita a um hospital público de Liverpool, numa manhã de chuva, virou-se para o seu segurança principal e disse, indicando ao mesmo tempo com os olhos para um bebé deitado no bercário: este menino é muito lindo! Olhou para a mãe, que sorria, orgulhosa pelo elogio e perguntou, como é que ele se chama?
Lá fora, relampeja com intensidade, troveja como se o fim do mundo estivesse à ilharga, e a chuva cai em catadupa, contrariando o dia que amanhecera solarento. Chove que chove, para gáudio da Raínha que não sai do berçário do menino negro deitado tranquilamente sob vigilância constante da mãe. A soberana venera a chuva, sobretudo quando cai em consonância com os trovões e os relâmpagos. Para ela, isso é sinal de que algo importante vai acontecer, agora ou nos próximos tempos.
A mãe do menino, uma mulher espampanante, transbordante de beleza em toda a sua estrutura, disse a rainha que o seu filho ainda não tem nome. E a raínha perguntou, posso escolher um nome para ele?
A sequência dos trovões não pára, os relâmpagos iluminam mais que a luz do dia, e a chuva está determinada, nem que tenha chegado para inundar toda a cidade dos Beatles. Ela - a chuva - cai em recebimento do bebé que continua sereno no pequeno leito, e ninguém sabe que esta criança que chega num dia de grandes enxurradas, é um sinal inequívoco dos tempos. Ninguém sabe, mas a raínha pressentiu, por isso voltou a abordar a parturiente: como é que se diz chuva na língua dos teus avôs?
- Diz-se mbvura
A raínha Elizabeth sorriu e disse, o teu filho chama-se Mbvura, vai ser, quando crescer, primeiro-ministro da Inglaterra! Ele será intenso como a chuva que cai lá fora!
Os jornais abriram as primeiras páginas com parangonas sobre o menino negro que será primeiro-ministro da Inglaterra. As televisões e as Rádios inundaram espaços inteiros com a premonição da raínha. Há um choque profundo nos ingleses que nunca acreditaram na possibilidade de o globo terrestre parar repentinamente e um negro elegido cair para cima, sem perder a humildade.
Quem é esse bebé?! A pergunta é feita em cascata. É preciso matá-lo antes que vitupere a nossa raça! A raínha Elizabeth está louca por velhice! Outros diziam que a raínha está mais lúcida do que nunca. Ela fala a verdade! Esse menino vai ser o nosso primeiro-ministro! Vamos lhe dar o nosso apoio! Viva, Mbvuraaaaaaa! Vivaaaaaa!
Mbvura é um estudante da elite, na Universidade de Oxford, onde se tornou no centro das atenções dos colegas e dos professores. Discute com argumentos sólidos, sem o recurso aos estereótipos. O seu discurso não é de reivindicação, é de catapulta. Tudo o que ele diz nas conversas com os amigos e colegas, ou em lugares de circunstância, torna-se uma palestra pela forma brilhante e esclarecida como coloca os dados. Mbvura já atingiu o palanque, onde nunca quis estar, mas eis que é elevado. Fala da vida no sentido de que a vida é uma seara para todos, e que todos podem ser felizes, cada um com a sua foice para o mesmo campo. Para a mesma fartura.
Toda a Inglaterra - desde que Mbvura se transformou no centro da convergência - tornou-se a própria aurora, e já ninguém tem dúvidas de que ele é o primeiro-ministro de que se espera!
*Texto imaginário
Vi a miúda agachando-se com leveza e apanhou um caco que sobrou de uma garrafa partida na rua de pavet que sai da Fonte Azul à Escola Primária 1º de Maio. Havia outros pequenos pedaços de vidro espalhados no chão, e a menina recolheu tudo, com as mãos nuas. Tirou da pasta um caderno de onde rasgou uma folha e juntou nela os fragmentos, depois caminhou em direcção ao depósito de lixo que serve o mercado ali perto, e atirou delicadamente o embrulho.
Deve ter por aí nove/dez anos, é por isso que aquele gesto comoveu-me. Fiquei mais sentido ainda porque a menina, pelas características, provavelmente vem de uma família pobre, deduzi isso pelos chinelos de borracha que usava, velhos, segurados por arames em ambos os pés. Outro detalhe que notei nela é a camisa de uniforme, remendada, e a saia azul desbotada, com a baínha mal feita.
