Director: Marcelo Mosse

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sábado, 31 agosto 2024 17:06

CARTA  AOS MOÇAMBICANOS[1]

Escrito por

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Pelos 49 anos de independência e a propósito das eleições de Outubro, um convite à reflexão e ao debate

 

(“A tragédia maior não são os males causados pelos maus, mas sim o silêncio dos bons” -Martin Luther King)

 

Se nós fossemos atrevidos...

 

Havíamos de querer ser mais do que meros expectadores e comentadores do que se passa no nosso país. Havíamos de saber exercer uma cidadania ativa, pacífica e responsável, para passarmos a ser os agentes da mudança que queremos ver acontecer na nossa terra.

 

Havíamos de nos  inspirar no exemplo dos poucos ativistas, intelectuais e outros cidadãos, que corajosamente têm estado a reclamar espaços de intervenção na esfera pública, exercendo uma cidadania responsável; havíamos de ampliar plataformas de reflexão e debate; havíamos de discutir à luz do dia, pacífica e candidamente as nossas muitas perplexidades e inquietações; havíamos de comparar as nossas distintas visões para começar a construir a nossa visão comum do presente e do futuro do nosso pais; havíamos de juntos vislumbrar soluções de consenso, para os múltiplos desafios que confrontam Moçambique.

 

Havíamos de juntos tratar de obter do Poder a garantia que essas plataformas e esses debates serão defendidos e protegidos pelas nossas forças da Lei e da Ordem contra as criminosas agressões punitivas daquelas forças que são intolerantes de análises independentes e descomprometidas, e de vozes que expressam opiniões contrárias ou apenas distintas da opinião oficial.

 

Havíamos de ser capazes de conceber e praticar  uma governação eficaz, transparente e atenta às necessidades e aspirações dos cidadãos. Havíamos de tratar de envolver o conjunto da sociedade moçambicana no esforço de  construir hoje e nos anos que vêm, uma nação unida, harmoniosa e próspera.  

 

Havíamos de fazer dessas reflexões, discussões e ações momentos altos de diálogo produtivo e inclusivo envolvendo, na medida do possível, as várias identidades e pertenças que definem Moçambique: mulheres e homens; jovens e velhos; as distintas etnias e raças; as diferentes classes sociais, sensibilidades politicas e persuasões religiosas. Nesse exercício, havíamos de prestar particular atenção às vozes das crianças e dos jovens, a quem o futuro pertence.

 

Havíamos de juntos reexaminar o projeto de nação e sociedade esboçados durante a luta de libertação; havíamos de formular ideias, planos e programas para reavivar e adaptar esse projeto à nossa realidade contemporânea.

 

Havíamos de juntos explorar caminhos para consolidar e aprofundar a unidade nacional, na base do reconhecimento, respeito mútuo, harmonização e união das nossas distintas identidades acima descritas. Por outras palavras, havíamos de reinventar e reconstruir a nossa “moçambicanidade” com base na nossa diversidade e num projeto comum de nação. 

 

Havíamos de reconhecer que de entre os muitos males que nos afligem, a democracia “de faz de conta” e o seu irmão gémeo, o capitalismo brutal que praticamos, não funcionam e não nos estão a servir. Pelo contrário, devido à sua natureza corrosiva, a nossa democracia e o nosso capitalismo de hoje levam à corrupção dos valores fundadores do nosso país, à traição dos  princípios em que se fundamenta a nossa nação, à perda de valores éticos e ao apodrecimento das instituições do Estado.

 

Havíamos de reconhecer que esta democracia e este capitalismo dão cobertura à acumulação de fortunas de proveniência muitas vezes duvidosa nas mãos de oligarcas e vendedores de influência politicas.

 

Havíamos de inequivocamente rejeitar essa democracia e esse capitalismo  doentios porque eles ameaçam apagar a nossa tradicional convicção que “eu sou porque nós somos”; pelo contrário, eles levam-nos a insistir que eu, eu, eu, antes de tudo e em última analise, eu. Em vez de nos ajudarem a afirmar o Ubuntu e a Ujamaa das nossas tradições filosóficas, eles promovem a ideia que eu sou o centro, o principio e o fim de tudo.

 

Havíamos de dizer que esta “nossa” democracia e este “nosso” capitalismo em definitivo mataram o mítico homem novo das nossas ambições e inviabilizaram a nova sociedade dos nossos sonhos.

 

Havíamos de reconhecer que a democracia e o capitalismo que praticamos apenas servem  a uma minúscula elite que, apesar de todo um discurso em contrário, despreza uma governação eficaz, justa e equitativa, nem se preocupa com a construção e consolidação da paz, e só se ocupa em acumular, a qualquer custo, poder e dinheiro.

