É início de noite de domingo. Setembro na pele da cidade e o cheiro do Outono mais próximo de nós, como o molho picante que se evade da cozinha do restaurante indiano da minha rua. A cada dia o sol deita-se um minuto mais cedo. O céu azul, rasgado por pássaros mecânicos, mais escuro que nos dias anteriores. Vinte horas e dois minutos e o céu azul mais escuro que nos dias anteriores e as luzinhas dos pássaros mecânicos às piscas. O campus da universidade iluminado pelas lâmpadas fluorescentes que ajudam as árvores a fintarem a escuridão. Espreito pela janela e a noite tranquila lá fora.
Na quinta-feira passada pernoitei no Estoril. Uma noite um pouco mais fria e tranquila que a de muitas freguesias de Lisboa. Claro que não podia ser diferente, no Estoril as ondas do mar rastejam com coragem e a praia do Tamariz sempre no mesmo lugar. O escritório para o qual trabalho pôs-nos lá para umas sessões de imersão à vida de advogado associado que se avizinha, razão pela qual no dia seguinte almocei no restaurante do hotel.
Durante o almoço, a mulher que serviu aos meus colegas e eu fez uma centena de visitas à nossa mesa e sempre que se aproximava ignorava os meus colegas, olhava para mim, abria um sorriso que se estendia de uma ponta à outra da boca e cantarolava para mim com aquele jeitinho e tempero brasileiros que ela transbordava:
está tudo bem? você quer mais alguma coisa?
Os olhos dos meus colegas em cima de mim e eu todo constrangido com a situação, sem saber se era aquilo mesmo que me apetecia responder:
está tudo óptimo! Muito obrigado…
Cinco minutos depois, a mulher voltava com um sorriso mais brilhante que o da vez anterior, olhava-me nos olhos com ternura e cantarolava novamente:
está tudo bem? você quer mais alguma coisa?
As batatas a murro e a bifana estateladas no prato branco a rirem-se de mim, os olhos dos meus colegas mais acusadores que nunca e eu a pensar em como ia reagir àquela situação. De repente, a minha colega com um sorriso à queima-roupa disparou:
acho que ela gostou de ti, ilustre!
Não perdi tempo, deixei escapar um risinho maroto e retruquei imediatamente:
o Brasil e eu temos alguma coisa…
As noite de Setembro, de facto, mais fresquinhas que o meu coração. As noites mais escuras. Sinceramente, eu não menti:
o Brasil e eu temos alguma coisa.
No dia 7 de Setembro, o Brasil, um país com mais de duzentos milhões de habitantes, celebra duzentos anos de independência. Tal como para muitos moçambicanos da minha geração, o Brasil chegou-me pela televisão na primeira década do século XXI. Lembro-me de ver o Brasil, um país que só mais tarde descobri colorido, chegar-me aos olhos através das telenovelas que passavam todas as noites na televisão à preto e branco que os meus vizinhos tinham estacionada no centro da cristaleira colada à parede da sala. Lembro-me de ouvir o Brasil chegar-me aos ouvidos através das melodias de Leonardo e Leandro, Zezé de Camargo e Luciano, Almir Sater, Chitãozinho Xororó, Caetano Veloso, Chico Buarque, Alexandre Pires e Alceu Valença. Lembro-me de ver o Brasil chegar através de Grande Sertão Veredas de Guimarães Rosa e de Capitães de Areia de Jorge Amado. De tal modo que modo que não menti quando disse:
o Brasil e eu temos alguma coisa.
São duzentos anos de independência e o Brasil, meu amor, chega-me através dos brasileiros afetuosos e simpáticos que encontro no meu dia-a-dia. O Brasil chega-me através dos vários amigos brasileiros que não cabem em nenhuma das minhas mãos sempre secas. E sem dúvida, Brasil é poesia, negro, metrópole, cachaça, futebol, música, favela, sofrimento, índio, Aparecida, alegria, samba, sertão, amizade, paixão, Domitila, carnaval, vulcão, quilombo, trabalho árduo, esperança, branco, grito, sonho, pimenta no arroz, serena, beleza, vida. De tal modo que a voz no meu ouvido, bem devagarinho, cantarolando:
Arrumadjinho!
