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Carta de Opinião

sexta-feira, 06 setembro 2019 13:23

Pedidos de demissão

Cresci com a mensagem de que pedir demissão é um acto fora dos costumes africanos. Entre portas, amiúde oiço que a figura de pedido de demissão embarcou com os portugueses quando estes partiram em massa no contexto do processo de independência de Moçambique. Talvez por aqui a explicação da razão do alarido social e do destaque noticioso das vezes em que um pedido de demissão é feito por um compatriota. Foi assim com o recente pedido de Rosário Fernandes do cargo de presidente do Instituo Nacional de Estatísticas (INE). E deste pedido não vou falar, mas de outros (três) que conheço. Confesso que tenho dificuldades de encontrar cinco exemplos. Apenas encontro quatro pedidos: os três que abaixo partilho e o do Rosário Fernandes.

 

Um meu chefe de turma foi o protagonista do primeiro pedido de demissão que acompanhei na vida. Corria a segunda metade dos anos oitenta e em tempos de partido único. O segundo foi nos anos noventa e em tempos de democracia multipartidária. O pedido foi de Brazão Mazula que pedira demissão do cargo de reitor da Universidade Eduardo Mondlane (UEM). O terceiro foi em 2018. Desta vez por uma protagonista de palmo e meio e das funções de chefe-adjunta de uma turma da 4ª classe. 

 

O primeiro pedido: em plena reunião de turma (7ªclasse), uma quarta-feira, o chefe de turma pediu a palavra no início da reunião. Se não me engano foi um ponto de ordem. O director de turma, um dos professores, consentiu e perante a sua estupefacção ouviu um categórico “Peço demissão, Senhor Director!”. Em seguida o chefe de turma fundamentou a sua decisão na usurpação de competências, sobretudo as adstritas ao controle do lanche que era fornecido pela cantina. Acontecia que os colegas mais velhos, na maioria bi-repetentes, utilizando artimanhas e ameaças, desviavam o lanche e faziam a respectiva distribuição baseada em critérios femininos (gratuitamente) e desportivos (preço bonificado). 

 

O segundo pedido: no contexto de uma greve de estudantes bolseiros da UEM, o reitor Brazão Mazula sacudiu a pressão pondo o seu cargo à disposição. Salvo melhor informação, o então presidente moçambicano (Joaquim Chissano) não anuiu. De todas as maneiras, creio que este foi o primeiro pedido de demissão depois da independência. Se não, no mínimo, acredito que tenha sido o primeiro na era multipartidária. Sublinho que me refiro aos pedidos de demissão de cargos públicos e que tenham sido veiculados pela imprensa. 

 

O terceiro pedido: conforme dito foi o de uma menina de palmo e meio e aluna da 4ª classe. Na habitual reunião semestral de pais e encarregados de educação o director de turma partilhou o pedido e explicou que a demissionária deixou o cargo de chefe-adjunta, alegando que o cargo não tinha nenhuma utilidade. Em defesa da sua decisão a petiz apontou que o colega e chefe de turma concentrava, abusava e tinha funções em excesso, não delegava nenhuma das funções, não faltava, não atrasava e nem adoecia. Foi o máximo. Da reunião ficaram lições e sinais de esperança e vitalidade para a democracia moçambicana.  

 

Por coincidência o primeiro pedido de demissão foi no ano anterior (1987) à vinda do Papa João Paulo II (1988) ao país e o terceiro pedido no ano anterior (2018) à vinda do Papa Francisco (2019). Depois da visita de João Paulo II foi necessário passar oito anos para presenciar um outro pedido de demissão (o segundo). Espero e havendo circunstâncias – no mínimo as que ditaram as três demissões e a do Rosário Fernandes (a quarta) - que eu não tenha que aguardar outros oito anos para ouvir o próximo pedido de demissão. E assim não será por obra de Rosário Fernandes que tratou de contrariar os dados, apresentando a sua demissão no mesmo ano da visita do Papa Francisco. O próximo?

