Eu, apóstolo da desgraça
As três primeiras audiências a Mutota e Nhangumele foram muito interessantes. O autor não se debruça sobre o que cada referiu em particular. Apenas uma interpretação do que disseram e das atitudes dos réus.
Um, aparentemente algo colaborativo no primeiro dia da audição, mas com tropeços e incoerências no que era fundamental: afinal, quanto recebeu de “luvas” (corrupção), onde utilizou os 650 mil dólares americanos? Disse que não tinha nada e, nos gestos com as mãos, depreende-se “nada” de material. Mas fez machamba e gastou 650 mil dólares numa machamba, o que é muito dinheiro para o efeito. Quantos hectares, que investimentos em bens de capital, quanto produziu e o que lucrou? Um vazio de Mutota e uma pouca exploração do assunto por parte do juiz. No segundo dia, foi mais comedido e remeteu-se para a cortina da poeira, alegando segredo de Estado ou impedimento de responder por ordens do chefe. O Senhor Mutota dormiu, certamente, com indicações do seu advogado e com “orientações superiores”. Ou, os dois, lembravam-se de muitos detalhes, mesmo das comunicações (por exemplo, por via de e-mails), nos quais referia a palavra frangos (quer dizer dólares) aos milhões.
Seguiu-se o bem-falante Teófilo Nhangumele. Após um primeiro encontro com libanês Jean Boustani, referido muitas vezes como o Jean, Teófilo apresentou a ideia ao seu amigo de longa data Mutota, funcionário do SISE e, na altura, chefe do gabinete de estudos da secreta moçambicana, no sentido de saber a quem e como apresentar a ideia do projecto. A ideia de como vender o projecto ao governo foi fácil e veio na onda do que também disse Mutota: defesa da soberania, terrorismo, tráficos diversos na costa, espionagem, pirataria marítima, etc. Razões fortes!!
Seguiram-se estudos elaborados por Teófilo (que diz ter formação em “Gestão de Negócios”) e, entretanto, antes e depois do processo de elaboração do projecto final, várias reuniões a diferentes níveis, incluindo na Presidência da República com a presença de vários ministros, entre os quais o actual Presidente Filipe Nyusi. Foi este que, numa das reuniões, sugeriu que se avançasse com o projecto.
O senhor Boustani convidou Teófilo a vários centros de produção de equipamentos e de espionagem (“informação”), construção naval, etc. Pela fala de Teófilo, este ficou assombrado/embasbacado com o que viu! Na conversa sobre os pagamentos a Teófilo, abriu-se uma conta num país árabe que, para o efeito, devia apresentar um contrato de trabalho de Teófilo com uma empresa registada nesse país. Para manter a residência, deveria deslocar-se semestralmente a esse país.
O discurso de Teófilo revela arrogância com partes anedóticas e até com “piadas” em relação ao seu ex-amigo Mutota, a quem não pagou parte do suborno oferecido por Boustani. Revelou desprezo pelos formalismos perante um tribunal e o juiz, pela forma da exposição efectuada. Parecia que estava a “txilar” com os presentes em que ele seria o maestro. Mutota e Teófilo tinham duas empresas no mesmo local, numa casa arrendada, que, posteriormente, por desentendimentos entre ambos, separaram os locais das empresas, porém, mantendo Mutota alguns dossiers nos escritórios, agora só da empresa de Nhangumele. Ser funcionário do Estado (SISE) e criar uma empresa para efeitos de recebimentos relacionados com o projecto é, à partida, um forte indício de corrupção e um tratamento de vilão para engenharias financeiras complexas e de corrupção.
Nhangumele surge e parece que era o maestro da operação com o exterior, o intermediário (facilitador para o estabelecimento de canais de comunicação), serviço este pago por 50 milhões de dólares americanos como “taxa de sucesso” que, posteriormente, distribuiu por Mutota e Ndambi Guebuza (filho do então Presidente), ironicamente apelidado de Cinderela por Boustani. Ndambi reclamou um valor maior para pagar a outros de nome desconhecido até ao momento da última audiência de Teófilo (segredo de Estado?). Dos 50 milhões, “Cinderela”, que parece ter sido o menos activo lobista, mas eventualmente o mais relacionado com o(s) centro(s) do poder, ficou com 33 milhões de dólares. Quem serão esses, da “cadeia de valor” lobista e/ou de decisão, para fazer chegar as informações ao “chefe”?