Setembro na pele da cidade, a noite mais noite que em Agosto. As luzinhas dos pássaros mecânicos às piscas. As luzes fluorescentes iluminando o campus da universidade e as árvores esquivas a fintarem a escuridão.
Justamente um dia depois de comprar mais uma embalagem de máscaras, para variar, desta vez não eram nem azuis, nem brancas, nem pretas daquele carregado, mas daquele menos carregado, aparentemente lavado, digamos preto esbranquiçado, ou acinzentado, o Chefe do Estado veio à Nação, alto e bom tom, indicar que… “já não é obrigatório o uso da máscara” na via pública, seja nos locais de muita aglomeração, ou de pouca concentração; ou ainda, abertos ou fechados… e que já não há limitações no números de convidados para qualquer que seja a cerimônia, excepto um funeral em que o finado perdeu a vida por causa da ainda pandemia!
Ainda que não a exteriorizemos, nem a formulemos de forma directa, a questão que perpassa a alma de todo o mundano nestes dias correntes, esteja ele onde estiver, é a seguinte: a COVID-19 acabou? Passou mesmo? Mesmo…? Nao estará escondida algures numa esquina, invisível, ou na escuridão?
Não se trata de nenhuma cobardia a não enunciação da pergunta. É que se trata de uma pergunta bem difícil, que diz respeito muito ao futuro, ao amanhã; mas que carrega consigo toneladas e toneladas de pesadelos vivenciados, mas ainda bem vivos no nosso quotidiano, nas mentes e nos olhos. Como bem diz o adágio popular, ninguém conhece o amanhã. O futuro, esse, só a Deus pertence, como bem dizem os crentes. De facto, em nenhum momento o Presidente disse que a pandemia acabou. Disse, isso sim, que vamos viver, mas vamo-nos precaver, porque o amanhã pode voltar a ser o… ontem tenebroso!
Quem não se lembra desse ontem… tenebroso? Funesto! Cáustico. Carrasco. Macabro! Impiedoso. Desumano!…
Não pode não haver quem não se lembre. A humanidade que passamos ontem foi de tal sorte desumana que não deixou nada nem ninguém incólume, na mesma, sem sequelas. Todos os mundanos sofreram, de forma directa, na pele, na família, nos amigos; ou de forma indirecta, nos conhecidos e pessoas de diversa utilidade. Todos sofremos. Em texto de homenagem ao amigo e colega João Matola, que Deus o tenha na sua paz e graça, escrevia que a COVID-19 é/era aquele diabo que nos matava ainda que vivos; uma parte de nós morreu ao longo desses tenebrosos três anos.
Muitos de nós vimos nossa vida escapar por um triz… por milagre de Deus! Muitas foram as pessoas que foram a unidades sanitárias com os seus próprios pés para não mais de lá saírem com os seus próprios pés… milhões foram os que perderam directamente as suas vidas, outros milhões foram as famílias que foram dilaceradas, destroçadas para todo o sempre! Milhões foram os amigos, conhecidos e pessoas de inspiração que se foram para a eternidade, levando consigo grande parte de nós! Milhões foram as almas humanas desconhecidas de nós que, silenciosamente, nos deixaram!
Impossível apagar tudo isto. Impossível acreditar que perdemos os familiares, os amigos, os colegas e os conhecidos que perdemos. Impossível acreditar e ou esquecer!
Como é igualmente difícil esquecer que milhões foram as “coisas” que devíamos parar de fazer na nossa vida, muitas das quais sempre fizemos desde que nos conhecemos como pessoas. A vida tinha perdido completamente o seu sentido: o ser humano não é de permanecer no mesmo sítio durante um infindável período de tempo, mas tínhamos a impiedosa e desumana recomendação, com carácter de lei, o “fica em casa”! Ir ao mercado, à loja, era um acto de… muita coragem! Ir aos copos com os amigos, um dos maiores prazeres da vida, festas, convívios, passeatas, praias… tudo, tudo ficou literalmente proibido: fica em casa! Tudo tinha que se feito e só se podia fazer… na clandestinidade, com o perigo de se ir parar na esquadra dentro de um mahindra!…
Momentos tenebrosos poderão voltar, por isso, continuemos a precavermo-nos! Mas os que passamos não o foram menos! Continuemos a usar a máscara, a desinfectar as mãos, a evitar as aglomerações e os apertos de mão!
