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Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI
Alexandre Chaúque

Alexandre Chaúque

quinta-feira, 02 julho 2020 07:43

Carta ao antigo combatente

Eu nunca quis escrever-te esta carta. Fui relutante todo este tempo, com receio de avivar as feridas abertas em todo o meu corpo. Acordava nas manhãs decidido a sentar-me diante do computador e dizer-te tudo o que sinto na minha dor, e não conseguia alinhar as palavras que saíam das teclas silenciosas. Vacilava perante o teu rosto que ressurgia, reflectindo-se no ecrã como lâminas a percorrerem-me toda a anatomia, e eu tremia de medo e de sofrimento. Parecia que tu próprio tinhas medo de qualquer coisa, e isso assustava-me. Os teus olhos sangravam no rosto aterrorizado, aterrorizando a mim também.

 

Mas já não podia suportar o padecimento de incubar as palavras que iam explondindo uma por uma para dentro de mim, por isso hoje decidi escrever-te, e não me importo com as consequências, nem que venham a ter o efeito de boomerang. O que dói é perceber que toda a aurora que andaste a alinhavar nas noites ecuras sem fim, ficou contigo, e com os filhos que saíram do ventre amaldiçoado da tua mulher. Isso é que me castiga. Mentiste para nós, e para ti próprio, dizendo que lutavas pela libertação do povo inteiro, porém o que vejo é a bazófia dos teus dias abastados.

 

Passei toda a noite em atalaia, arrotando o sangue das sílabas que desejavam ardentemente a liberdade. Fechava os olhos e via crianças com máscaras de papelão apanhado na gandaia, como se fossem foliões,  pedindo-te com os olhares despedaçados, as migalhas de pão que sobra todos os dias dos teus banquetes. Elas têm os pés descalços, enrijecidos pelas pedras do caminho que lhes leva a opacidade. Estão nuas, ou na melhor das hipóteses, usam saiotas de farrapos, e as barrigas avantajadas murmuram de fome.

 

É este o quadro de dor que nos ofereces no teu cinismo, desmentindo Samora no auge do poder,  as crianças são as flores que nunca murcham! Claro que isso não é verdade, estas crianças penduradas no caudaloso estendal da miséria, já nasceram murchas, sem o leite que não vai sair dos seios esfomeados das mães sem perspectiva. Elas foram vomitadas para a desgraça, e tu, meu caro antigo  combatente, habitas em mansões erguidas por cima de todas essas chagas. Insensível ao clamor slencioso de quem não tem nada.

 

Pois é, eu já queria dizer-te estas palavras que me engasgavam, mesmo assim não me sinto livre. Sei que és indiferente a todas as poeiras que levanto na minha revolta. O pior é que ainda tens a coragem de te dirigires às crianças famintas, com essa garrafa de água mineral que trazes nas mãos, e bebes à frente delas sem remorsos, enquanto o espampapanante carro aguarda-te para te devolver ao palacete, onde vais megulhar nas poltronas adquiridas a custa da miséria dos petizes.

 

Era só isto que eu queria dizer-te, meu caro antigo combatente. O resto está nos olhos dos meninos, e no vácuo das suas vidas. Um forte abraço!

sexta-feira, 26 junho 2020 07:15

Maputo não é Hamburgo

Tenho um amigo que me decepcionou redondamente, um homem que o tomava até certo ponto como meu paradigma, pelas intervenções lúcidas que sempre fez e a  forma serena com que abordava os assuntos do quotidiano e do futuro, embora na verdade o futuro não lhe peretencesse. Ele sempre abriu margens nas suas abordagens, para que o tempo se encarregasse de esclarecer as dúvidas, havendo. Nunca assumiu a verdade como absoluta, mas socorria-se dos factos para intervir, no sentido de evitar que amanhã houvesse desmentidos nos jornais.

 

Hoje porém ele entristeceu-me ao dizer que todo aquele trabalho há muito esperado e dirigido pela sensatez e pela honestidade, que o ilustre Eneas Comiche está a realizar em Maputo, não vai dar  em nada. Olhei para o meu amigo, uma figura ponderada, e senti que alguma coisa podia estar a mudar nele, ou eu é que não estava a compreendè-lo. Perguntei se era aquilo mesmo que pretendia dizer-me ou era uma mensagem velada, e ele respondeu-me que Maputo não é Hamburgo ( cidade alemã classificada em primeiro lugar entre as dez mais limpas do Mundo). Ou seja, o que o meu amigo queria fazer-me entender é que os africanos são incapazes, por isso Eneas Comiche não chegaria longe.

