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Alexandre Chaúque

Alexandre Chaúque

terça-feira, 15 janeiro 2019 16:58

Jaco Maria, meu irmão de sangue

 Em 1973 Jaco Maria gravava o seu primeiro disco (um single) onde consta o tema Hana nga nyi haladza. Uma elegia. Um apelo ao amor de uma mulher que se calhar nem existia. Provavelmente imaginada. Mas também toda aquela poesia emotiva, comovente, podia ser real, quem sabe! A verdade é que o disco era um foguetão preparado para lançar uma nave que ainda está em órbita. Quase quarenta e seis anos depois. E uma nave que fica esse tempo todo levitando, não pode voltar à atmosfera terrestre.

 

Quando ouvi pela primeira vez a voz de Jaco naquele disco de vinil, eu não tinha estrutura para perceber que estava diante de um anjo concebido por Deus para cantar no cume.  Das montanhas de pedra onde se ensoberbecem as águias. Com a nota de que este músico não se envaidece. Ele embevece. Aliás foi no Hokolókwè, uma banda de cristais puros, onde Jaco Maria retumbou humildemente, parecendo ele quem ia à frente. Então aí eu já tinha alguns elementos no intelecto para ficar assustado com o vulcão que já estava em erupção. 

 

Hokolókwè também não parecia daqui.

 

Eventualmente não percebíamos que os rapazes daquela banda eram possuídos por demónios de outro planeta. Jaco também. Quer dizer, do lugar onde se encontrava, o autor de Hana nga nyi haladza já não podia voltar para trás. O que lhe restava era continuar a avançar. Como os gnus. Feitos para avançar como o próprio mundo. As naves sagradas não retrocedem. E o homem mostrou-nos isso quando cantou o ressonante Sengue, acompanhado ao mais alto nível por aqueles rapazes que buscaram o funk para hastear um tema com letra simples. Profunda. Jaco Maria é meu irmão de sangue. No sentido de que nascemos no mesmo chão.

 

Ele no bairro Santarém, eu na Fonte Azul. Mas todos nós daqueles dois conglomerados parecíamos feitos da mesma massa. Dos mesmos grãos da terra que vestíamos com os pés. O que nos unia era a euforia de sermos crianças. Jogávamos à bola no “bángwè”, de onde me lembro de duas “estrelas” aos pés das quais nos rendíamos. Vencidos: Chumbo Lipato e Nando Guihoto. E talvez Papato. Lembras-te, Jaco? Claro que te lembras! Foram tempos. Bons. Vividos sem recalques. E o músico estava lá. Incubado naquele miúdo que nos intervalos da Escola Industrial e Comercial Vasco da Gama dava uns toques na bola de básquete. Mas Jaco não nasceu para “aquilo”.

 

Sentados frente à frente com Arão Litsuri, nos princípios do ano 2000, eu disse assim para ele: “Arão: tens uma das vozes masculinas mais bonitas de Moçambique! E o Arão respondeu-me assim: mas a voz mais bonita mesmo, é do Jaco Maria. Liguei para Salimo Muhamed, nesta segunda-feira (14.01.2019) e disse-lhe que a estava a escrever um texto sobre Jaco. Salimo disse-me assim: aquele manhambana canta para caramba! Pois é: Jaco Maria chama-se Angélico, de seu nome oficial. Angélico significa puro como os anjos. E com este nome, Jaco não podia seguir outro caminho que não fosse o da luz

terça-feira, 08 janeiro 2019 15:06

Meu nome é Nhambuli, um farrapo de mim mesmo

Chove há dois dias e aqui em Chalambe onde vivo, toda a desgraça vai despertar para renovar as nossas feridas colectivas. Os becos com saída vão ser desmentidos na sua vocação de vasos de comunicação. Assim como as vias estão no meu bairro, alagados, não posso movimentar-me em liberdade. A adega da Joana, onde geralmente tenho recorrido com os meus amigos para matar o tédio, está repelente. É lama por todo o lado. Charcos. Pior do que isso, a casa de banho que mesmo sem chuva é inóspita, agora tornou-se repugnante. Todos nós mijamos no chão. Sem nos importarmos com o forte cheiro da nossa própria urina. Estamos habituamos a este fedor. A este esterco. Mas o que me dói mais ainda é que eu, Nhambuli, já me resignei. Faço parte dessa escória.

 

Estou sentada na borda da cama escutando a música da chuva. Desliguei o televisor e o rádio. O som da precipitação pluviométrica, ao bater nas chapas de zinco que cobrem a casa a precisar de reparação, faz-me ouvir, na minha imaginação, o afro beat de Fela Kuti, com aquela enxurrada toda de sopros. Vivo sòzinha há mais de vinte anos, cercado de livros e discos que o meu marido deixou. Ele abandou-me e deixou-me com tudo. Foi por via dele que passei a amar os livros. A ouvir boa música. Mas agora que ele não está, tornei-me um farrapo. Não leio nada. Passo a vida a beber. A fumar. A drogar-me.

