Sem apelo e nem agravo, o INE disse da sua justiça e fê-lo com aberta humildade, mantendo todas as portas e janelas para que o CNE/STAE esgrima dos seus argumentos e faça jus dos "apriorismos gazenses".
Apriorismo!Tomo de empréstimo o jargão tornado célebre por aqui, pelos ecos dum dos debates recentemente veiculados na STV. À partida, no caso vertente, não havia nenhum apriorismo, no sentido de projecção de pré-concepções com potencial de limitar a compreensão da complexidade de pressupostos que poderiam contribuir para um melhor fundamentado entendimento da questão. O mote da discussão era relativamente claro: o que se passava com os dados do censo eleitoral divulgados pela CNE, com particular enfoque para a província de Gaza.
A projecção apriorística foi enunciada pelo emitente da expressão, ao insinuar que o interlocutor pensava que Gaza era bastião da Frelimo. Não era o caso. Uma postura apriorística é isso. Trazer de casa suas próprias convicções e projectá-las como fio condutor do debate, com atribuições ilegítimas do "lugar da fala".
Mas não é sobre esse apriorismo que aqui aporto, senão pelas subjacentes implicações e significações do pomo da discórida. Independentemente da (im)plausibilidade dos dados avançados pela CNE, o agora anedótico apriorismo gazense, encerra uma complexa amalgama de questões estruturantes, inerentes ao "processo democrático moçambicano" enquanto constructo dinâmico, epitomizado na regularidade de eventos eleitorais.
Subjacente às pipocas numéricos de gaza, existe toda uma longa história de desvirtuamento da significância do investimento eleitoral, caracterizado por reportes amplamente documentados do escamoteamento e usurpação do valor e lisura dos actos pré, eleitorais e pós eleitorais, que concorrem para um ceticismo sobre a idoneidade processual e consequente descrédito dos resultados daí decorrentes, com negativas implicações na forma como muitos cidadãos vêm, percebem e/ou lidam com as estruturas institucionais coroadas, pela força do Conselho Constitucional e pela aguerrida prontidão com que o aparato repressivo formal, e obscuro, vigiam e reprimem as contestações.
Habituados a ver as artimanhas eleitorais romperem pelas costuras no auge das campanhas e no momento do escrutínio em si, a revelação de que potencial viciação das eleições esteja a decorrer muito à prior, potencia esta onda de indignação pelo permanente desvanecer da esperança e aspiração por processos eleitorais relativamente isentos e credíveis.
Os últimos episódios de Marromeu, em que, à luz do dia indivíduos em conflito de interesse posicionaram-se como escrutinadores e membros de mesa, o escabroso saque de urnas eleitorais por janelas e posterior retorno por indivíduos trasvestidos na nobre indumentaria das corporações do Estado, exacerbam a percepção de que os concorrentes dos partidos não dominantes encontram-se em situação de desvantagem acrescida, não apenas pelo uso e abuso de meios de Estado para a materialização das campanhas, como pelo facto de terem que conformar-se perante evidentes usurpações de resultados, geralmente a favor do partidão.
Historicamente, a limitada capacidade de interposição tempestiva de recursos em situações de reportes de fraudes, por parte dos partidos que subsistem, a duras penas, à margem do poder, tem sido capitalizados por um sistema político eleitoral descomprometido com as "verdades eleitorais" e que não raras vezes agem como escudo de proteção e salvaguarda, voluntariosa e/ou mandatada, empenhada em impedir que partido tal ou qual ascenda ao poder em qualquer um dos níveis de governação que seja objecto de escrutínio.
O pseudo-apriorismo que se pretendia interpor para acalentar o tempo e espaço de legitimação de desvios matemáticos e lógicos, não se cinge na discussão quantitativa da plausibilidade dos dados populacionais avançados e nas incongruências contrastivas associadas aos dados oficializados pela CNE, verus INE.
Com ou sem ressalvas metodológicas, rearticulação de possíveis factores contribuintes e ou determinantes para tão desproporcional resultado de recenseamento eleitoral, o apriorismo lê-se nas entrelinhas que denunciam manobras visando abocanhar assentos em assembleias e estabelecer uma reserva contabilística, com potencial de (des)equilibrar a balança de resultados cumulativos a nível nacional. Já se viu no pleito das presidenciais passadas que cada província conta, e mais do que isso, cada voto faz diferença, como ficou patente nas recentes eleições autarquicas, com particular exemplo da Autarquia da Matola e dessas outras autarquias, como Alto-Molocué em que, pelo significado de cada voto, não se hesita em recorrer-se a expedientes vis, como quebra de vontade, violação da integridade física e quebra de membros até de indivíduos em exercício de actividades de representativade de Estado.
A instrumentalização apriorística de pressupostos, manifesta-se na crença de que as pessoas não se cansam de discussões circulares sobre as ilegitimidades e penumbras de processos eleitorais duvidosos, que se vai instituindo no imaginário social e como cultura política.
Ainda que superestimem a nossa ignorância, ao insistirem em enveredar por tão sinuosas trilhas, as nossas instituições de gestão eleitoral, digo, os guardiões de tais instituições, prestam um inimaginável desserviço ao país, ao contribuir na produção e perpetuação de farsas.
É tempo de não contarem com o nosso conformismo e muito menos anuências. Parafraseando o "é melhor deixar" do nosso PR, ou "relaxar", com direito a sinónimos, da nossa Presidente de Parlamento, penso que esses tempos estão minguando. Pois, a corrosão do sentido de pertença, o descaso pelas "leis", a reprodução das inequidades e da pobreza que nos assola não se materializa apenas pelas limitações na concepção, articulação e implementação dos nossos projectos de transformação socioeconómica, mas nestes apriorismos que assumem que tem de haver instruções e/ou "ordens superiores" a serem seguidas, rumo às ditas "vitórias retumbantes", a todo o custo.
Como se diz na gíria das zangas de momento, políticas e artísticas, este país é também nosso, igualmente nosso. Incluindo os gazenses em idade eleitoral activa e passiva, generosamente contabilizados entre vivos e mortos.
"Sem drama e nem trauma", pode ter soado a simples refrão de despedida. É mais do que isso. Um acto de coragem. Um convite ao (re)encontro com a verticalidade de espinha, pela qual muitos se definem.