 

Fiquei revoltado perante tamanho vilipêndio moral aos meus sentimentos, e aos sentimentos dos maputenses de boa fé,  dos moçambicanos num todo. Era um insulto à grandeza de um homem que põe Maputo a sonhar como nunca. Um desprezo injusto à uma pessoa que nos recorda que em Moçambique existe boa gente interessada em puxar a carroça para frente, e Eneas Comiche, que desafia de dia e de noite um ecossistema por demais degradado, faz parte dessa boa gente. O ilustre edil de Maputo está metido num desfiladeiro íngreme, como se ele próprio fosse as bombas usadas no Afeganistão, que quanto mais duras forem as rochas que fazem as grutas onde se escondem os jahidistas, mais raiva elas ganham e furam aquelas fortalezas naturais.

 

Maputo é uma cidade com chagas abertas, feridas gangrenadas, e já precisava de um cirurgião competente e corajoso, capaz de arrancar com as mãos o coração de pedra que já não batia, e colocar outro, de carne, para os batimentos voltarem a dar vida a “Cidade das Acácias”, e esse cirurgião é Comiche, ao qual o meu amigo lança farpas, no lugar de harpas, “isto não é Hamburgo”!

 

Infelizmente os tempos que passaram, educaram muita gente a pensar que toda aquela desordem e vergonha e repugnância fossem o nosso destino. Uma situação do tipo “não temos onde ir”, mas Eneas Comiche, um cidadão moderno, competente, responsável, revoluionário, veio a terreiro dizer que a nossa vida merece dignidade, e não pode contar com gente resignada. Pessoas que não acreditam em nada, nem neles próprios.

 

Comiche faz-me lembrar Edward  Sechwarzenegger, governador de Califórnia entre 2003 e 2011. O fisioculturista americano desafiou o território árido e o mais seco dos Estdos Unidos, e não queria terminar o mandato sem dar água canalizada às populações locais. E Eneas Comiche quer deixar uma cidade “txunada” quando sair, ignorando completamente os que dizem, como o meu amigo, que “isto não é Hamburgo”. Parabéns, ilustre!

quinta-feira, 18 junho 2020 09:35

General Nhongo em Maputo*

AlexandreChauqueNova

A chuva intermitente que caía era afinal o prenúncio. Também houve graniso do qual ninguém se apercebeu, a não ser o próprio Mariano Nhongo, hospedado na suíte presidencial  do Hotel Polana,  a partir de onde ele observa a exuberância do Índico, sem que o luxo, mesmo assim, lhe retire o foco da sua luta. Chegou na noite de terça-feira, transportado num hélio das Forças Armadas Zimbabweanas, que aterrou na base aérea instalada do outro lado do Aeroporto de Mavalane. Foi tudo feito num secretismo absoluto que até a segurança destacada para o receber, não sabia de quem se tratava.

 

Chovia uma chuva leve, e o silêncio na pista e em todo o perímetro das instalações, era por demais sepulcural que entre os anfitriões que incluiam oficiais de alta patente moçambicana, perguntavam-se entre eles afinal quem é esse fulano. Nhongo saíu do pássaro metálico vestindo uma gabardina preta e um gorro que lhe cobria completamente a cabeça e uma boa parte do rosto, tornando-o irreconhecível. Um dos capangas que o aguardavam quis protegê-lo com o guarda-chuvas, mas o general recusou. Caminhou resoluto para o Range Rover cinzento luzidio que o esperava e sentou-se no banco da trás. O motorista tremeu quando viu um homem encapuzado a entrar apressadamente para a vitura. Parecia um algoz.

 

Eu já estava em Maputo há uma semana, discretamente, sem o conhecimento do editor, alojado no quarto contíguo ao que acolheria um homem cujas acções, façanhas para outros,  podem ter já superado a sua condição de pessoa vulgar. Nunca o vi pessoalmente, mas ele é que me escolhe para a materialização da entrevista, e não poderia questionar sobre esta preferência. Lembrei-me de um dia que Deus disse a Moisés, vai ao Egipto libertar os filhos de Isarael! E Moisés perguntou, porquê que tenho que ser eu? E Deus trovejou como o Leão dos Céus, porquê que não tens que ser tu?