ME Mabunda
Seria um lugar privilegiado de contemplação, não fosse aquela invasão toda de casas precárias que vão até à água, e as machambas que sugam essa mesma água. Há outras construções, ainda, erguidas ao gosto dos donos, à volta da lagoa de Tsivanene, sufocando uma paisagem que pertence a todos os munícipes da cidade de Inhambane, porém, agora desfrutada por poucos.
Tsivanene já foi um paraíso, um ponto de encontro onde as mulheres – antes de haver água canalizada para as casas da maioria - iam lavar a roupa, que saía perfumada pelas plantas de nenufen, abundantes nesse tempo. Era um espaço livre, espectacular, com dunas a debruarem -no, num perímetro de cerca de dois quilómetros de comprimento, e talvez pouco mais de meio quilómetro de largura. Mas hoje, toda a beleza natural que ali existia, foi encoberta.
Ainda há pouco passei por Tsivanene, com o propósito de buscar lembranças de um tempo que deixa saudade. Íamos, na companhia das nossas mães, banharmo-nos em mergulhos inocentes, cheios de entusiasmo, enquanto elas – as nossas projenitoras – lavavam a roupa, entretidas e alegres, em conversas sem fim. Sabia do que me esperava. Tinha consciência do choque que me atingiria ao não poder parar de determinada distância e assistir a uma maravilha ora mais do que esquecida. Destruída!
Fui à Tsivanene, como tenho ido a muitos sítios da minha cidade, em passeios livres, sempre que as oportunidades se me oferecem, e saí de lá profundamente esfaqueado na alma. Senti que é um espaço que podia merecer melhor tratamento, onde as construções deviam ser feitas a uma distância recomendável, à mistura com algumas casas de pasto e esplanadas para dar regalo ao espírito, à mente, e ao corpo.
Tsivanene podia ser limpo, talvez dragado, a pensar-se em canoas desportivas, há condições para isso. Seria um retiro da juventude, e não só, já que dentro da cidade não temos visto casais a passear abraçados aos fins-de-semana. Inhambane não são só as praias espalhas ao longo do Índico, entre Barra e Guindjata, passando por Tofo. Aqui também poderiamlos aliviar as cargas do trabalho que nos ocupa ao longo da semana.
Tsivanene fica perto do Aeroporto. Seria acessível e lindo, se alguém tomasse a responsabilidade de mudar as coisas como estão, e levá-las a um sonho que é possível realizar. Para gáudio de todos os manhambanas, e daqueles que nos viriam visitar.
O Poeta Alberto de Lacerda morreu há 15 anos. Li, pela primeira vez, um poema seu publicado, na vetusta “Gazeta” da TEMPO, por Luís Carlos Patraquim, que me marcaria para sempre: “Diotima”. Aqueles versos iniciais são inesquecíveis e nunca me abandonaram: “És linda como haver Morte/ depois da morte dos dias”. Isto é de uma beleza tremenda. Mas o poema tem outros versos igualmente perfeitos: “Quem te criou destruiu / qualquer coisa para sempre”. Um poeta capaz deste tipo de síntese poética tem lugar em qualquer panteão. Este poema foi inspirado pela sua sacerdotisa, a Poeta Sophia de Mello Breyner Andresen, talvez a mais importante poeta portuguesa do século passado.
Alberto de Lacerda nasceu na Ilha de Moçambique a 20 de Setembro de 1928 e cedo imigrou para Londres onde viveu – com intermitências pela América – até ao fim. Luís Amorim de Sousa escreveu um testemunho pungente sobre o Poeta em “Às Sete no Sa Tortuga: um retrato de Alberdo de Lacerda”. Um comovente testemunho de amigo desde que se conheceram em Londres até ao fim. Lacerda abandona Moçambique em 1946, parte para Lisboa onde prossegue os estudos e chega, em 1951, a Londres. Aos 23 anos almoçou “Exactamente / No centro / Da liberdade” com o imenso poeta T.S. Eliot, autor desse celebrado “The Waste Land” e Nobel em 1948. Conhece, através de Edith Sitwell, o poeta Dylan Thomas.