Faz frio por estes dias e a menina não está agasalhada, segura a pasta apertada ao peito para aquecer os pulmões, e naquela posição parece um um jogador de rugby que corre. Ao encontro da luz. A pele dela não brilha, então pode estar a passar privações em alimentação e sobre isso eu não tenho a menor dúvida. Mas mais do que todas essas contrariedades, podemos estar perante o samaritano que atrasou a sua ida à Igreja para salvar um homem bêbado ferido pelos bandidos. E esta menina atrasa à escola para retirar cacos da rua.
Invadiu-me a vontade de persegui-la, mas ela corria, alegre, com os livros sobre o peito, e vi-a depois encaixada no cacho dos colegas que também corriam ao chamamento do sino. Era assim que começava a minha manhã, desvancendo-me os pensamentos de que não vale a pena lutar porque o sinal está fechado para nós. Afinal vale a pena! Tudo a vale a pena quando a alma não é pequena, como a desta menina que caminha por cima de todos os cactos, com os pés nus, sem ser ferida.
Passado um tempo volto a vê-la no mesmo lugar, a voltar da escola, meu coração perdeu o compasso. Em vez de chama-la ao ponto onde eu estava, fui ter com ela, mesmo assim com medo de que as minhas palavras fossem inconsequentes.
- Olá, menina!
- Olá.
- Tudo bem?
- Estou bem, obrigada.
- Como é que te chamas?
- Dorotéia.
Perguntei-a se se lembrava do dia em que ali mesmo retirou cacos de vidro espalhados no chão, e ela disse que não. Não se lembrava. E é isso mesmo, quem faz o bem com toda a alma, não faz para se recordar, nem para ser visto!
- És uma menina abençoada.
- Porquê?
Se eu a dissesse que Dorotéia significa “Dádiva Divina”, eventualmente a miúda podia não entender. Mas eu entendi que Dorotéia é uma menina profunda. Tem um rio abundante por dentro, e uma enorme albufeira nos olhos-
Nhambuli está cansada de viver aqui, no seu próprio país, onde as pessoas, segundo ela diz, correm todos os dias e não chegam a lugar nenhum. Fumam cannabis sem parar, nas calçadas, na tentativa vã de atingir a felicidade na alucinação, e o que se vê é a contínua degradação do tecido da carne e do espírito. O pior é que nunca mais amanhece, para se concrectizar a poesia de Jorge Rebelo, “Não importa que seja longa a noite/a verdade é que há-de amanhecer.
De que vale eu ter todos estes bens que alimentam a minha carcaça – desabafa Nhambuli – se aqui mesmo ao lado há crianças que dormem sem comer! De que vale toda a bebida refinada de que me disponho, se aqui mesmo as mulheres são violadas diante de toda a gente, as cerianças estupradas! De que vale tudo isso se as hienas não esperam que a gente morra para nos degustarem! De que vale viver!
Nhambuli é uma mulher de finos cristais por dentro, onde bate descompassado – mas firme - um coração de ouro puro filtrado pelo fogo. Admiro-a, sobretudo pela serenidade transmitida pela voz profunda, e pelo olhar perturbador. Também noto sem muito esforço que apesar de melancólica, ainda mantém a lanterna nas mãos - no lugar das armas - a procura de outros caminhos que a possam levar a novas auroras.
Nhambuli venera o silêncio, por isso leva-me frequentemente – no seu carro - à praia de Guinjata, onde ficamos longas horas a ouvir a música ora tranquila, ora retumbante, interpretada pelas ondas do Índico. Neste paraíso nós somos meros mirones sexagenários, não propriamente frustrados, mas sem muita esperança. É por isso que Nhambuli diz repetidamente sem se cansar, vou abandonar este país!
Nhambuli nunca saíu de Inhambane, provavelmente seja por isso que de dentro dela nunca nascem farpas. Dentro dela há harpas que soam nas palavras e no olhar. Os olhos de Nhambuli cantam, ou ao pestanejar ou ao fixarem-se sobre algo como agora que contempla o Índico, agradecendo toda esta dádiva de estarmos aqui, quando muitos neste belo Moçambique, definham no desespero, sem nada para comer. É injusto!