 

Estou deitado com o televisor desligado num quarto sumptuoso que nunca antes imaginara. Mas também já superei há muito os materiais da vida. Desactivei os dados do meu celular para que o silêncio tome livremente conta do meu espaço. Aliás, do espaço onde me colocaram. Quero ouvir os movimentos da chegada do General de Gorongosa, já que ele me avisara, através do telefone ligado directamente ao satélite, que a entrevista aconteceria ainda naquela noite.

 

Alguém bateu à porta dos meus aposentos, sem que antes tivesse havido qualquer sinal indicando a chegada de uma figura temida. Era estranho porque devia receber antecipadamente uma informação da recepção. Mas, nada! Perguntei quem era, e do outro lado respondeu-me o mutismo. Saltei da cama apressadamente, já estava vestido, calçado  e tudo, como se estivesse no teatro das operações, sob comando de Nhongo. Peguei no gravador e no bloco de notas e disse, Deus, seja feita a Tua vontade.

 

Abri a porta e dei-me com dois homens dessimuladamente armados, do tipo furtivos. Balancei de medo na espinha, mas logo recompus-me. Olharam para mim de cima a baixo sem falarem, e logo a seguir indicaram-me a entrada ao lado onde supus estar o general, o próprio Nhongo. Entrei de mansinho e vi um personagem sentado tranquilamente na plotrona, de pernas cruzadas e as duas mãos por sobre o joelho direito. À mesinha de centro uma garrafa indisfarçada, dois copos que foram abastecidos na minha presença, ao mesmo tempo que o meu anfitrião indicava-me o lugar que me colocaria frente a frente com ele.

 

A suite, sob luz ténue, ficou impregnada com o aroma agradável de algo que reconheci ser aguardente de massala. Mariano Nhongo já não se cobria com o sinistro gorro, porém continuava com a gabardina. Bebeu num trago o conteúdo do copo sem cerimónias, e o que me disse logo a seguir foi de tal maneira inesperado que o seu sentido  ganhou a dimensão da espada. Falava como se tudo estivesse sintetizado naquelas palavras. Ele disse assim, enquanto a preocupação forem os ganhos individuais ou de grupos, então jamais vai amanhecer em Moçambique.

 

E eu não sei se isso não é hipocrisia!

 

* Texo imaginário

quarta-feira, 10 junho 2020 10:10

A morte de Nhathswa

Nunca antes veio a minha casa pedir sal, ainda por cima a uma hora destas. Na tradição respeitada desde os tempos dos meus ascentrais, e seguida por nós também, não se pede sal ao vizinho quando a noite se materializa. Mas Nhathswa está aqui a pedir esse tempero imprescindível, desculpa vizinho, só agora é que me apercebi que o sal acabou, já com a panela ao lume, e não tenho outra alternativa porque as lojas estão fechadas.

 

Ora, se as lojas estão encerradas, e esta mulher já tem a panela ao lume, não tenho outra escolha que não seja desobedecer aos ditâmes dos antepassados, mesmo sabendo dos riscos que isso representa. Não sei o que poderá acontecer depois, mas também não posso recusar sal a alguém tão respeitado como Nhathswa. Ela sabe que a atitude que toma, de vir a minha casa numa hora proibida para as suas intenções, é desaconselhada. Eu também sei. Nenhum de nós sabe, porém, sobre quem  vai cair o raio depois disto. Mas estamos cientes de que isso pode acontecer.

 

Eu disse para que ela fosse pessoalmente a cozinha tirar a quantidade desejada. No fundo invadia-me algum remorso, ao mesmo tempo sentia-me incapaz de dizer “não”. Também tinha a sensação de que a vinda de Nhathswa a minha casa transmitia outros sinais que eu não podia perceber. Aliás, já houve tempos em que, sempre que nos encontrássemos por aí, desfiavamos conversa entusiasmada. Porém, ultimamente ela distancia-se. A nossa saudação é fria, sobretudo do lado dela, e eu nunca me preocupei com isso porque sempre acreditei que a vida é feita de ciclos. E ela hoje vem pedir-me sal.