Será na capital britânica onde publicará o seu primeiro livro: “77 Poems”, em 1955, pela Allen&Unwin. Teve um acolhimento caloroso e críticas entusiasmadas. Em Portugal, onde no início dos anos 50 conviveu com a nata da poesia portuguesa – Ruy Cinatti, Mário Cesariny, Raul de Carvalho, António Ramos Rosa, Luís Amaro e Sophia de Mello Breyner Andresen, a sua Diotima –, participou da criação da “Távola Redonda”, com Ruy Cinatti, António Manuel Couto Viana e David Mourão-Ferreira.
Poeta maravilhado e do maravilhamento, poeta deslumbrado e do deslumbramento, poeta sensível e iluminado, poeta intenso, por vezes enigmático, esfíngico, nostálgico sempre. Poeta amante da poesia, da música, das artes plásticas. É amigo, até ao fim, da grande artista Paula Rego. Outra musa. Coleccionador inveterado de arte, de livros, de discos. Vive compungido com a música, sobretudo de Mozart, exulta com Picasso. Poeta da língua, grande exegeta. A língua portuguesa esplende-se e esplende-lhe. Quem o conheceu, via nele a figura e a imagem do poeta. Homem por vezes ensimesmado, recolhido no seu ser. Soberbo conversador: Eugénio Lisboa dizia que a conversa com Alberto de Lacerda melhorava o silêncio. Aliás, Luís Amorim de Sousa, nas várias homenagens que lhe faz, não poupa elogios a essa arte de conversar e a essa festa da palavra no diálogo com Alberto de Lacerda. Da palavra exacta. Da poesia esmerada. Do silêncio.
Numa remota viagem pelo seu lugar de origem escreve um dos poemas mais belos e translúcidos sobre a Ilha de Moçambique, que lhe chama “L`isle joyeuse” no livro “Exílio”: “Ó festa de luz de mar tranquilo”. Aliás, em “A Minha Ilha”, esta mesma Ilha de Moçambique estará na origem dos mais breves e mais intensos versos de sagração da Ilha de que há memória: “Ilha onde os cães não ladram e onde as crianças brincam / No meio da rua como peregrinos / Dum mundo mais aberto e cristalino”. Este e outros versos seus, igualmente lapidares, foram recolhidos na antologia “A Ilha de Moçambique pela Voz dos Poetas”, compilada por mim e pelo António Sopa. Numa ulterior empreitada, “Nunca Mais é Sábado” (título pilhado a Rui Knopfli), antologia que organizei, sobre a poesia moçambicana, iria, igualmente, incluir poemas de Alberto de Lacerda. Para obter o seu consentimento, falei-lhe ao telefone e ele foi extremamente afável nesse único contacto que estabelecemos. Tive pena de nunca o ter encontrado pessoalmente. O Eugénio Lisboa quis muito que eu o conhecesse, mas não calhamos em Londres.
Quando vou a Londres hospedo-me em Battersea. Não raro imagino-o a percorrer as ruas de Chelsea, o seu bairro predilecto, no qual residiu até ao início da década de 70 e que está profusamente cartografado na sua poesia. Mudar-se-ia para 48A Primrose Mansions, na Prince of Wales Drive, que margina o Battersea Park, onde frequento amiúde. Certa noite fui lá em busca da sua memória. Em Julho passado ainda intentei uma visita ao Cemitério de Brompton onde ele está sepultado. Mas o calor impenitente que assolava Londres impediu-me essa romagem poética.
Das suas efemérides literárias destacaria: “Oferenda I” (1984), que inclui “77 Poemas” (1955), “Palácio” (1961), “Exílio” (1963), “Tauromagia” (1981) e “Cor: Azul”. Publicou “Elegias de Londres” (1987), “Meio-Dia” (1988) e “Oferenda II”, que acolhe “Opus 7” e “Mecânica Celeste”, para além de “Átrio” (1997” ou “Horizonte” (2001) ou ainda o póstumo “O Pajem Formidável dos Indícios” (2010).