Mas há uma orca dentro da Nhambuli, e Nhambuli não quer que essa orca sobreviva. Então, o melhor é fugir daqui – segundo diz nos intervalos dos goles de scotch - no barco de Gilberto Gil, “vamos fugir deste lugar baby/Estou cansado de esperar que você me carregue”. Ela canta sempre essa poesia do Gil, sem celebração nos olhos, nem na alma, implantada na voz. Nhambuli é a rola que deseja ardentemente voar para outro horizonte, e deixar para trás esta noite que nunca mais amanhece.
O meu interesse por Luísa Diogo não será movido propriamente por uma obsessão, mas por um sentimento de que ela é um farol de outra luz, é isso que eu sinto. A minha relação com esta mulher não passa de um amor platónico, é por isso que mantenho a expectativa encandescente de vê-la no cume. Na verdade ela está lá, mas há quem a quer fazer passar por uma simples lamparina colocada por debaixo da mesa, Luísa nasceu para luzir, e muitos têm medo desse foco intenso de luz.
Em 2010, à caminho de Cabora-Bassa, passei por um lugarejo chamado Nhabulebule, e disseram-me que é ali onde nasceu essa manhúngwè, sem que os seus pais soubessem que estavam dando à luz um astro que brilharia na turbulência das nuvens. Luísa significa “guerreira gloriosa”, “combatente famosa” ou “célebre nas batalhas”. Então, com este nome, o bebé que nascia não tinha outro caminho que não fosse o das montanhas de pedra, onde vai cintilar com um cajado invisível, mas que existe. Nas nas suas mãos.
Os algozes da Luísa Diogo têm em mente que é preciso barrá-la antes que faça estragos. Também sabem que a uma “guerreira gloriosa” não se demove, não há qualquer possibilidade nesse sentido, é por isso que não dormem quando pensam nela. O pior é que Luísa está pronta a sorrir em todos os momentos, mesmo estando no cadafalso, é isso que lhes atemoriza. Nunca veio cá fora pedir seja o que for, “combatente famosa” não pede, pois sabe que ainda não chegou o tempo da última passada. A passada crucial!
Em Nhabulebule não há nyau (dança contestatária dos povos shewa), Luísa Diogo não contesta, usa as asas de águia que trás por dentro para se manter nas alturas onde os pequenos jamais chegarão. Ela será para sempre o paradigma dos nyúngwès e de todos os povos de Tete e de todos os moçambicanos que defendem essa utopia de um novo amanhecer. No coração da Luísa, todas as dores vão esbater-se.
Mas eu falo de tudo isto pelo amor platónico que nos liga, a mim e a Luísa, e ela nem sabe que a amo. Nunca me importei que ela saiba ou não, o que conta é que neste meu devaneio, veja essa mulher com sorriso escancarado, planando como a própria águia de Nhabulebule. É essa a minha imaginação.
Tenho um vizinho que entra todos os dias na minha casa e pede um copo de água gelada. Nunca me pediu comida, jamais mostrou qualquer interesse nesse sentido, mesmo que me encontre à mesa, na varanda, onde gosto de estar sozinho, em silêncio, olhando para a natureza e a degustar de alguma iguaria. É um homem resoluto que tem sempre a bíblia debaixo do braço onde quer que esteja, com certeza o livro Divino será o talismã desta figura a quem todos chamam Barrabás.
É um celibatário como eu, porém não há nada de profundo que nos liga para além da proximidade geográfica e do ritual do copo de água, somos muito diferentes e ele deve ter percebido que não tenho capacidade de levitar na órbita em que ele gravita, por isso não me dá cavaco. Já conversamos em poucos momentos, mas esses encontros eram afinal um ensaio que acabou não dando em em nada, Barrabás desistiu da minha companhia.
Barrabás fala em parábolas, busca incessantemente os sentidos escondidos do Génesis ao Apocalipse, passando pelos Provérbios onde a Sabedoria de Deus eleva-se e depois espalha-se sem perder fulgor, por todos os rios abudantes da bíblia. E toda esta avalanche parece, aos olhos da sociedade, ser o motivo da louura deste indivíduo com verbo afinado e infinito vocabulário. Diz-se em todo o lado que Barrabás é um demente, eu nunca acreditei nessa afirmação sem qualquer base científica.