 

Enquanto Nhathswa ia a cozinha, eu mantive-me na varanda, de pé, pensando, sem olhar para ela, que isto é sinal de mau agoiro. Já ouvi histórias trágicas  sobre o sal que não se pode pedir a noite, mesmo assim eu ainda prevarico conscientemente. Se calhar pela magnitude da personalidade desta mulher perante a qual ninguém resistiria. Qualquer ordem que ela emanasse, seria cegamente cumprida. Se calhar seja por isso que estou a cometer um erro grave que pode resultar em danos irreversíveis. Estou hipnotizado!

 

Nhathswa sai com o sal na mão direita feita concha. Passa por mim e não diz nada, como se estivesse a sair da cubata de um curandeiro onde não se despede, e eu não sou curandeiro. Nem sequer fechou o portão do quintal, que ela própria abriu. E tudo isso pode estar a transmitir-me uma mensagem que eu não consigo decifrar. Seja o que for, acho que o leite está derramado.

 

Durante a noite, dormindo,  parecia que eu estava no paraíso. Via Nhathswa correndo na orla marítima, vestida de branco numa praia desconhecida, cheia da luz do luar. Ela acenava-me, e a mão dela brilhava. Parecia um anjo que ia para casa, pisando levemente a areia branca, e eu sentado também na areia ouvindo a música que as ondas tocavam para acompanhar Nhatswa, que agora caminha por sobre as ondas até desaparecer, como Jesus por entre as nuvens, depois de se despedir dos apóstolos em Galileia.

 

Quando despertei já era madrugada. Ouvi choros de tristeza e de lamentação na casa de Nhathswa, e pensei: já estava escrito! 

quinta-feira, 04 junho 2020 06:57

Mwali

Está no fim da estrada e mantém a dignidade dos tempos. Não verga. Quanto mais perto da meta, mais pujança na sua personalidade. É como se estivesse num grande estádio a abarrotar, sentido as palmas que a catapultam. Sabe que já não terá mais forças do que estas que estão no limite, por isso usa-as até ao limite. Não recorre aos anabolizantes, os anabolizantes é a música do passado, que repete sem se cansar no seu inacreditável gira-discos, daí a frescura transbordante da Mwali, recolhida numa casa transformada em Meca, onde os amigos vão regularmente para ouvir as histórias de uma era pura, que parece voltar em cada palavra.

 

Vive na orla do mar, de onde continua a usufruir, como sempre desde a nascença, da pompa de uma paisagem fascinante que se estende a seus pés. Dali ela acompanha o movimento dos pescadores, que muitas vezes voltam com os cestos vazios, depois de longas horas puxando as redes de emalhar ou de arrasto, ou ainda das mulheres, que ao cair da noite descem com as pequenas redes de pesca de camarão, e regressam também derrotadas, sem nada. Mas há muitos momentos também, que Mwali testemunha o festejar da faina farta.

 

Ela é a nossa secerdotisa, colocada no lugar de sumo pontífice, posto conquistado pelas “homilias” inacabáveis que inocula para que, segundo ela própria,  pelo menos nos recordemos da existência do Criador do Céu e da Terra. E dos Homens. Mas Mwali por vezes exagera, se calhar levada pelas emoções de um ambiente borbulhante, que nos espicaça a querer voltar sem cessar, num ciclo vicioso, para aquele lugar que nos entusiasma. Citou, numa das recentes ocasiões, sem saber que provocaria um efervescente debate, uma vez que está habituada a ser ouvida sem grandes questionamentos quando evoca a bíblia, uma passagem que nos pareceu ser um contra-senso.

 

Normalmente nunca temos o livro Sagrado por sobre a mesa, para aferir o que vamos ouvindo da Mwali. O que ela diz é por demais caudaloso, tão profuso que nos limitamos a abanar a cabeça em sinal de consentimento, como vassalos, virando goela à baixo, de vez em quando, uma cachaçazita sempre disponível, para aclarar a mente. Mas nesse dia as coisas mudaram de rumo. Segundo Mwali, no Salmos, cap. 21, David diz o seguinte: “o que me magoa, é que o Altíssimo já não é o mesmo”. Perante esta afirmação, um dos companheiros virou-se para Mwali e disse, isso não é verdade! Não sou leitor da bíblia mas Deus sempre foi o mesmo desde que existe, quem não é o mesmo somos nós. Deus não é metamorfo.