Foi amigo do poeta brasileiro Manuel Bandeira, a quem visita no Brasil, entre 1959 e 1960, numa prolongada estada, que será preenchida com leituras e palestras. Conhece figuras estelares do modernismo brasileiro. Trava amizade com Oscar Niemeyer, este irá levá-lo a conhecer Brasília, então em fase de construção.
Da sua estada na América avulta a sua passagem por Austin, na Universidade do Texas, onde dá aulas, orienta cursos de Português, Francês e Literatura Comparada. Deixara para trás o trabalho precário de locutor e redactor da BBC. Convive à época com nomes como Octavio Paz, o poeta mexicano que seria laureado com o Nobel em 1990. Em 1969 surgem os seus “Selected Poems” nos Estados Unidos. Visita o México, que lhe inspira “Trinta e Quatro Poemas Mexicanos ou a Genealogia do Tempo”, obra inédita. Organiza um festival de poesia. Dele participam: Jorge Luis Borges, Czeslaw Milosz (outro Nobel, em 1980), Robert Duncan, Louis Zukofsky, David Wevill e Robert Creeley, entre outros.
Em 1972 vai leccionar para a Universidade de Boston. Foi, entre outros, professor de Jhumpa Lahiri, uma grande escritora americana, nascida em Londres, filha de indianos. Reencontra Octavio Paz, trava novas amizades: Jorge Guillén, Roman Jakobson, Elisabeth Bishop, entre tantas outras figuras da literatura americana. Sobretudo os da Costa Leste.
Em 1977 fez uma leitura pública da sua obra na Biblioteca do Congresso, em Washington, e gravou uma selecção de poemas para os arquivos sonoros desta instituição. É provavelmente o único poeta em língua portuguesa que mereceu até hoje esta distinção.
A sua ligação com a Universidade de Boston perdura até à sua aposentação em 1996, ano em que retorna, definitivamente, a Inglaterra. Os últimos livros que publica em vida são “Átrio” (1997) e “Horizonte” (2001).
Era um grande colecionador. Existe uma obra – “Colecção Alberto de Lacerda – Um Olhar”, com textos de Luís Amorim de Sousa, Jhumpa Lahiri, Mário Soares, John McEwen e Alfredo Caldeira. Lacerda, para além de ser grande nome da poesia em língua portuguesa, era um obstinado colecionador de livros, quadros, desenhos, discos, cartazes, fotografias. Em 1987, parte da sua colecção esteve exposta na Gulbenkian, em Lisboa, em “O Mundo de Um Poeta”. No livro “Apesar de Tudo – Em memória de Alberto de Lacerda”, Luís de Sousa Amorim relata os últimos dias e a morte do Poeta, bem como a saga kafkiana que se seguirá para a recuperação do seu vasto espólio. O testemunho de como venceu a burocracia das heranças e os obstáculos que a banca impunha é assombroso. Deve-se-lhe a recuperação do património e do nome de Alberto de Lacerda.
Alberto de Lacerda não terá voltado a visitar Moçambique depois da viagem que antecede o belíssimo livro evocativo “Exílio”. Mas o referencial poético moçambicano está sempre presente. Sobretudo o Norte de Moçambique. Na “Segunda Elegia” das suas belas e pungentes “Elegias de Londres” a infância e os seus territórios desse eterno encantamento estão cartografados de forma ineludível. E noutros versos e noutros poemas.
Rui Knopfli, no luminoso livro “Mangas Verdes com Sal” (1969), num dos seus mais belos poemas, cita-o como um dos seus predecessores: “Que subtraio de Alberto de Lacerda / e pilho em Herberto Helder e que / - quando lá chego e sempre que posso - / furto ao velho Camões.” Hoje é um poeta praticamente deslembrado. Há quatro anos foi publicada uma antologia de sua poesia (“Labareda”), em Portugal, com prefácio e organização de Luís Amorim de Sousa, seu indefectível amigo e legatário. Por sua iniciativa, tinha sido editado o livro póstumo “O Pajem Formidável dos Indícios”. Entre nós, o seu nome sempre escapou à quezilenta discussão da nacionalidade literária. Ainda bem. Nunca os ensimesmados esbirros literários se meteram com ele. Um poeta do seu quilate, um poeta do seu gabarito, não é de todo prescindível. Hoje, 27 de Agosto, passam 15 anos sobre a sua morte. Num remotíssimo breve poema intitulado “Vento” escreveu premonitoriamente: “Que a minha vida fosse para os humanos / como o vento que passa e que se esquece.” Está gravado na pedra do seu túmulo o poema de uma única palavra que também faz a súmula da sua vida e de como viu este mundo: “Paraíso”.