Os “cabeças” das empresas de lobby (Mutota e Teófilo), possuíam formação em Relações Internacionais. Um deles, Nhangumele, que elaborou os projectos técnicos e financeiros disse ainda ser gestor de negócios. Não foi perguntado nem referido pelos dois réus (Mutota e Nhangumele), porque estas funções seriam exercidas por uma empresa, mesmo que do Estado (empresa pública de direito privado), ligadas aos ministérios da Defesa e Segurança. Por outro lado, como indivíduos com formação de base em Relações Internacionais e um deles, também em “gestão de negócios”, fazem ou apresentam projectos técnicos e económico-financeiros tão especializados.
Além do assombro perante centros industriais e tecnológicos de espionagem tão sofisticados, soma-se uma organização de venda do projecto realizada por lobistas e amadores profissionais nas áreas técnicas em questão, de influência securitária e “pressionados” / “orientados” por gangsters financeiros internacionais. O Estado e as instituições de defesa e segurança revelaram-se incompetentes para o tratamento da complexidade dos assuntos.
O financiamento externo deveria ser externo, pois, conforme disse Manuel Chang, o orçamento do Estado não teria disponibilidade para suportar volumes tão elevados de investimento. Surge então à superfície, o que certamente já estava equacionado por Boustani: de um concurso para financiamento externo, apenas surge interessado o Credid Suisse, com quem Boustani tinha relações habituais. Tudo perfeito: os dólares concedidos, contas abertas no exterior, transações financeiras estranhas (como por exemplo, por enquanto, as referidas transferências para Portugal para uma conta de Murali do Moza Banco e do mesmo Teófilo para uma conta de Mutemuke na Turquia, assunto ainda não devidamente averiguado nas audiências), e, luz verde para a autopista da corrupção mais escandalosa de Moçambique.
Dos valores recebidos (cerca de 8,5 milhões de dólares de Nhangumele e 980 mil para Mutota) foram aplicados de forma difusa. Das respostas ao juiz, Mutota disse o dinheiro foi aplicado numa machamba em Mocuba (que parece não existir), parte do dinheiro de Teófilo foi gasto em aquisição de imóveis em Moçambique e em Nelspruit, carros (a moto também?), quotas da empresa ligada ao sector do caju Tinkarossi, contas na África do Sul (FNB), em Maputo (Moza Banco) e uma outra em Abu Dhabi, e em “gastos correntes” (incluindo carros – “máquinas”), o que totaliza cerca de metade dos 8,5 milhões de dólares recebidos para “massagear o sistema” (considerado como a função de “facilitador de canais de informação”). Várias viagens foram realizadas e pagas por Boustani ao exterior, sendo, pelo menos numa delas realizada em jato particular.
Pode-se sintetizar que esta trama de corrupção foi orientada e manipulada de fora (gangs financeiras internacionais com agências secretas) com ideias “patrioticamente” cativantes, executada em Moçambique por pessoas amigas e “amadoras” nestes assuntos (amigos vilões), que utilizaram as fragilidades (incompetências) do Estado e envolvendo pessoas das hierarquias superiores para o saque de comissões (“taxas de sucesso”), constantes em contrato com Teófilo Nhangumele que, perante tanto dinheiro (embasbaque), fizeram aplicações, sobretudo em bens de manifestação exterior de riqueza e não em investimentos produtivos, o que revela comportamentos de “endinheiramento” fácil e rápido (vilões ricos). As alianças com base em amiguismos foram sendo quebradas devido à partilha do dinheiro (desavenças entre Nhangumele e Mutota por envolvimento de terceiros), por encerramento dos processos nas instituições securitárias e partidárias (saída de Nhangumele). Elementos do Estado, ou por estes pagos, montaram a máquina estatal e partidária de propaganda, de defesa dos objectivos, da camuflagem da corrupção e de ataque aos apóstolos da desgraça (gangsterização do Estado). Este aspectos justificam o título do texto, isto é, assuntos de elevada complexidade assumidos por incompetentes e desconhecedores das complexidades securitárias e o espanto nas visitas a centros de espionagem altamente sofisticados, embriagados por dinheiro cujos montantes, pelo menos de grande parte, não tinham a ideia das dimensões envolvidas e gastaram parte desses valores à boa maneira de novo/vilão rico. Com todo o respeito pelos camponeses, é como se lhes disséssemos que iria produzir mil toneladas de milho ou subir a Torre Eiffel, ou simplesmente mudar de um andar em tapete rolante num centro comercial de Maputo. Samora utilizava em muitas circunstâncias, para situações deste tipo, de comportamentos madjembenis.