 

No lugar de o ambiente gelar, uma vez que a “raínha” era posta em causa pela primeira vez, a “afronta” tornou-se  motivo para voltarmos a encher os copos e desligar o gira-discos que tocava, em disco de vinil, a música de Percy Sledge, When a man loves a woman. Pedimos a bíblia, e Mwali disse que não tinha bíblia, porém - como nos afiançava -  o que ela dizia era a pura verdade, e que se quisessemos nos certificar disso, então podemos ir consultar nas nossas casas. E é o que vamos fazer, enquanto aguardamos o próximo enconto que já está a criar emormes expectativas.

quinta-feira, 28 maio 2020 05:57

Patrão, compra garoupa!

Ir ao mercado da Mafurreira  nas manhãs fazer compras, já se tornou um vício, e isso dá-me um enorme prazer. É um exercício quase de instinto, que me restabelece as emoções, e ajuda-me a não sentir o escorrer do tempo, que por vezes demora passar sobretudo quando estou sozinho, sem que esteja a escrever, ou a dedilhar a guitarra emprestada. É também uma dádiva, no sentido de que regresso sempre à casa com a alma cheia, pelas conversas esporádicas que vou ter aqui e ali, com as vendedeiras que, ao verem-me, vão dizer logo, sorrindo, pari yangu! (amigo!). E eu exulto pela saudação tão sincera. Simples. Profunda.

 

Ainda ontem desci àquele lugar que também é meu. Ou seja, eu sou uma das pétalas desta flor cheia de feridas que podem estar a gangrenar. Flor é todo o mercado, que mesmo sendo pequeno na sua geografia, é o maior da cidade de Inhambane. Pétalas são estas mulheres cujo sonho metamorfoseou-se para dar lugar ao conformismo e a incerteza. Elas já não esperam, são aquelas por quem as crianças esperam em casa com a barriga vazia. Uma barriga que pode não ser saciada porque ninguém comprou nada. O marisco apodreceu.

 

Mas todo este cenário parece sombrio, pois se não fosse, então teriamos ali uma tagarelice de não acabar, e isso não está a acontecer. Há um silêncio dorido, cheio de desesperança, porque ninguém compra nada. Elas já perceberam que não há dinheiro. Ninguém o tem. Porém, não saiem das bancas, onde ruminam todos os dias os seus desesperos. Perderam a vontade de apelar aos potenciais clientes – que vão passando - para comprar qualquer coisa. Ninguém as liga.  E não encontram outra saída que não seja a de aceitar a humilhação de estar ali a boair.

 

Ontem eu queria comprar alface para acompanhar o meu  chá. Contei rigorosamente as moedas, e o valor servia “in extremis” para as minhas necessidades limitadas, que se resumem na alface, tomate, cebola e pão. As outras propostas estavam longe de mim, não que eu não goste de um bom camarão, de uma boa lula e das garoupinhas brilhantes que me enchem os olhos nesta banca à minha frente.  Mas não há nada a fazer,  com o bolso descompensado, senão apenas sonhar com as referidas garoupinhas grelhadas, acompanhadas com batata cozida, pimento assado na brasa e etc.. Porém, todo este meu derretimento não passa da imaginação. Aliás, a aquisição daquele tipo de peixe, é uma empreitada para grandes engenheiros, e eu sou apenas um mirone, que vai enchendo o estômago de baba.

 

Ela olha para mim, sem parar de sacudir as moscas que vão sobreavoando o peixe acabadinho de sair do mar e diz, patrão, compra garoupa, é fresca! Na verdade é uma tentação irresistível, todavia distante para as minhas capacidades. Aliás, foi por conhecer as fraquezas da minha tesouraia, que nem sequer perguntei o preço. Limitei-me a imitar o macaco que, de tanto insistir em saltar par arrancar as uvas, sem nada conseguir, acabou dizendo que não as arrancou porque estavam podres, e eu disse a senhora que não como garoupa.

quarta-feira, 20 maio 2020 09:07

Abaixo o colonialismo!