Chamam Barrabás ao meu vizinho, eu também o chamo assim, pois em momentos de aparente raiva, ele cerra os punhos e grita, libertem Barrabás! Grita assim também quando entra na minha casa, e eu adoro ouvir esse refrão que me dá um terramoto por dentro, libertem Barrabás!
Posso estar no quarto a descansar, mas quando oiço o grito de guerra do personagem que mora aqui ao lado, salto logo da cama porque Barrabás quer um copo de água geleda para matar a sede. Nunca o recusei e jamais quis imaginar o que aconteceria se um dia eu dissesse a ele que estou cansado de te dar de beber. Se calhar nesse dia estaria a perder um guia.
Provavelmente esteja na casa dos sessenta, transborda saúde. O cabelo, revolto com o de Sansão em fúria, não está propriamente limpo. Ele também não é uma pessoa propriamente cuidada, contudo, no seu interior, existe uma alma ardente, acesa por cima de extensas fogueiras. Há quem diz que não, que Barrabás está apagado por dentro, ele é a sobra das cinzas, senão não gritaria com raiva ordenando a libertação de um ladrão perigoso que é o próprio Barrabás.
O real Barrabás já esteve na eminência da morte, pendurado na cruz ao lado de Jesus Cristo que era vaiado, humilhado. E uma voz ressurgiu perguntando, destes dois aqui, um será libertado, qual deles é que vós quereis que seja poupado? E a multidão respondeu, libertem Barrabás! Libertem Barrabás! Libertem Barrabás!
E hoje o meu vizinho não se cansa de repetir aquele turbilhão de vozes, libertem Barrabás! Libertem Barrabás! Libertem Barrabás! Faz isso nas ruas, nos labirintos dos subúrbios onde vive, e também quando vem à minha casa pedir um copo de água gelada, num gesto que ultrapassa todo o meu entendimento.
Já antes de pairar por aqui a Covid-19 eu era uma mulher sem esperança, não acreditava no futuro, nem meu nem da minha cidade. Há sinais que me chegavam de vários lados com a mensagem de que do outro lado da porta não há nada, e eu levei tempo a perceber isso. Houve insistência por via de acontecimentos nefastos, testemunhados pelo silêncio que afinal vem dos tempos, para me fazerem entrender as parábolas, então acabei sentindo que ao final do dia não haverá flores para colher.
Nasci aqui há mais de 70 anos e nunca vi nada de extraordinário a acontecer. A princípio virava-me contra aqueles que saíam e não voltavam mais, eu sempre pensei que aqui fosse um paraíso. Por isso era incompreensível que alguém abandonasse um paraíso, era assim como eu pensava. Mas agora percebo esse êxodo dos filhos da dita “Terra da boa gente”, têm medo de voltar. Temem sucumbir como eu, que na verdade estou em estado vegetativo.
Um amigo meu, cuja intimidade vem dos tempos de infância, apareceu na minha cidade vindo da Europa, depois de longos anos de ausência e disse assim, Nhambuli, quero construir um complexo de lazer para divertir a juventude aos fins-de-semana, e o lugar escolhido é um bairro que fica a cerca de cinco quilómetros em direcção à praia do Tofo, saíndo do centro da urbe.
Delirei ao ouvir aquilo que me parecia uma música afinada em grandes conservatórios. O sonho em si era lindo, capaz de atrair o belo, porém a realidade veio mostrar que o homem que acabava de desembarcar com um projecto daqueles no regaço, não conhecia com profundeza o terreno que pisava, afinal movediço. Ergueu as infraestruturas que incluiam uma piscina para o público. Fez publicidade. Conquistou de facto a juventude que foi em avalanche. Badalou-se o complexo em terras outras. Vieram músicos de renome para noites de festa, em catadupa, mas pouco tempo depois a casa fechou as portas e o jovem regressou à Europa. Deixando seu sangue vertido no chão. Em vão.
Eu acreditava no sonho do meu amigo. Ia lá sempre passar o tempo e beber a minha cachaça e queimar o tempo num lugar retirado e tranquilo, e chegava mesmo a mergulhar na piscina sem qualquer complexo de mostrar o meu corpo envelhecido e enrugado, eu vibro por dentro mesmo assim. Mas o sol não demorou a cair no ocaso e deixou aquelas ruinas que ainda hoje me flagelam o espírito.