João Mosca
Eu, apóstolo da desgraça
O processo das dívidas ocultas passou a uma nova fase. Após um sem número de negociações políticas e uma batalha jurídica empoeirada propositadamente, eis que o camarada Chang parece regressar ao solo da pátria amada. Chang no meio desta tempestade de poeira parece ter desempenhado o papel de sargento executor, negociador e de angariação do ´tako´. Isto porque, o comandante parece nada ter assinado. Mandava assinar como dever patriótico.
Entretanto, o “chefe” sabia de tudo através dos responsáveis de briefings, realizaram-se reuniões na presidência. Houve vozes que desaconselharam o avanço do projecto. Mesmo assim, a orientação foi: avance-se.
Não se pode sumarizar um processo tão longo, tenebroso, “gangsterizado” de saque da pátria e do povo (recordam-se desse conceito?), composto por um grupo de artífices, de assinantes patrióticos ou patrioticamente obrigados, aldrabões de camuflagem e da mentira e pombinhas brancas que até nada sabiam do que acontecia e de “facilitadores” dos fluxos de branqueamento de capitais.
A organização do projecto alegava, como fundamento principal, a capacitação do país contra os riscos da pátria: terrorismo, guerras, tráficos de droga, pirataria marítima, etc. Que bonito! Bonito porque, afinal, altas instâncias do poder e/ou seus dependentes estão involucradas nesses crimes da droga, tráficos de madeira, pescado e minerais e produtos faunísticos e até em negócios da guerra. Sabendo-se dos preparativos para uma guerra desde 2012, eis que nada se fez ou, como se diz, estavam mais preocupados em matar Dhlakama.
Quando soaram as primeiras notícias no exterior, eis que estas, para os aldrabões da camuflagem de serviço, diziam ser acção do inimigo, sem fundamento, boatos. Internamente organizações e membros da sociedade civil que procuravam a verdade foram, de imediato, ou foi intensificada, a designação de “apóstolos da desgraça”, aconteceram ameaças e espancamentos. As acções dos esquadrões da morte intensificaram-se.
E o processo de denúncia continuou. A sociedade civil foi exemplar contra ameaças e perseguições, muitos dos seus membros colocaram-se na linha de tiro e grande parte não recuou. As redes sociais de defesa do regime aumentaram a produção, tanto com linguagem primária e boçal, como de ameaças e de propaganda refinada; também nestes espaços, pessoas da sociedade civil resistiram e continuaram o dever de qualquer cidadão. Internacionalmente desenvolveram-se acções de acusação e defesa com implicações na alta finança, também parte desta comprometida com a corrupção e o não-cumprimento de procedimentos para créditos deste tipo, na política envolvendo presidentes de repúblicas.
A PGR e outras instâncias judiciais actuaram politicamente, lentamente e sem opções face aos avanços dos processos fora do país. Muito democracia nesta “pátria amada”.
Iniciado o julgamento, assiste-se a exposições dos acusados absolutamente ridículas. Não se sabe onde foram aplicados 650 mil dólares: ah sim, afinal foi na machamba com produtos para comer! mas por que não comeu logo o dinheiro? E, perante o juiz, há afinal respostas que os chefes proibiram de responder. E o juiz acata.