 

Havíamos de denunciar essa democracia e esse capitalismo doentios como sendo cada vez mais das “elites”, para as “elites” e pelas “elites”, em que o povo só serve para regularmente depositar o voto em dirigentes mais ou menos incompetentes, em partidos políticos mais ou menos corruptos que só existem para perpetuar o poder das “elites”.

 

A democracia e o capitalismo que praticamos promovem uma cultura de sujeição a um egoísmo sem limites, de veneração desmedida ao dinheiro, bem como a  uma obsessão doentia com a ostentação de bens materiais.

 

Cada vez mais, esta democracia e este capitalismo doentios lembram um sapato apertado e torto, que estamos a tentar calçar de trás para a frente.

 

Havíamos de resistir a essa democracia e a esse capitalismo como promotores da acelerada divisão entre os que têm e os que não tem; como fenómenos que exacerbam as linhas de fratura entre as entre velhos e novos; entre a maioria e as minorias raciais; e no interior da maioria, entre os diversos grupos étnicos; entre confissões religiosas e as classes sociais que compõem a rica tapeçaria da nossa sociedade; entre o campo e a cidade; e nas cidades entre os bairros “finos” e as cidades de caniço.

 

Se nós fossemos atrevidos e corajosos...

 

Havíamos de denunciar a feroz diferenciação entre nós como portadora dos ingredientes que envenenam a nossa unidade e matam a fraternidade, a solidariedade, a liberdade e a justiça para todos.

 

Havíamos de compreender que a nossa maior riqueza é a unidade.  

 

Havíamos de voltar a afirmar a convicção que nos inspirou durante a luta anticolonial: que os do Norte e do Sul, do Oriente e do Ocidente, que os pretos, mulatos, brancos e indianos, novos e velhos, mulheres e homens, somos todos igualmente filhos e donos desta terra moçambicana!

 

Havíamos de decidir que nos cabe a todos abraçar e celebrar a nossa diversidade e preservar a nossa unidade para podermos construir e partilhar um destino comum; que  somos obrigados pelos mesmos deveres e que temos todos igual direito à liberdade, à justiça, e à prosperidade.

 

Por essas razões, havíamos de retomar a construção da unidade nacional, do Rovuma ao Maputo e do Indico ao Zumbo como a mais importante e mais urgente prioridade para todos nós. E tal como fazemos a uma planta que queremos ver crescer forte e saudável, havíamos de constantemente alimentar e acarinhar a nossa unidade nacional.  

 

Se nós fossemos atrevidos, corajosos e lúcidos...

 

Havíamos de insistir em pensar criticamente com as nossas próprias cabeças, em vez de passivamente aceitar conceitos e cegamente imitar modelos que nos são impostos ou sugeridos pelas forças do Norte Global. Assim, havíamos de controlar melhor o nosso presente e vislumbrar e desenhar melhor o nosso futuro.

 

Em política, na cultura e na economia havíamos de identificar os melhores dos chamados “valores universais”,  adapta-los às nossas circunstâncias, misturando-os criativamente com os valores e praticas construtivas das nossas tradições; e havíamos de aprender a desenvolver mecanismos, comportamentos e praticas enraizadas na nossa historia, na nossa filosofia e na nossa cultura.

 

Enfim, se nós fossemos teimosamente atrevidos, corajosos e lúcidos...

 

Havíamos de transformar radicalmente o relacionamento entre o Estado e os cidadãos, estabelecendo uma governação verdadeiramente ‘do povo, para o povo e pelo povo’; havíamos de erguer instituições fortes e representativas da vontade de todos, desde a localidade, ao distrito, ao município, à província e à nação.

 

Havíamos de juntos construir a nossa Pátria e decidir o destino para onde queremos ir, traçar os caminhos que queremos seguir, calçando o nosso próprio sapato, à nossa medida.

 

Havíamos de juntos descobrir e desbravar os rumos que nos vão conduzir a uma nação mais unida, mais justa, mais solidária, mais próspera e mais feliz.

 

Aqui e agora, sejamos então teimosamente atrevidos, corajosos e lúcidos!

 

João Bernardo Honwana

 

Maputo, julho/agosto de 2024

 

[1] A intenção desta carta, dirigida por igual aos líderes das forças políticas no país e aos cidadãos, é a de apelar à reflexão e ao debate construtivo, pacífico e inclusivo sobre temas que me parecem relevantes na situação social, politica, cultural e económica prevalecente no nosso país.

Trata-se, acima de tudo, de encorajar uma cidadania descomprometida, independente, ativa, pacífica e responsável. Trata-se do propósito ambicioso de nos transformarmos nos agentes da mudança que queremos ver acontecer na nossa terra.

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