 

PS. Perante circunstâncias que suscitem um pedido de demissão e tal não aconteça a comissão de ética devia agir. No mínimo o visado que fosse notificado sobre as lesões causadas à saúde pública e na própria dignidade do visado, seus colegas, família e amigos por tamanha e vergonhosa falta de atitude e brio profissional. Que o visado não espere pela acção da comissão de ética e nem que lhe seja recordado o nobre exemplo da menina de palmo e meio, chefe-adjunta de uma turma da 4ª classe, em circunstâncias análogas, incluindo as de outros pedidos. Não faltam exemplos para o quinto pedido de demissão. Por enquanto: Atenção a chamada!

terça-feira, 03 setembro 2019 12:06

Sou uma mulher para sempre

No dia em que tudo isto aconteceu voltávamos de Tete, eu e o meu pai, depois de umas férias agradáveis passadas em Tsangano, alí no limite com o Malawi. A princípio a ideia era esventrarmos a terra de Khamuzu Banda, para depois reentrarmos em Moçambique por via da província da Zambézia, onde nos esperavam arrebantantes paisagens da natureza. Mas o plano mudou quando nos disseram que no Malawi chovia torrencialmente há dois dias. Pegamos no mesmo caminho que nos levara até ao lugar das imensas pradarias e colinas, e fruta fresca e comida de não acabar. Agora de regresso à Maputo, onde eu nasci, contrariamente ao meu pai que é nyandja dali.

 

Para além de viajarmos num carro confortável, um BT-50 dupla cabine em boas condições, a maior sensação de segurança que me vai dentro, vem do facto de o meu pai ser um condutor responsável. Ele respeita a estrada e os seus sinais, mas sobretudo respeita-me a mim, por isso evita criar condições em que eu possa ser assustada por qualquer manobra imprudente. Não que ele ande a quarenta ou sessenta. Não! Mas também nunca passa dos 120, pelo menos quando está comigo.

 

Saímos de Tsangano muito cedo. Podiamos ter saído mais cedo ainda, mas era necessário esperar que o nevoeiro desvanecesse para termos visibilidade plena. E quando chegamos a Tete, meu pai propôs que fizessemos uma curta paragem para um café. Fomos ao Almadia, ali na margem sul do rio Zambeze de onde, enquanto degustavamos do pequeno almoço, aproveitavamos a ocasião para contemplar a ponte que é um especáculo vista daqui.

 

Meu pai bebeu uma grande chávena de café e uma sandes de queijo, e eu imitei-o, embora ele sempre me diga, cuidado com o café!

 

Retomamos a estrada por volta das nove, despedindo-nos de Tete, uma cidade agreste cercada de montanhas de pedra. Vi Kalowera do lado direito, já à saída, com o bairro  Kanongola do lado esquerdo, e entreguei-me, absorta, àquela paisagem que deixava para trás. Foi nesse momento de pensamentos que meu meu pai, sem olhar para mim, disse-me assim, aperta o cinto, meu passarinho. Ele gosta de me tratar assim. Sou o passarinho dele. Uma menina amada.

 

À entrada de Katandiga, minha mãe ligou de Londres onde estava a fazer o doutoramento em Antropologia. Ligou para o celular do meu pai, e o meu pai deu-me sinal com a cabeça para que eu atendesse. Peguei no telefone mas não falei sequer uma palavra. Um monstruoso camião, que vinha em sentido contrário ao nosso, perdeu repentinamente a direcção e veio para a nossa faixa. Meu pai ainda tentou fazer um milagre para fugir do mastondonte enquanto eu gritava chamando pela minha mãe: mãeeeeeeeeeeeee!!!!!!!!! O nosso carro foi a tempo de evitar o choque frontal, mas capotou logo a seguir, e depois disto não me lembro de mais nada.