E os advogados, alguns com nome na praça, não obstante o princípio da presunção de inocência e o direito de defesa dos supostos criminosos ou infractores da lei, e a função do advogado em defender casos perante o tribunal, assumem posições provocatórias (contra as regras de comportamento pessoal em sala de julgamento). Parte das estratégias dos advogados de defesa é geralmente em desviar atenções, concentrar-se em questões secundárias e processuais (muitas vezes não regulamentadas), orientar os seus clientes para alegar segredo de Estado. Será que, sendo advogado, é ético (não digo ilegal nem inconstitucional) defender casos de quase evidente corrupção, assassinatos e outros crimes? Ou ser advogado reduz-se à prestação de um serviço mercantil?
São reveladas transferências e valores dos projectos acima dos contratados, parte destinadas à corrupção directa, com abertura de contas em Moçambique ou no estrangeiro, utilizando, em muitos casos, intermediários de camuflagem. Nada de novo, só a poeira pensando que os moçambicanos são burros. Também são comuns processos de sobrefacturação ou da prática de preços exorbitantes. Neste caso, como é normal, todos os advogados estão coordenados. Como disse o juiz, na audição do dia 25 de Agosto, até vão juntos fazer as necessidades vitais (WC) e saem todos na mesma altura. Até as necessidades estão sincronizadas!
Esta palhaçada criminosa revela: que estamos perante um Estado e o respectivo partido no poder, capturado por ladrões, aldrabões e assassinos, que distribuem o roubo por serviços à “pátria” (assinando contratos livremente ou sob ameaças, pactos de silêncio, negociações, camuflagem e diversionismo). Pessoas que se dizem de libertadores da terra e dos homens, contra a dominação estrangeira, afinal, roubam, desprezam o povo em quase escravatura, fuzilam, matam, chicoteiam e fazem desaparecer pessoas em valas comuns em nome da defesa da revolução e suportados pela violência revolucionária contra a violência reaccionária. Gatunos que se apoderam de bens do Estado (dos cidadãos, a tal palavra esquecida de povo), de dinheiro de bancos, de casas e moradias, de empresários de sucesso que nada sabem de empresas, de gente com dinheiro sem nunca ter produzido ou em cargos.
As dívidas ocultas enquadram-se em contexto de um país onde as elites político-empresariais, onde o Estado organiza a economia e alberga grupos de interesses assentes em famílias, no regionalismo/etnicidade, suportados e protegidos pelo partido, com alianças internas e externas num emaranhado de pessoas, grupos e do Estado.
Dois mil milhões de dólares americanos, são, certamente, peanuts, quando comparado com as negociatas de Cahora Bassa, a fuga de capitais, os contratos de gás e de outros recursos naturais, da energia para o exterior, do pescado e da fauna bravia dizimada, do açambarcamento de milhares de hectares concedidos/licenciados fora da lei, da lavagem de dinheiro e muito mais. E, mais importante, as escolas, centros de saúde, estradas, incentivos à produção, formação de moçambicanos, modernização do Estado e do tecido económico, não construídos, que não se realizaram por conta da corrupção. E pobreza gerada em consequência dos biliões de dólares sugados ao povo moçambicano.
Muita poeira… mas os poeirentos são, afinal, aqueles que procuram camuflar o roubo evitando ou desviando as atenções para questões de menor importância. Há muita poeira, sim, Sr. Guebuza.
Vocês libertadores, que mereceriam o reconhecimento histórico pela independência (não obstante processos sinuosos durante a luta de libertação nacional), passarão para a história como gangues de malfeitores e, eventualmente, com a categoria de lesa-pátrias. Mas afinal, quem lança a muita poeira? É poeirada para esconder crimes. Neste caso não é poeira ou boato …. É uma “desorganização organizada”.
Como a história já não é só escrita pelos vencedores (ainda com a agravante do enorme défice de confiança gerada), A HISTÓRIA NÃO VOS ABSOLVERÁ.