Chama-se Lundunu, um maconde aportado em Inhambane nos finais de 1974, logo depois da assinatura dos Acordos de Lusaka, aos quais seguiu-se a independência de Moçambique no dia 25 de Junho de 1975. Já não ostenta a marca da tatuagem incrustada no rosto, desenhada a frio com recurso a incisão por objectos cortantes, e se calhar é a idade que foi apagando esses sinais da crueldade. Mesmo assim, ainda há resquícios numa face violada para sempre, porque a navalha penetrou de tal maneira que o seu rasto será indelével.

 

Nunca saíu daqui, desde que chegou com uma AKM à tiracolo, gritando, abaixo o colonialismo! Nesse tempo, Lundunu era um homem engajado, pronto a dar tudo, incluindo a juventude que ainda lhe sobrava, depois da longa noite nas matas. Tinha imensas dificuldades de articular a língua portuguesa, mas isso não era importante. O que contava era a euforia, o fascínio de estar na cidade sob o brilho do néon, contrariamente às florestas, onde a luz era emanada pelos pirilampos, e pelo encandescender das balas.

 

Mora na periferia da urbe, numa casa que não mereceria a um combatente da libertação de um povo que não é feliz. Mesmo que eu tivesse uma mansão, diz Lundunu, não sentiria prazer, pois, o mote da minha luta é a felicidade de todos. Será um absurdo e inútil todo o sacrifício que fizemos, se no lugar de provermos pão à mesa de todos, buscámo-lo para o nosso egoismo e ganância. Então não valeu nada a nossa epopeia!

 

Lundunu é um homem frustrado, no sentido de que agora percebe que tudo o que fizeram, e tudo o que disseram nos comícios, diluiu-se. Ele próprio considera-se escória, levado num camião basculante e entregue aos catadores de lixo, depois de ter feito parte da tripulação, durante anos e anos. Não tem nada que lhe dê o orgulho de ter erguido a plataforma da liberdade, juntamente com os mesmos camaradas que hoje lhe olham com desdém, a não ser o manancial de histórias de nunca acabar, que conta com rigozijo nas bebedeiras sem fim.

 

No fundo, Lundunu já não espera nada. É uma pessoa resignada, que se entristece pela mentira dos seus camaradas, pela falsidade de dizerem uma coisa à luz do dia, e fazerem outra coisa no escuro. Nós não lutamos para isto, di-lo desesperado enquanto puxa sofregadamente o charuto de tabaco puro trazido de Murrombene. O que me dói ainda mais é que somos indignos dos nossos filhos, não são eles que aprendem a roubar, somos nós que os ensinamos. Somos nós que os mostramos o caminho da desonestidade. Abaixo o colonialismo!

 

O colonialismo a que Lundunu se refere não é o ora português. Esse já foi desmantelado. Lundunu chora lágrimas profundas ao dizer que estamos a nos colonizar entre nós, sem vergonha de nos apresentarmos perante os que se riem da nossa incapacidade de construir um Moçambique próspero para todos. Lundunu diz mais, estamos a nos ridicularizar aos olhos do Mundo. E enquanto os jovens, que já estão embebedados pela necessidade desenfreda de amealhar dinheiro sujo, não mudarem o seu próprio rumo, então ninguém sabe para onde vamos.

quarta-feira, 13 maio 2020 08:11

Tributo a um símio solitário

Os velhos mais conhecidos da cidade de Inhambane sucumbiram ao tempo. Já não nos cuzamos com eles nas ruas, ou nos mercados,  onde os cumprimentávamos, e deles recebíamos em troca ou o sorriso, ou a frieza cínica de quem já não espera nada, ou melhor, tem como passo seguinte a inevitável morte, para que a lei da vida se cumpra. São raríssimos, quase inexistentes, os casos de pessoas idosas com a espinha penosamente vergada e descompensada, andando por aí, obrigando a que o suporte do corpo careça de bengala. Eles já não se acham nos bancos da marginal – onde jamais estiveram - de uma cidade que se recusa às transformações.

 

A urbe é dos jovens - alguns definhando à custa da bebida da frustração - e dos poucos idosos que vão perdendo o entusiasmo. Aliás, estamos num lugar onde as probabilidades de voltarmos a ter anciãos que se vão arrastar até a loucura por velhice, são por demais ténues. Os sexagenários que andam por aqui, provavelmente não atingirão a meta. Cairão a meio da pista, e a evidência dessa fraqueza está nas queixas constantes. Há sempre um lugar que lhes dói. Mas a dor que mais os fustiga é a do espírito. Perderam a esperança, e têm medo do escuro.