 

Despertei no Hospital quinze dias depois numa cama ortopédica, e o meu pai estava ali, agora com a minha mãe que teve de abandonar os estudos por conta do que nos aconteceu, a mim e ao meu pai. Que não sofreu no acidente. Os dois estavam ali, olhando-me com comiseração e perguntei, o que é que está acontecer, mãe? Eles debruçaram-se sobre mim, chorando e molhando meu corpo com as lágrimas. E eu percebi rapidamente tudo. Não foram necessárias muitas palavras.  Estava paraplégica. Para sempre. Mas continuo a ser uma mulher. Que ainda vai voar, mesmo sem poder mexer as patas. Escangalhadas. Para sempre.

Há dias acompanhei - num dos canais de televisão da praça - uma reportagem sobre o elevado custo (160.00Mts) da portagem da ponte “Maputo - KaTembe”. O mote foi uma petição de residentes da Katembe, sobretudo de potenciais automobilistas/utentes frequentes da ponte. A reclamação-mor era a redução do valor da portagem para um nível comportável e semelhante ao valor (35.00Mts) da portagem da Matola. Outra reclamação recaia sobre os riscos da alternativa usada: estacionar os carros (sem nenhuma segurança) nas proximidades da portagem e viajar de transporte público/chapa (excesso tempo de espera e condições de viagem). 

 

Por onde alinho? Pela manutenção ou redução do valor praticado na portagem da ponte? Em benefício de mudanças na mobilidade (redução de congestionamento) e na saúde pública (redução da poluição do ar e sonora) alinho do lado que não estimule o uso de carros particulares. Dito de outro modo: alinho por políticas/medidas que restrinjam a circulação de carros particulares na cidade. E para o caso o valor da portagem funciona como meio de restrição.  

 

Também alinho por tais políticas/medidas por uma questão de justiça/democracia: os carros particulares ocupam a maior parte do espaço público (circulação e estacionamento) e transportam menos pessoas em detrimento de outros modos (transporte colectivo, pedonal e bicicleta) que ocupam menos espaço urbano e são responsáveis pela maioria das deslocações dos cidadãos. Logo: reduzir a circulação de carros particulares (reclama a minoria) melhora a mobilidade dos restantes modos de transporte (aplaude a maioria) e ainda melhora a saúde pública (beneficia a todos).    

 

Neste contexto e nas actuais (péssimas) condições de mobilidade em Maputo o foco da solução é óbvio: transporte colectivo, pedonal e de bicicleta. E uma aposta na qualidade e articulação/integração destes modos devia ser a base do conteúdo de campanhas de advocacia e da própria resposta do estado, autarquias e do sector privado. Felizmente e na área metropolitana de Maputo já existem sinais encorajadores nesse sentido (Agência Metropolitana de Transportes de Maputo e o projecto Metrobus do Grupo Sir Motors). 

 

No mesmo sentido - para o caso em apreço da petição em marcha - a melhoria das condições da alternativa usada para a travessia da “Ponte Maputo – KaTembe” - estacionar o carro e apanhar o transporte colectivo - devia ser o foco da petição dos potenciais automobilistas/utentes frequentes da ponte. O que vale atravessar a ponte no seu (confortável) veículo - mesmo que seja grátis - e ficar parado/engarrafado nos acessos da mesma?

 

PS (i). Trouxe à mesa este assunto como contributo e antevisão do debate no quadro da campanha eleitoral que se avizinha. A mobilidade urbana será de certeza um dos temas de destaque. O que os partidos esperam fazer nesta área? Como fazer? Os custos e fontes de financiamento? Não faço ideia. E por esta razão: antes de confiar (o voto) confira (o manifesto). O provérbio “confie, mas confira” é russo e foi mundialmente cunhado por Ronald Reagan, 40º presidente norte-americano (mandato 1981-1989). Assim devia ter sido no processo de concepção e construção da ponte “Maputo-Katembe”. O presente pode estar envenenado.

A nossa amizade é inabalável. Conquistamos – eu e ele – ao longo do percurso de mais de meio século que dura a nossa relação, a liberdade de nos dirigirmos um ao outro sem reservas, com honestidade. Foi nessa condição que, cansado de ver o meu amigo caminhando impotente para o pricipício, já no fim da linha, balançando ao titmo de uma carcaça inútil, falei-lhe aquilo que penso, sem filtar as palavras. Eu disse-lhe assim, meu irmão, estás um trapo de merda.