João Mosca
Ontem, um pouco antes do início do julgamento, dito o das “Dívidas Ocultas” ou “Dívidas Não Declaradas” ou ainda das “Dívidas Ilegais/Inconstitucionais/Ilegítimas/Odiosas”, trazia no bolso questões prévias e destas uma de fundo. Tinha fé de que o Juiz, em momento oportuno, abriria as linhas telefónicas para os ouvintes e telespectadores. Debalde. Em benefício público, eis algumas das questões prévias: 1) Quem iniciou/participou na concepção e/ou na aprovação do projecto de monitoria da costa moçambicana?; 2) Quem participou na identificação/estruturação dos financiamentos/empréstimos e /ou na sua aprovação?; 3) Quem participou nos actos de contratação dos empréstimos (2, 2 mil milhões de dólares americanos)?; 4) Quem recebeu os empréstimos transferidos (directamente) pelos bancos?; e 5) O que foi pago com o valor dos empréstimos?
Ainda decorrente da sessão de ontem e do que fora avançado pela acusação quanto as circunstâncias iniciais para a concepcção do projecto (corria o ano de 2011 e trazido como novidade por estrangeiros) dá a impressão de que Moçambique, país independente desde 1975 e com uma linha de costa de cerca de 3 mil Km e de uma zona económica exclusiva (de mar/oceânica) de 200 milhas (322 Km), apenas, e só, em 2011, e nas circunstâncias forasteiras que se avançam, é que se dera conta da urgência de monitoria e protecção da sua costa marítima. Até então (2011) transparece que as fronteiras do país se resumiam na terrestre e eventualmente na aérea. Aliás, até bem pouco tempo, a ideia de que existe uma fronteira marítima por defender, e passível de uma ocupação efectiva, se esgotava como uma matéria universitária da cadeira de direito internacional. Já agora: existe algum plano para a monitoria e protecção da fronteira cibernética?
Voltando ao foco do julgamento, deu para perceber, salvo melhor entendimento, que o que está em julgamento na “B.O”, uma conhecida cadeia de máxima segurança e que é o local da realização do julgamento, incide sobre a (minha) quinta questão prévia (O que foi pago com o valor dos empréstimos?), e nesta, especificamente recai sobre a acusação em relação aos valores recebidos (e de forma criminosa) pelos arguidos/réus (segundo a acusação) que correspondem a menos de 100 milhões de dólares americanos do valor total dos empréstimos. Portanto: uma parte ínfima (5%) dos 2, 2 mil milhões de dólares americanos. No que tange (risos) a outras questões prévias, embora algumas informações tenham sido tocadas ao longo da sessão, ressaltando, salvo tenha escapado aos meus ouvidos, que não fora aflorada os mais de 500 milhões de dólares que não se acharam justificativos (cerca de 25% do total dos empréstimos), segundo as contas do relatório de auditoria da Kroll, é de acreditar que um dia merecerão o devido crivo jurídico.
Sendo assim, e esta é a questão de fundo: o facto do julgamento em curso ser apelidado, marcadamente na imprensa, como o das “Dívidas Ocultas” (STV) ou “Dívidas Não Declaradas” (TVM) ou ainda das “Dívidas Ilegais/Inconstitucionais/Ilegítimas/Odiosas” (Sociedade Civil), ainda não soa bem ou, no mínimo, não deixa tão claro pelo facto de retirar o peso (95%) e as circunstâncias do grosso ainda por esclarecer. É o mesmo que o governo justificar no parlamento apenas 5% do Orçamento de Estado como justificação global do orçamento de um determinado ano. Na senda do dito, temo que no final deste julgamento o cidadão (a sociedade) dê por justificado ou encerrado o dossiê das “Dívidas Ocultas” ou “Dívidas Não Declaradas” ou ainda das “Dívidas Ilegais/Inconstitucionais/Ilegítimas/Odiosas”.