Não era a primeira vez que eu chegava a um limite doloroso como este, mas agora o meu cepticismo quanto ao futuro da minha cidade, que entrou em decadência, contrariando os tempos de euforia da juventude, aumentou. Não acredito no amanhã, e o que me resta é ruminar as dores sem poder fazer nada. Absolutamente nada! A não ser passar o tempo a beber cachaça e ouvir a música de Elizeth Cardoso, “Eu bebo sim”, sem esperança porém, de que o sol vai nascer outra vez na minha cidade.
Se calhar já cheguei ao ponto em que devo parar e prescrutar os últimos sinais do abismo. Sinto isso na minha incapacidade de socialização. Tento inventar novas palavras mas vejo que estou metido num beco sem saída, e o meu poço está seco, nem lama tem. Nas intervenções que tenho feito para as pedras existentes dentro de mim, a percepção é de que estou a plagiar-me em cada sílaba, e a plagiar os outros. O eco que volta dessas pedras interiores raspa-me dolorosamente a profundeza do coração, que deixou de ritmar ao compasso da juventude.
Sentado sozinho na minha varanda onde fumo lhamba sem parar, vejo tudo a metamorfosear-se em meu redor, e chego a conclusão que na verdade estou no limite, então o melhor é não trazer à memória as incongruências que comandam a minha vida desde o início. É melhor assim, até porque estou no palanque falando para a opacidade, ninguém me ouve, nem eu próprio me oiço. Não oiço nada, senão as mesmas palavras cansadas de mim de tanto repeti-las até a náusea.
Mas este silêncio que outrora debruava o paraíso da minha luta pelo amor, transformou-se em sismo, abala tremendamente a minha alma. Nem posso chorar, a Zabeli não está aqui para enxugar meu rosto. Ligo para ela.... nada, não atende! Envio mensagens atabalhoadas pedindo perdão... também nada, não responde! Ameaço-a dizendo que vou-me suicidar se ela não voltar, e a resposta, desta vez, vem da gargalhada dos mabecos.
Sou o fósforo inteiro sem glória, pronto a arder e queimar-me todo, deixando a cinza que voará aos pés dos sabujos. Estou à espera da faúlha que vem devagar para este limite onde me rigozijo por ainda poder tirar algumas palavras do meu poço sem água nem lama no fundo. São as mesmas palavras, eu sei, recusadas por todos de tanto serem repetitivas até se tornarem supérfluas. Desprezíveis.
O que me reconforta é que vou morrer fumando lhamba enrolada em papel arrancado dos meus livros que nunguém compra. Então estou a fumar as palavras que eu próprio escrevi em noites de solidão, num quarto onde ainda sinto o perfume da Zabeli. Embevece-me fumar as palavras buriladas ora com sentimento mais profundo, ora com gozo.
É este o lado belo da loucura, quando a gente chega ao limite e dá conta de que perdemos a capacidade de inventar novas palavras, novo futuro, e só nos resta fumar profusamente a lhamba enrolada em papel arrancado dos livros que nós mesmos escrevemos. Livros que ninguém compra, e se ninguém os compra é porque ninguém os lê. Nem a Zabeli, que vai-me matando aos pedaços.
- Senhora Luísa, você tentou uma vez candidatar-se a candidato a presidente da República, depois não conseguiu. Como é que se sentiu após essa derrota?
- A vida é composta de batalhas intermináveis. Aliás, já ao sairmos do ventre da nossa mãe, recebemos imediatamente esse aviso através da pancadinha que nos dão no rabinho, e choramos. O normal seria sorrirmos ao ver a luz do sol pela primeira vez, mas não é isso que acontece, choramos de susto e medo perante os verdugos que nos aguardam, disfarçados no imenso brilho do próprio universo.
- Mas qualquer batalha perdida deixa em nós uma dor!
- Eu acerdito que você já assistiu a grandes jogos de futebol, e nesses jogos deve lembrar-se de ter visto um grande golo marcado por um jogador genial, mas o árbitro entende anular esse tento que até pode ser de antologia. Por isso, ao entrarmos para grandes desafios, temos que contar com aqueles que têm o machado na mão, prontos para decapitarem-nos.
- Então sabia que podia perder naquele jogo de candidatura a candidato a presidente da República, onde pontificavam nomes avultados, não propriamente por aquilo que fizeram para o desenvolvimento do país, mas por outrios motivos!