 

Pior do que tumefacto, o rosto daquele que em tempos parecia O.J.Sinpson correndo com a bola ao encontro da luz, está lívido. Arrepia olhar para ele, sobretudo nas manhãs, antes de começar a cavalgada que o vai transformar em esterco. Treme de cima a baixo e não consegue suster o olhar em seja o que for. Os lábios estão gretados, numa boca que esconde o bolor repugnante que se aloja por sobre as gengivas, onde estão embutidas duas filas de dentes completamete queimados pelo tabaco.

 

A mulher, embora continue ao seu lado suportando um cadáver que pode ser enterrado daqui a pouco sem glória, não pode fazer mais nada senão preparar as lautosas refeições que mesmo assim Chico não come, e lavar a roupa para disfarçar o corpo de um homem que é diariamente enxovalhado pelo álcool. Chico não tem peladar. O único sabor que conhece e do álcool e do fumo. Chico é a antítese de pessoa. Aliás eu disse-lhe isso várias vezes para ver se as minhas palavras serviriam para alguma coisa. Nada!

 

Ainda nem o sol ganhou plenitude e o meu amigo já está na segunda dessas “garrafinhas” que têm levado muitos jovens a esquizofrenia. Se calhar o meu amigo também está aí. Ele padece. Vê-se nos olhos esbugalhados, constantemente feridos pelo fumo que espantosamente ainda não lhe provocou a  catarata. Mas o sofrimento do Chico, agora que já está em “órbita”, é disfarçado pelo vozeirão à Barry White, cantando canções dos americanos, tipo Memphis Slim. Canta e conta histórias inacreditáveis. Desconhecidas. Levita como os cosmonautas. E provavelmente  isso é que lhe vai ajudar a descer o desfiladeiro.

 

Cada vez que falo com o meu amigo no sentido de ele vir para este lado, o meu amigo ri-se de mim às gargalhadas, abrindo desmesuradamente a bocarra repugnante. Voltei a dizer-lhe que era um trapo de merda e ele, serenamente, disse-me que eu não sabia o que estava a dizer. Pode ser verdade. Mas gosto dele, isso é que importa, e já percebi que também eu, como a sua delicada e dedicada esposa, não posso fazer nada, senão assistir à marcha de um homem que vai a execução sem capuz. Aliás vai encapuzado pelo álcool que lhe dá prazer nesta caminhada fatídica.

Um senhor de família que sempre passava pela zona, na época de férias escolares, decidiu parar para as perguntas habituais - de mais velho – a um grupo de miúdos sentados num muro. Um dos miúdos era eu. O “tio” - depois do papo protocolar - quis oferecer um bolo que lhe sobrara. O modo sugerido foi o de fazer uma pergunta e fê-lo questionando quem sabia o nome do presidente dos Estados Unidos da América (EUA). Respondi com toda a certeza do mundo: Ronald Reagan (06/02/11 - 05/06/04). Corria o ano de 1985 e Reagan acabava de tomar posse do seu 2º mandato como o 40º presidente dos EUA.  
 
Veio-me à memória esta cena depois de rever um vídeo de um encontro em 1985 – em solo americano - entre Reagan e Samora Machel (1º presidente de Moçambique). Os dois foram na altura os meus presidentes. Samora Machel (e depois Joaquim Chissano) por razões óbvias e Reagan porque era o presidente dos meus ídolos (do cinema, desporto e música) e da terra das boas coisas (“jeans”, “sapas” óculos e chapéus) logo era o meu presidente. Guardo algumas lembranças dos dois. As da “amizade” com Samora Machel conto em outro momento. Neste texto apenas partilho algumas com R. Reagan. 
 