Em benefício do direito do cidadão a informação, e bem informado, porventura um cabal esclarecimento público sobre o que está de facto em julgamento na “B.O” devia ter sido uma das questões prévias (ou reparos) na sessão de ontem, a inaugural do julgamento. Quiçá, até ao último dia do julgamento assim seja procedido. Para terminar, ainda ontem, um amigo alertara-me de que a ser feita, no país, uma avaliação geral sobre a ocorrência do tipo de crimes de que são acusados os arguidos/réus é caso para dizer, e por extensão, de que “na B.O não estão em julgamento apenas 19, mas sim 30 milhões de arguidos/réus”.
É uma língua que se fala eminentemente na costa da província de Inhambane, desde o distrito de Jangamo, até Murrombene. Os historiadores ainda não vieram nos dizer como é que este idioma aparece nesta zona, tornando-se, deste modo, um enigma. Existem pelo menos duas variantes do bitonga (gitonga), ou seja, notam-se pequenas diferenças entre o que se pode ouvir em praticamente todo o distrito de Jangamo e o que nos é oferecido a partir da cidade de Inhambane, até Murrombene, passando por Maxixe.
Há cerca de vinte anos, um historiador brasileiro, disse num simposium que há línguas africanas que se falam no Brasil, e que em África já não se falam mais. Lembro-me sempre dessa afirmação quando vou à Maxixe, onde, em princípio, devia ouvir o bitonga nos mercados e nas praças e nas ruas. É o xithswa (língua do interior da província de Inhambane) que domina a comunicação entre as pessoas. Os preços no Dumba nengue são regateados em xthswa. Isso significa que os bintongas (vatonga), estão a ser profundamente influenciados pelos vathswa.
O mais interessante é que, no lugar de o muthswa chegar à terra dos vatonga e aprender a língua destes, não faz isso! São os vatonga que aprendem a língua dos forasteiros. Em todos os cantos da cidade da Maxixe, fala-se xithswa. Maior parte dos adolescentes que pululam nas ruas vendendo bugigangas, são mathswas (vathwa, em gitonga). Na intensidade do tráfego, com autocarros a passarem sem cessar, porém, sempre tentados a uma paragem inevitável neste que é o entreposto do diabo, pelos rios de dinheiro que movimenta, há inevitavelmente uma chusma de vendedores de bolos de sura, esmagadoramente jovens, que correm atrás desses transportes públicos para vender, e esses jovens são quase todos mathswas.
Mas a cidade de Inhambane, resistente no seu conservadorismo, ainda consegue manter o bitonga, mesmo assim com muitas interferências. Aliás, aqui é a língua portuguesa que sobressai. Os dealers de recargas da telefonia móvel querem mostrar que sabem falar português. As senhoras vendedeiras do mercado também, e todos, ou quase todos os jovens e velhos que são daqui. O bitonga ouve-se pouco nos chapas, quase nada. A bandeira é a língua portuguesa. Até chega-se ao ridículo de muitos cobradores e motoristas e também alguns vendedores (homens e mulheres), fazerem-se passar por matchanganas (língua falada em Gaza e Maputo). Os mathswas desprezam os bitongas, e estes dizem que o muthswa não sabe nada (muthwa khati).
O bitonga “moderno” da cidade de Inhambane, deprecia a sua própria língua. Muitos deles que nasceram aqui, saíram e jamais voltaram, não querem que ninguém os reconheça como bitongas. Você é capaz de cumprimentar o seu amigo em bitonga, em públco, e ele responder-te em português. Considera o seu idioma como sendo de menor valor. Porém, é na Maxixe onde está a síntese de que que o bitonga está em decadência, e isso é normal numa situação em que o próprio mundo em si, já não é o mesmo.
Quando no dia 5 Abril de 2016 o Wall Street Journal trouxe a público o escândalo que hoje denominamos de “dívidas ocultas”, além da incredulidade geral que teve por parte da sociedade moçambicana, não se acreditava que algum dia este caso iria ser julgado.
À medida que se foram conhecendo os contornos do caso e as ligações políticas dos diversos implicados, a descrença foi aumentando de forma generalizada.
