As Organizações da Sociedade Civil (OSC) em Moçambique são relativamente novas e as suas primeiras aparições e intervenções datam dos primórdios dos anos 1990. Paulatinamente o seu escopo foi se alargando e sua influência se estendendo para áreas relevantes e demandadas a nível da sociedade. E quanto mais elas foram crescendo e ampliando seu raio de influência, mais problemática e discutida foi ficando a sua aceitação. Elas vem reclamando por mais espaço de actuação e, paradoxalmente tal espaço lhes é progressivamente negado.
O espaço cívico é entendido como um espaço onde todos indivíduos/ cidadãos da polis realizam livremente os seus desígnios, um espaço do rendezvous geracional de ideias e pensamentos. É um espaço que simboliza os valores mais altos da democracia, dos direitos humanos e sugere igualmente a materialização dos contratos social e político que celebramos uns com os outros.
Alguma literatura explica a natureza naturalmente social do homem – traço distintivo dos outros animais (Onde está o homem, há sociedade; Onde está a sociedade, existe o Direito). Recorrendo a clássica definição Aristotélica, o homem é um animal eminentemente político e busca sua realização dentro da sociedade. Na mesma sociedade ele associa-se umas vezes e desassocia-se outras vezes, construindo formas de associação que melhor respondem aos seus anseios sem no entanto perder a sua sociabilidade e politicidade. Aqui podemos por analogia buscar a hierarquização social e política, e consequente legitimidade de certos grupos dentro da sociedade, entendendo como algo natural derivado das habilidades inatas ou adquiridas e talentos, e não como algo divino.
Com a geração contratualista, a reflexão maior gira em torno da reflexão da saída do homem do estado de natureza para a sociedade civil. A natureza humana começa a ser discutida filosófica, sociológica e antropologicamente para tentar explicar o comportamento do homem dentro e fora da sociedade – De Jean Jacques Rousseau, passando por John Locke e o Barão de Montesquieu encontramos abordagens distintas e igualmente ricas sobre o contrato social implícito onde cidadãos livres movidos pelo medo da morte violenta, insegurança e pela desconfiança mútua aderem ao estado social e civil por via de um contrato implícito e por vezes explícito. Mais tarde, vendo suas liberdades pouco seguras e receando a traição e não cumprimento de acordos aderem ao pacto social por meio da outorga das suas liberdades, dos seus direitos e cumprindo com deveres. A figura e imagem do soberano emerge como resultado deste contrato social e político. Francisco Soares (1548-1617) afirma que “não foi conferido ao homem o poderio político sobre seus pares, de modo que esse domínio não haveria de ter fundamento diverso do consenso, através do qual a multidão se reúne em um só “corpus politicum” (Del Vecchio, 1979:84)
Numa fase mais avançada, com o esplendor das leis em Montesquieu no seu “O Espírito das Leis”, a sociedade dá um passo qualitativo e regulamenta a sua acção criando bases legais para a regulamentação dos comportamentos e acções, criando um corpus politicum com competências separadas – nasce assim o Estado de Direito com bases da separação de efectiva de poderes (os três poderes do Estado – Executivo, Legislativo e Judicial).
Um pouco por todo o mundo o espaço cívico vem sofrendo sucessivas e progressivas ameaças e atentados que paulatinamente contribuem para o seu fechamento e deterioração. Este fenómeno não é novo e tampouco isolado, e é mais visível em países com regimes com tendências autoritárias e ditatoriais. As Organizações da Sociedade Civil, admiradas por uns e odiadas por outros, são também consideradas como sendo o braço de apoio à governação, vem travando uma luta para a edificação de uma sociedade mais justa, mais participativa, mais transparente e mais inclusiva. E dada a sua alta exposição em eventos e acções por vezes confundidas como sendo apanágio único do executivo e do poder do dia, sua legitimidade e mandato acabam por ser questionadas, e suas acções as vezes combatidas.
É meu entender que, a governação é uma vasta área e que espaço cívico é apanágio de todos e de cada um de nós, por isso, defendo afincada e desapaixonadamente neste artigo que, para que ele seja aberto e que represente o reencontro dos ideais supremos da democracia e do Estado de Direito é necessária uma maior aceitação de actores e players que muito podem contribuir na vastidão da acção de governação.
Estudos recentes sugeriram a possibilidade de ocorrência de dois eventos nefastos a médio prazo: o primeiro era a então incipiente flagelação das OSC e o segundo eram os ataques públicos (desde físicos aos verbais) aos representantes e membros das OSC, e tal se efectivou e vem se consubstanciando.
O afunilamento e fechamento do espaço cívico em Moçambique começou a ganhar corpo e foi se cimentando paulatinamente nas duas últimas décadas (sendo que cada década caracterizou-se por distintas acções de governação). Ataques, raptos, ameaças e assassinatos geraram uma grande onda de consternação entre as diferentes franjas da sociedade a nível nacional e internacional. O medo generalizou e muitos analistas e activistas enfrentaram a desacreditação do seu trabalho através da criação e difusão de narrativas depreciativas. Este exercício paulatino e sistemático de desacreditação primeiro silenciosa e depois barulhenta contra as OSC e seus membros lançou um debate sobre a relevância e irrelevância das organizações da sociedade civil, sobre a sua legitimidade, sobre o seu mandato, e sobre o seu raio de actuação, ou seja, a quem elas realmente servem e quem as empoderou.
As narrativas contra a sociedade civil são uma arma muito perigosa e eficaz, principalmente em sociedades como a nossa com níveis de educação baixos e uma crítica pouco ou nada elaborada. Não estamos diante de um fenómeno isolado em Moçambique, mas diante de uma estratégia usada em várias partes do mundo.
A dificuldade em lidar com ideias e posições diferentes faz com que uns se sintam mais donos da verdade e donos da razão que os outros. A vontade de fazer vingar determinadas ideias em detrimento das outras, cria fricções e atritos. E nisto emerge uma negatividade baseada no ódio e na violência gratuita
Mais de 45 anos após a conquista da independência, os fantasmas do passado nos perseguem e, devido a intolerância de uns e não pluralismo de outros, corremos o risco repetir a história mas com contornos e actores diferentes.
Amartya Sen no seu livro “Desenvolvimento como Liberdade” afirma inequivocamente que a condição primária para o desenvolvimento é a existência de liberdades. E mais adiante desenvolve a abordagem das capacidades, onde a chamada “liberdade negativa” (ausência de impedimentos) é contraposta à “liberdade positiva” (condições reais de exercício de um direito). E aqui nesta positivação das condições reais, entendo que devemos como sociedade promover mais as liberdades políticas, económicas, sociais, as garantias da transparência e a proteção da segurança. Assim daremos um passo qualitativo rumo a uma maior edificação de um Estado, instituições credíveis e livres de amarras ideológicas.
POR: Hélio Guiliche (Filósofo)