“O Regadio de Chókwè, assim como outros regadios de grande e pequena dimensão, devem merecer um debate público para o seu melhor aproveitamento. Ninguém se deve sentir mal por causa do debate e ninguém se deve sentir “dono” da verdade. Se a nossa agricultura está como está é porque nos escusamos a debatê-la e aqueles que, de uma forma ou de outra, detêm extensas áreas de terra continuam se julgando “donos” de Moçambique, não deve ser assim, não pode ser assim”.
AB
“O Regadio foi construído nos anos 50 do século XX e funcionou regularmente até 1974, com um sistema de ocupação da terra que assentava no colonato, que consistia nos grandes exploradores agrícolas. Em 1972, começou-se a construção da barragem de Massingir para mitigar os efeitos da seca depois da grande seca dos anos 60”
In ALTomaz
Pego emprestado o título desta reflexão do meu amigo Almeida Tomaz, primeiro, para concordar com tudo o que escreveu no seu artigo de opinião que, quanto a mim, constituem as etapas importantes pelas quais o regadio passou. Mas, feliz ou infelizmente, muitos produtores e/ou agricultores se “recusam” a debater este assunto de forma pública, por temer ferir suscetibilidades. Há caso de um operador que prometeu dar mais detalhes ao Tomaz, mas em “OFF”. Motivos disso, claramente, somente ele saberá!
A questão do Regadio de Chókwè não mudou somente em 1977, com a criação do CAIL – Complexo Agro-Industrial do Limpopo, mas muito antes, com o abandono dos colonos da zona e o cancelamento dos serviços públicos que eram oferecidos pelo Estado Colonial para aquela região agrícola. Refiro-me: 1) Controlo de pragas e doenças, através da pulverização periódica intra-domiciliária; 2) Serviço de controlo de doenças nos campos dos agricultores; 3) Difusão de informação periódica sobre os cuidados a terem as populações e os agricultores. Por exemplo, num determinado período, era proibido o consumo de pássaro morto, proibida a caça de pássaro de ratazana e outros animais que, para a população, constituíam um bem alimentar.
O sistema de regadio do colonato era feito na base de concreto aéreo, aquilo que localmente se designava de “marrondoro”. A água não se perdia por filtração no solo porque o agricultor abria quando dela precisasse para a sua rega. Eu vi isto na minha infância, devia ter por aí quatro a cinco anos. Vivi com os meus pais em Guija e os meus irmãos estudavam na actual Escola Básica Agrária de Chókwè. Na altura, ministrava-se artes e ofícios incluindo a agricultura. Será justo, deste modo, dizer-se que a estrutura produtiva não muda em 1977, mas um pouco antes, aliás, como toda a estrutura produtiva de Moçambique.
Depois de 1980, tive a felicidade de trabalhar com o CAIL porque representava a HORTOFRUTICOLA – Empresa Nacional de Comercialização; EE. Nessa qualidade, interagia com o próprio Director-Geral, Carlos Tembe, de que ganhei muita simpatia e respeito porque, nas suas qualificações e atendendo à sua ocupação, nos tempos que correm, seria normal mandar-me um funcionário qualquer para comigo trabalhar. Mas, felizmente, Carlos Tembe, que Deus o guarde, foi aquele dirigente que não tinha desprezo por ninguém. Muitas vezes ficava no gabinete dele até altas horas e depois mandava o motorista levar-me à acomodação.