- Em todas as minhas lutas contei sempre com o inesperado. A vida em si é inesperada. O próprio Jesus sabia que iria lhe acontecer o pior, mas veio a terra enfrentar os chacais e jamais deixou de lutar.
- Continua a acreditar que um dia pode vir a ser Presidente da República?
- O objectivo da minha vida não se circunscreve ao poder. Há várias frentes de luta, e a de presidente é apenas uma delas.
- Mas a Luísa Diogo queria (quer) ser Presidente da República!
- Há coisas que você só pode fazer tendo o poder na mão.
- Mas a senhora está no poder!
- O problema não é estar no poder. É ter o poder na mão.
- Há uma contradição nas suas palavras, e pela forma como fala deixa-nos perceber que afinal há uma espécie de obsessão dentro de si nesta luta!
- Se há alguma obsessão dentro de mim, é no sentido de que o meu desejo fervoroso é lutar para que algumas pessoas deixem de pensar que este país é deles sozinhos.
- É isso que lhe move na luta por ter o poder na mão?
- O que me move é a luta pela justiça, pelo respeito aos direitos dos cidadãos. É isso que me move.
- Os seus camaradas não têm conseguido isso?
- Eles combateram um bom combate, mas a partir de um determinado momento degeneraram, e precisam de descansar. Então precisamos todos nós, de um novo paradigma.
- E acha que esse novo paradigma está nas suas mãos?
- (Risos)
- Senhora Luísa, você teve momentos de pico, continua a ser uma mulher respeitada, é temida por aqueles que não querem novas luzes. Não receia que amanhã possa sair do cume onde está, para o sopé?
- Primeiro, não sabia que eu era temida por aqueles que não querem novas luzes, você é que está a dizer-me agora. Outrossim, nós vivemos entre os cumes e os sopés, segundo o escritor Lucílio Manjate, e eu subscrevo. Jesus Cristo foi aviltrado, achincalhado, pisado como areia, mas há uma coisa que não conseguiram tocar nele, a alma. Então se Jesus, que é uma Pessoa Grandiosa, chegou a ser puxado até ao nível do chão, quem sou eu para não ser posto a rastejar. Mas podem acreditar, a minha alma é inabalável. Continuo a acreditar na vitória dos meus propósitos.
- Moçambique tem futuro?
- Moçambique sempre teve futuro, o que acontece é que estamos ainda no alto-mar, a ser abalroados. Mas lá chegaremos, nem que seja a bordo de uma mwadia (canoa).
- Há quem diz que essa mwadia é a Luisa Diogo!
- (Risos) Nunca ouvi essa professia
* Entrevista imaginária
* Entrevista imaginária
Estive em Maputo entre os dias 25 e 27 deste mês de Abril, contra a minha vontade. A capital do meu país já não me seduz, nem quero mais sentir o cheiro que ela expele em toda a dimensão das avenidas e ruas, e dos prédios degradados. Fui porque era inevitável, o assunto requeria a minha pessoa em presença. É verdade que já fiz parte em tempos, do ram-ram desta grande metrópole, levando uma vida intensa que incluia bares noturnos onde ia ouvir música livre, com muito fumo à mistura e outras coisas que me levavam ao paraíso do céu. Mas hoje perdi a estrutura do anarquista que eu era, por isso todo este bulício, todo este cheiro de mijo alagando as acácias e as vedações e os becos dos subúrbios, as intermináveis buzinadelas, tudo isso repele-me.
Saí de Inhambane no domingo, dia 25 de Abril, transportado num autocarro da empresa ETRAGO, que podia considerar-se confortável, não fosse o inoportuno televisor colocado lá dentro e que nos é forçado a assistir, “querendo como não”. Mesmo que eu quisesse fechar os olhos para conciliar o sono e desligar-me deste castigo, seria impossível por causa do som que incomoda. A música que toca não faz parte da minha formação, pior os vídeos que vão sendo mostrados, não têm mais do que a exibição gratuita do corpo feminino. É isso que somos obrigados a assistir ao longo de uma longa viagem de quinhentos quilómetros.
Maputo não tem nada a oferecer-me, a não ser a frustração dos jovens completamente destruidos pelo álcool e pelo fumo, o desespero das mulheres sentadas na berma das ruas vendendo tudo. Dói-me sobremaneira o tratamento a que somos submetidos nos “chapas”, nos my love. Os prédios que Samora Machel nos deu estão a ruir um a um, e ninguém sabe o que será o nosso dia de amanhã, perante gritante incapacidade.