 

Porém, não obstante este cenário de penumbra, que interfere fortemente nos sexagenários que também podem ser os últimos, sobressai um homem que se recusa a degenerar. Na verdade ele está na corda bamba. Não pode cair nem para um lado, nem para o outro. Então o que ele faz, é cingir o lombo para se manter por de cima da calçada, fazendo um jogo de cintura para continuar vivo. E uma das formas que encontrou para fazer esse exercício, é passear regularmente  nas ruas do seu quarteirão, onde saúda a toda gente.

 

Dizem, os que lhe conhecem, e os que lhe vaticinam o futuro sem saberem muito dele,  que este é o último símio da cidade. Ele pode estar onde há muita gente, mas nota-se facilmente que está sozinho. É um homem solitário. Saúda as pessoas mas não abre alas para a conversa. Tem um sorriso jovial, que nos mostra duas filas de dentes que parecem de um jovem.  É um indivíduo que apesar de estar a caminho do centenário, ainda mantem a espinha dorsal na vertical. Não precisa de cajado como Moisés, na pastorícia do gado do seu sogro, Jetro. E o que mais espanta, é a memória de elefante que se descobre nos poucos contactos verbais que oferece aos privilegiados que chegam perto dele.

 

É um animal elegido, de rara preciosidade, cujos filhos morreram todos por velhice, e enterrados no cemitério familiar que fica à ilharga da casa modesta onde mora o admirável velho. Muitos netos dele também despiram a carne, alguns por entrega inveterada ao álcool, e ele resiste tenazmente aos temporais. Não cai, nem mesmo perante os terramotos mais violentos que fustigaram a terra ao longo dos tempos. Ele restabelece-se sempre.

 

No fundo é uma pessoa que pode ter cartas importantes escondidas na memória, e nas mãos. Ninguém lhe conhece o segredo de tamanha longevidade, no meio de guerras inúmeras onde muitos foram abatidos, sendo o únco da sua geração que ainda respira. E ele vai continuar a viver no subúrbio até ao fim. É lá onde nasceu e que se sente bem, ao ponto de dizer aos netos e bisnetos e tetranetos, não quero lágrimas no meu funeral.

sexta-feira, 08 maio 2020 07:54

Este silêncio é demais

Acabo de escutar “A lirandzu”, interpretada por Mingas, e, mais do que a voz que me embevece, está a magistral guitarra a solo nas mãos de Sox, que me arrepia. Não é a primeira vez que oiço este trabalho, mas hoje faço-o numa circunstância particular, sob o silêncio  imposto pela incerteza do virus, e assim o volume tem que ser o mais baixo possível, de modo a que possa ouvir os pássaros cantando lá fora, fazendo côro.

 

Na verdade foi um acaso ouvir “A Lirandzu”. O António Jamal é que me proporcionou essa viagem temporal, onde as coisas fluem sem cobrança, e foi bom, pois esta melodia vem esbater os sentimentos escurecidos, que o tédio muitas vezes cria. É por isso que estou aqui, no meu quarto, ouvindo Rádio de forma desinteressada. Captando com a memória, as palavras também desinteressadas, do Jamal, que comunica em mangas de camisa.

 

António Jamal parece-me um locutor que vai para frente de costas. Ele não consegue trabalhar sem o passado, que é o seu real fundamento. Sem o passado, Jamal não será nada. Se calhar é por isso que vou elegê-lo como um dos poucos radialistas da minha preferência. E hoje estou com ele, outra vez, neste silêncio imposto pelo virus inesperado.

 

No fundo o silêncio é uma terapia, mas assim é demais. Muito demais. O silêncio não pode ser uma obrigatoriedade, porque desta forma ele torna-se uma clausura. Até de lá de fora, já não me chega a vocalização das crianças a voltarem da escola, alegres por retornarem à casa onde lhes espera o convívio. E as crianças, como se sabe, são uma das faixas mais lindas do disco de vinil, que é o próprio silêncio. Elas são a molécola central do amor. E só há amor onde há o silêncio.