Não era para menos. Afinal de contas, tratava-se do maior escandalo de corrupção da história de Moçambique, onde um grupo de moçambicanos que exercia o poder ou tinha ligações próximas ao círculo do poder vigente na altura da contratação destas dívidas, aliado a empresários baseados no Médio Oriente e com acesso a banqueiros europeus, conspiraram para endividar fraudulentamente uma nação, deixando o país com uma dívida oculta, corrupta e odiosa de 2 biliões de dólares americanos (nos cálculos do Centro de Integridade Pública (CIP) e do Chr. Michelsen Institute (CMI), já custou à economia moçambicana mais de 11 biliões de dólares americanos).
Com todo este cenário negativo, o CIP foi um dos poucos actores da sociedade civil que se recusou a desistir do caso, fazendo pesquisa e advocacia para que este, tal como outros casos de corrupção que o país já experimentou, não morresse.
Ao longo dos últimos 5 anos, o CIP pesquisou, documentou e construiu um acervo único sobre o caso nas diferentes jurisdições onde ele está a decorrer judicialmente. Organizou campanhas de advocacia, tal como a famosa campanha EU NÃO PAGO que se tornou viral nas redes sociais, pressionando o poder público a tomar acções enérgicas que visassem a solução do caso. A campanha resultou em ameaças à integridade física dos seus colaboradores e no cerco policial aos seus escritórios. Ainda assim, o CIP não desistiu.
Nestes 5 anos, o CIP tornou-se numa das principais fontes de informação sobre o que estava a acontecer com os outros actores deste enredo que não se encontravam em Moçambique. Em tempo real, e de forma simples, inovativa e criativa, o CIP informou sobre o desenrolar das audiências do antigo ministro das Finanças Manuel Chang, no tribunal de Kempton Park em Johanesburg. Com dois telemóveis, um laptop (Borges Nhamire, em Johannesburg, Edson Cortez, na edição nos escritórios do CIP com o apoio de Liliana Mangove no layout e outreach) e uma rede social, no caso concreto o FACEBOOK, mostraram aos moçambicanos que a informação não se recebe somente nos circuitos tradicionais e no horário nobre, mas sim acede-se a qualquer hora e momento e no seu telemóvel. Este caso exigia isso.
O CIP foi a Nova Iorque e cobriu o julgamento de Jean Boustani usando a mesma simplicidade de informar e trazer em tempo real as incidências do que acontecia. No julgamento de Boustani, inovamos adquirindo os documentos produzidos em sede do tribunal, de modo a apresentarmos sólidas evidências do que ali era dito. Mais uma vez, essa ousadia teve custos para organizacão e para todos aqueles que estavam directamente envolvidos nesta empreitada.
As ameaças, calúnias e campanhas de difamação durante esse processo não foram motivo suficientes para que o CIP se desviasse do seu principal objectivo: pressionar os poderes públicos, e sobretudo o judiciário, para que este caso não fosse esquecido. E, de modo a colaborar com as entidades públicas, mais concretamente com a Procuradoria Geral da República (PGR), o CIP adquiriu todos os documentos apresentados em sede de julgamento de Jean Boustani, partilhando-os com a PGR, como forma de auxiliar nas investigações.
As dívidas ocultas tiveram efeitos devastadores sobre a economia nacional. Isso ficou provado num documento que o CIP publicou no dia 27 de Maio do corrente ano, o qual apresenta os custos das “dívidas ocultas”, escândalo que de 2016 a 2019 custou à economia moçambicana mais de 11 biliões de dólares americanos. Parte da defesa dos advogados da República de Moçambique nos processos que correm na Suiça e no Reino Unido, citou este relatório como uma prova clara e inequívoca de que Moçambique e os moçambicanos foram lesados e devem ser compensados.
Hoje, 23 de Agosto de 2021, o CIP lembra o seu papel e contribuição para que este caso chegasse a julgamento, tendo a plena noção que não foi o único actor a influenciar para que isso acontecesse, mas evidenciando que teve um papel chave e determinante para que os implicados neste caso respondessem em julgamento.