 

Chalambe, um dos bairros míticos da cidade de Inhambane, é a minha musa. Tenho muitos amigos aqui, mas celebrei ontem o meu sexagésimo aniversário natalício sozinha. Sem ninguém. Não queria ninguém. Desejava ardentemente sentir, agora como nunca, a dor da solidão, como uma verdadeira masoquista. Aviei-me com uma quantidade suficiente de “sativa” para aguentar o dia, quatro pequenas garrafas dessas bebidas horripilantes que estão a levar a juventude ao desvario e uns peixinhos (mihili), tirados desta baía linda como eu nos meus tempos de juventude.

 

Já perdi o hábito de recorrer à sombra da mafurreira que se ergue na marginal, junto à catedral da Igreja Católica, para contemplar o pôr-do-sol, que na minha ilusão de óptica cai por detrás daquela bela elevação do alto-Maxixe. Já não tenho motivação para o belo. E se aquele belo espectáculo da natureza já não me atrai, é porque eu própria  perdi a beleza. Sobretudo por dentro. O belo atrai o belo. E o que me resta é esta molécola de Chalambe onde me misturo com desperdícios humanos. Eu também sou um trapo humano.

 

É extraordinária esta música de Fela Kuti replicada pela chuva que cai sobre as chapas de zinco que cobrem a minha casa. Estou sentada na cama a dançar. Não sou eu quem dança. É a minha alma alucinada pela “cosa nostra” que dança. O meu corpo não. Nem pode dançar. Está definhado. Inútil. E ao comemorar ontem os meus sessenta anos, percebi melhor que na verdade o que resta de mim, é este farrapo

quarta-feira, 02 janeiro 2019 05:13

“O comboio dos duros” na Maxixe

Jamais será reduntante  dizer que a cidade da Maxixe é um entreposto do diabo.  Onde  há dinheiro o Lúcifer  está lá. Pessoalmente. E não existem dúvidas absolutamente nenhumas de que aquela urbe instalada do outro lado da baía de Inhambane é um reservatório desse metal de fel. Na verdade deve ser uma das “jazidas” mais vibrantes do nosso país. Alí não se dorme. Onde há “cacau” não há sesta.  No último fim-de-semana estive lá, levado  por um evento familiar. Nunca vou por ir àquele lugar, apesar de estar aqui perto. Vivo numa margem da baía de Inhambane, e a Maxixe está na outra margem da mesma embevecedora língua de água. De barco são dez-quinze minutos. E já está. Vejo-a todos os dias. Se gostasse dela beijá-la-ia sempre. Mas ela repele-me.  Sobretudo por albergar magotes de pessoas que estão sempre a correr. A empurarem-se uns aos outros. Ao encontro do “kombu”.  E eu sofro de parafobia.

 

De regresso à Inhambane-minha musa, depois de tudo, já no final da tarde, balancei na rampa que vai até à ponte onde devia fazer-me  numa barcaça com motor fora de bordo. As ondas estavam revoltas. Naquelas  condições e numa embarcação precária, podia ser forçado à um banho desagradável, e eu não estava disposto à tanto. Girei sobre o meu próprio eixo. Reatravessei a larga estrada aberta para o sul e para o norte, roçagando a cidade de lés a lés, dando-a vida. Sentei-me num dos bancos à espaços ocupado pelos vendedores de bolos que caçam sem parar os viajantes que passam. Transportados em autocarros  que sobem e descem. Não tenho pressa. Quero sentir essa Maxixe. Vesti-la outra vez como uma roupa que não nos fica muito bem. Mas que nos renova em certos cantos da alma.

 

Estou sentado sem me fixar especialmente em nada. Vejo muita gente em movimento. Ninguém está parado. O único que está despreocupado sou eu. Daqui onde estou vejo uma nesga do mar. Todo, ou quase todo o espaço que se libertava para nos dar o esplendor da paisagem marítima foi invadido. Ocupado. Violado. Estuprado. Sacaneado. As gaivotas zangaram-se e zarparam. Os cisnes, nem um.

 

De tempos a tempos passam camiões-cavalo e eu filmo-os com a memória do meu cérebro. Vão em direcção ao norte. Outros vêm do norte para o sul. Carregados. Super-carregados. São monstros que me fazem lembrar esse filme de acção dirigido por  Sam Peckimpah, de 1978: O comboio dos duros, baseado na canção country “Cnvoy” de C.W. MacCall. Estou sentado. Despreocupado. Tenho uma alternativa. Posso apanhar um “chapa” e dar a volta percorrendo sessenta quilómetros, no lugar de apanhar um banho forçado naquelas barcaças precárias. Epá! Vejo um velho atravessando  aquela estrada movimentada. Tem a espinha danificada. O lombo dobrado. Apoia-se num cajado. Bamboleia como um dançarino de mapiko.

 

Naquele instante há um camião que assome à alta velocidade. O condutor vê o velhote. Acciona a buzina que mais parece a cirene daqueles comboios à diesel que fazem Maputo-Chicualacuala. Poooommmmmm! Tremi na espinha. Lembrei-me do camionista que era perseguido pelo xerife no filme O Comboio dos duros. Mas o “madala” estava com os seus anjos. Saltou para o outro lado. Olhou para o monstro que ia se esfumando na distância, e mandou um manguito.

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