 

Mas o silêncio tem que ser livre, rústico, anárquico. Que entra em consonância com a nossa liberdade, e não é este o caso, em que o virus obriga-nos a recolher aos casulos, como lesmas que se escondem nas suas próprias carrapaças, temendo o perigo. Nós também temos medo, como as lesmas. Somos lesmas, com a diferença de que, depois de partirmos, não deixaremos baba. Nem a cinza dos nossos ossos.

quinta-feira, 30 abril 2020 09:10

A última demão

Sempre que o visse passar em frente a minha casa, lembrava-me Noa. Levava nas mãos o martelo, o formão, o escopro, o serrote...... e a determinação de construir um barco e pô-lo a boiar. Descia nas manhãs, à doca, e de lá só regressava ao princípio da noite, pelo mesmo caminho, com os mesmos materiais de trabalho, com a mesma verve, e com a mesma ansiedade de ver a nau das suas mãos navegando entre as cidades de Inhambane e Maxixe, transportando passageiros insondáveis.

 

Eu nunca acreditei naquela saga. Ou seja, jamais um homem sozinho poderá construir uma embarcação das dimensões que ele pretendia, a não ser que este desafio seja assumido por um personagem de ficção, o que não é o caso, a menos que eu estivesse alucinado. Aliás, o único ser que ergueu uma arca inteira sem ajuda de ninguém, é Noa. Porque ele tinha Deus como o Próprio Armador. E este indivíduo que passa sempre por aqui, em frente a minha casa, parece caminhar no escuro. Deve ter armadores invisíveis que se apossaram dele para o atormentar.

 

Foram anos a fio de trabalho, e a medida que o tempo passava, o meu pessimismo parecia que ia sendo desmentido. Aparentemente! Porque o barco compunha-se, gradualmente, para arrepio de todos. Como é que uma pessoa sozinha, sem ajuda de ninguém, é capaz de protagonizar tamanha proeza! E logo lembrei-me de um homem que, olhando para arca de Noa pronta para a navegação, ridicularizou-a e disse assim, isto não vai a lugar nenhum. E Deus esbofeteou-lhe na boca.

 

Eu também estou a ser vergastado, não pela Mão de Deus, mas pelos meus próprios pensamentos. Este armador solitário está a avançar, rindo-se silenciosamente de todos aqueles que lhe diziam, você não vai fazer nada sozinho. E ainda lhe diziam mais, isto não é uma almadia!

 

Mas essas palavras todas, eram o granizo que caía por sobre a plataforma de betão, desfazia-se em pequenos grãos, e a casa continuava firme, ela própria construída  em cima das pedras, onde moram as águias. Mesmo assim, eu continuava com as minhas dúvidas. Oscilava entre a possibilidade de tudo aquilo vir a ser real, e o cepticismo. Era como se eu estivesse numa sala de cinema, vendo Marlon Brando, no filme Apocalipse Now, de Francis Coppola.

 

Todavia, e para que tudo se materializasse, eis que o homem passa num dia desses - em substituição do martelo e do escopro e do formão -  com duas enormes latas de tinta e diz-me assim, hoje vou dar a última demão (última pincelada de tinta). Fiquei estarrecido.

 

“A arca do Noa” está pronta! A notícia corre devastadora em toda a cidade, e ninguém queria acreditar no que ouvia. E segundo se dizia por aqui, ele construíu o barco sozinho, e é bonito. Meu Deus!

 

Prapara-se o champanhe para a vistoria e consequente aprovação das autoridades marítimas. O dito cujo está confiante como o Noa, que se avulta na proa, desdenhando o dilúvio que vai engolir casas e árvores e montes e montanhas. E o dilúvio é a boca das pessoas. Da minha, também. Pois, o que mata, não é aquilo que entra pela boca, mas o que sai através dela.

 

Agora só nos resta esperar por aquilo que vai acontecer com o testemunho das gaivotas e dos flamingos e de outros pássaros marinhos, e do próprio mar que estará calmo, dando-nos a sensação de paz. Há uma expectativa envergonhada por tudo o que falamos sem medida, diante do silêncio do homem que construía aquilo que ele pensava ser a própria vida. Um sonho que entretanto foi destruído pelos vistoriadores que não tiveram meias palavras, “este barco tem que ser desconstruído e recomeçado, tem erros graves”.

 

Raios! O que aconteceu é que a embarcação voltou para a doca, de onde nunca mais saíu. Aliás, foi sendo retirada aos pedaços, para produção de lenha.

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