Ainda fui a tempo de ver, à entrada da cidade de Maputo, na zona de Marracuene, a nova fábrica da 2M. Lembrei-me ter visto, por via da televisão, o ilustre Tomaz Salomão na inauguração da mesma, fazendo um discurso de pompa, enaltecendo os empregos que irão para a juventude, e o milho das nossas machambas que será empregue na fabricação da cerveja. Mas o que eu não confirmo é se a 2M que se bebe em Moçambique é de boa qualidade ou não. Isso eu não confirmo nem desminto, por isso não me empolguei tanto com a intervenção dessa fugura que é membro da Comissão Política da Frelimo. A menos que volte e nos diga que a cerveja que ele mesmo propala na publicidade, é de boa qualidade.
Mas Maputo pode ser a síntese de que todo o nosso país está a ser abalroado no alto mar, em todas as vertentes. Eu desdenho Maputo, uma cidade que tem na mesma moeda um lado falso, e outro lado real. O lado falso é da Av, Julius Nyerere para lá, onde se arrotam fígados. O lado real fica mais para cá, onde a podridão nunca vai se esconder. É aqui onde vou me hospedar entre os dias 25 e 27 de Abril, convivendo com todo o fedor dos guetos sem futuro.
Maputo não tem futuro!
Na esplanada do Hotel Tofo-Mar não há vivalma, nem no bar onde cheira a bafio no lugar do aroma agradável do café. Ninguém vocaliza qualquer coisa, todos os trabalhadores aqui presentes parecem resignados. Há um silêncio de tédio que se parece com o prenúncio de uma chacina, não se ouve nenhum tilintar de talheres ou o som da cerveja jorrando para as grandes canecas ou para os copos. Porém, a música das ondas do Índico que se vão esbatendo na areia, ainda nos dá a esperança de que a vida vai voltar.
Mas eu venero lugares livres onde há silêncio, é por isso que estou aqui sem me importar com tudo o mais. Vim a Tofo para me abastrair, e Tofo só faz sentido para mim quando está assim, sem ninguém, ou com meia dúzia de gatos pingados que chegam a este lugar com o único propósito de ouvir a música do mar infinito, porque quando há muita gente, essa mesma música perde-se nas vozes que querem cantar também.
Estou sentado na esplanada, descamisado, bafejado por este paraíso sem saber ao certo o que vou beber, se uma água ou uma cerveja, tanto faz, apesar de que a cerveja tem essa vocação de me ajudar bastante na invenção dos solvejos, então é melhor pedir uma caneca.
- Dê-me uma caneca, por favor.
O garçon traz uma irresistível caneca de cerveja clara, que borbulha por dentro e transborda uma leve espuma que apresso-me a dominar com os lábios. Bebo um longo gole e invade-me imediatamente uma falsa sensação de bem estar. Sorrio para o oceano que não pára de cantar, cuja sequência das ondas faz-me lembrar que depois de nós vêm outros logo a seguir, talvez sem as mesmas armas que as nossas, como as próprias ondas que não terão a mesma intensidade das que hão-de vir depois.
Já vou na terceira caneca e o blues começa a brotar de dentro de mim, como se eu mesmo fosse o Budy Guy cantando Sweet home Chicago, ou o João Paulo imitando John Lee Hooker nas noites do Gil Vicente. Mas estou aqui sozinho feito uma lenha fora do feixe, e assim facilmente posso ser quebrado, então tenho que recorrer ao blues para convocar os meus demónios que me fortelecem a alma.
- Senhor, vai mais uma!
Eu nem tinha reparado que a caneca esvaziara. Estou alucinado pelo silêncio que se recusa a desvanecer, não obstante o zumbido dos barcos de recreio que levam mergulhadores ao fundo do mar. Bebo devagar sem me entregar aos pensamentos, não bebo para pensar, mesmo estando sozinho com os meus demónios, que estão loucos pelo blues que vai saindo mais intenso ao ritmo do efeito do álcool me vai subindo à cabeça. Mas já não posso mais continuar aqui, por hoje é bastante, estou saciado pela poesia da Tofo. Um lugar para o qual um dia voltarei, outra vez. O resto fica por conta das emoções.