Na altura da pergunta eu já era “amigo” de Reagan. A amizade foi selada pouco antes. Foi pela TV em Novembro do ano anterior na data do anúncio da sua vitória para o 2º mandato. Desde esse dia a administração Reagan foi parte da minha agenda infanto-juvenil. Até conhecia de cor todos os escândalos e os principais secretários e subsecretários de estado americanos. No mesmo diapasão até o nome e a morada do Director da CIA conhecia (risos). 
 
Por conta desta amizade e da Guerra-Fria tive alguns dissabores. Um deles foi na 5ª 21 (Escola Secundária da Maxaquene). O "Bloco Soviético" ou "Ala do Leste" da turma liderado por um colega mais velho bloqueou o meu acesso ao lanche: sempre que chegasse a minha vez, na fila do lanche, este esgotava. Era algo como a reedição do "Bloqueio de Berlim" (fecho do acesso ferroviário, rodoviário e hidroviário à Cidade de Berlim Ocidental) feito pelos soviéticos contra os Aliados, liderados pelos EUA, que obrigou os últimos a abastecerem Berlim através de uma ponte aérea de Junho de 1948 a Maio de 1949. O mesmo com o meu lanche: durante um ano tive que usar meios alternativos, recorrendo a pontes subterrâneas com amigos da 6ª classe. Mais tarde fiquei a saber que tudo era orquestrado entre "Moscovo" e os seus agentes infiltrados no refeitório da escola.  Era o auge da Guerra-Fria (risos).  
 
As notícias por cá eram aterradoras em relação aos EUA: os imperialistas americanos. Salvo erro Moçambique boicotou a sua presença num campeonato mundial de Hóquei, que participaria os EUA, em protesto contra o imperialismo americano. Outros tempos. Quando Samora visitou os EUA fiquei confuso: como assim? Ir ao encontro e em casa do inimigo? Só mais tarde percebi que na arena internacional e entre os estados “não existe amizade, mas sim interesses”. O discurso de Samora foi claro: “queremos uma parceria de longo prazo”. Demorou, mas trinta e poucos anos depois e por outros tantos e indefinidos anos cá estão os americanos de pedra e cal. 
 
Fui crescendo com o "feeling" de um dia estar ao vivo com Reagan. Na primeira metade dos anos 90 ele anunciou que padecia de Alzheimer e a hipótese de estar com ele ao vivo adoecia à medida que ele ia despedindo. Em conversa com amigos eu dizia que iria ao funeral de Reagan.
 
Em 2004 fui convidado por uns amigos do Brasil para visitar a terra do samba e do futebol. Na manhã do dia 06 de Junho parti com destino à cidade de Porto Alegre. Logo que entrei no táxi, a caminho do aeroporto, pedi ao taxista que sintonizasse a rádio e uma voz bem audível diz: " morreu ontem Ronald Reagan, antigo presidente americano ". Fiquei estarrecido. Parecia que estivesse a receber a notícia da morte de um amigo ou de um familiar próximo. O taxista não entendeu a minha repentina tristeza. O que me confrontou foi o facto de estar a viajar ao continente americano. Estaria próximo de Reagan. 
 
Já em Porto Alegre tive que mudar os planos, pois o meu amigo e hospedeiro ia passar uns dias numa cidade do interior e voltaria depois do dia 12 de Junho, o dia dos Namorados no Brasil. Ele ia bem acompanhado e recusei o convite para segurar a velinha. Já estava triste e outra tristeza não iria aguentar, não! Como alternativa teria que fazer algo para cobrir os dias em branco. A cidade do Rio de Janeiro foi a escolha. Não fazia ideia de que a decisão foi um impulso que me levou ao "encontro" de Ronald Reagan: no Rio, Baía da Guanabara, estava ancorado o porta-aviões nuclear USS Ronald Reagan. 
 
Em 11 de Junho de 2004 foi o funeral de estado de Ronald Reagan. O Presidente George Bush (filho) declarou que seria um dia de luto nacional. Na data e por todo o mundo foram feitas homenagens. No Rio foi no porta-aviões Ronald Reagan. Presenciei a singela e sentida homenagem – dirigida pelo capitão Andres Brugal, segundo na linha de comando do navio - com outros fãs e mirones. 
 
“Cremos firmemente no que Ronald Reagan acreditava: paz, paz através da força e isso é o que representamos como seu legado, levando o nome de Ronald Reagan” disse o capitão, no fim da breve homenagem, conforme noticiado pela agência Reuters no mesmo dia. Na minha despedida, enquanto atravessava a ponte de Niterói, acenei para o “Ronald Reagan”: um Herói dos tempos infanto-juvenil. 
 
PS (i). Para o actual contexto em que se encontra a política moçambicana nada melhor que partilhar uma frase de Ronald Reagan sobre a política: “Eu achava que a política era a segunda profissão mais antiga. Hoje vejo que ela se parece muito com a primeira”. Outra: “ A política é como o show business: você desliza por algum tempo e termina num inferno.”
 
PS (ii). Não tanto a propósito do texto: conhecemos tão bem a Casa Branca, palácio presidencial dos EUA, em detalhe (exterior e interior), incluindo a famosa sala oval, mas não conhecemos a nossa Ponta Vermelha, palácio presidencial. Será isto um detalhe ou indicador do nível democrático (de transparência) de cada país?
terça-feira, 20 agosto 2019 08:50

Passo as noites nua... sem vestimenta

 

Agora percebo que toda esta imaginação que hoje vivo é uma realidade. Uma tormentosa realidade. Diferentemente do tempo em que eu era a rainha desta terra,  vivendo por cima de todo o chão. Desprezando as minhocas, pisando-as sem misericórdia, dizendo sem reservas que nada de mal me aconteceria. Mas no fundo eu era a Dambóia, irmã do Ngungunhana, semeando espinhos em todo o lado.

 

Estou abraçada, por não ter abrigo,  a uma rocha que me rasga as mãos até ao sangramento. Porém, paradoxalmente, tenho empregados e mordomos que se revezam diariamente neste palácio onde moro cercada de ouro e diamantes, sem falta de nada. Mesmo assim os temporais incessantes não me poupam. Varrem-me em cada passo que tento dar na fuga de mim mesmo. Sou um lagarto desesperado, na luta inglória pela escalada das lindas paredes da minha casa, debroadas de rubis.

 

Mas isto já não é casa. É uma clausura, onde passo as noites sem sentir o cheiro aspergido pelas alfazemas trazidas da Etiópia. Perdi o olfacto. Estou nua por dentro da alma, sem vestimenta, apesar das roupas confortáveis que agora não valem nada depois de tudo isto. Desdenho-me em todo o ser. Repugno-me. E pior do que isso, as cobras enchem-me o quarto em substituição do tapete de veludo que adquiri sem o merecer. O medo ri-se de mim, enquanto de longe, como cavaleiros do Faraó, desembucham sobre mim as gargalhadas dos mochos.

 

Estas noites não podem ser uma alucinação. Na verdade sou eu, sentindo a penetração das esporas nas minhas vísceras, obrigando-me a trotear em rodopio no seio da própria tormenta. Já não sou a raínha. Sou uma mulher estranha perante os empregadose mordomos que sempre me temeram. O meu palácio é sombrio. Assombrado. Meu corpo e minha alma não estão quentes nem frios. Estão mornos. É por isso que se aproxima de mim toda esta bicharada. Fui vomitada pela vida.

 

Pena que eu não tenha copiado da sabedoria da formiga, e hoje estou aqui sem provento. Vazia. Abandonada. Tenho comida para mim e para os cães, e sobras para o Lázaro, mas a minha fome não passa. No fundo estou morta. Sinto que meu nome descerá para sempre com a minha carcaça. Não restarão lembranças de mim para as crianças. Muitos aspirrarão de alívio ao receberem a notícia da minha morte. Beberão o champanhe que nunca me faltou. E muito mais para festejar aquilo que eles agora desejam ardentemente: que eu sucumba. Isso é que me fulmina o ser todos o dias, nesta vida em que já não olho para o relógio, cujos ponteiros morreram como eu.