O segundo momento, em que tive de lidar com o Regadio de Chókwè, da minha parte ainda como Técnico da Hortofruticola – Empresa Nacional de comercialização EE, foi quando a direcção da UDA - Unidade de Direcção Agrícola, sob direcção do Dr. João Mosca, decidiu estabelecer-se no Chókwè para melhor controlar as suas unidades económicas. Devo dizer que foi um período desafiante porque havia muito debate sobre o futuro da agricultura no País e deixa-me dizer que, no tempo do CAIL – Complexo Agro-Industrial do Limpopo, também tive a grata oportunidade de trabalhar com as Cooperativas Agrícolas. Aqui devo salientar, devido ao seu peso comercial, a Cooperativa Heróis Moçambicanos, cujo dirigente, salvo erro, era membro da Assembleia Popular.
Um dos desafios que se colocou ao Dr. João Mosca, espero que a memória não me falhe, foi o redimensionamento das Unidades produtivas. Devo dizer que, neste aspecto, o Dr. Mosca enfrentou uma grande resistência interna dos seus Diretores. Muitos não concordavam com o redimensionamento que tendia a reduzir as unidades produtivas para muito menos do que estava. Nesta altura, lembro-me bem, na Fábrica de Chouriços de Lionde, estava afecta a Dra. Maia de Bragança, de quem recebia autorização para a compra de alguns chouriços e outros fumados. Ai que tempos bons.
Meus amigos, antes destas “aventuras” todas e aqui para subescrever no espírito e na letra o que o Dr. Tomaz diz, fui afecto ao Ministério da Agricultura, no GODCA – Gabinete de Apoio e Desenvolvimento às Cooperativas Agrícolas. Nessa qualidade, fui apresentado ao CEA – Centro de Estudos Africanos da UEM – Universidade Eduardo Mondlane, eu e um colega meu de nome Luciano Fabião Massango, infelizmente, não está entre nós. Depois do GODCA, foi afecto à Província de Tete de onde nunca mais saiu e por lá ficou para sempre.
Ora, o GODCA – Gabinete de Organização e Desenvolvimento das Cooperativas Agrícolas, estava inspirado num programa desenvolvido pela República de Cuba, que tinha em vista a fixação das populações de origem montanhosa. O Governo de Fidel Castro, de repente, viu-se com o êxodo das populações das montanhas para as zonas baixas, o que constituía um perigo para a vida na montanha. Segundo esta teoria, as populações das planícies dificilmente poderiam se adaptar às montanhas, logo, era preciso conceber um programa que pudesse interessar aos jovens a fixar-se na montanha. Diz-se que o homem da montanha é muito mais forte e resistente que o da planície, mas não entrarei nesse debate agora.
Por isso, uma das coisas que enferma o desenvolvimento rural é: a) êxodo da população maioritariamente Jovem para as zonas urbanas; b) se este facto foi motivado pela guerra, convenhamos, hoje, trata-se de fracas políticas para o desenvolvimento rural; c) falta de infra-estruturas básicas nas zonas rurais ou pelo menos, nas consideradas de grande potencial agrícola, como sejam, ensino superior, Unidades produtivas, que não devem ser necessariamente agrícolas, mas de toda a cadeia de valor. Como consequência disso, temos: 1) Pobreza nas zonas rurais, de onde, no tempo colonial, sublinhe-se, provinha mais de 80% de produtos que alimentavam as famílias nas zonas urbanas; 2) Crescimento exponencial de pobreza urbana resultante desse êxodo. As pessoas que vêm às cidades engrossam, grosso modo, os desempregados e a delinquência para a sobrevivência; 3) Importação de produtos de todo o tipo, desde couve, repolho, tomate, alface entre outros.
Por tudo isto e mais que não se disse e não escrevi, penso que é altura de se pensar, de forma aberta e pública, nas razões do excesso de exportação e baixo nível de exportação. Hoje, no interesse dos produtores de commodities, a nossa balança de pagamento está a melhorar, mas não são esses os produtos que fazem a diferença. No ano passado, na negociação com os produtores de Algodão, o Ministro Celso Correia desafiou-os a dispensarem uma área para a produção de comida, mas creio que não basta esta vontade do Ministro. Todo o Governo deve estar comprometido com essas políticas através de programas concretos.
Adelino Buque
Com a sua ascensão ao poder, em 2017, João Lourenço tinha duas opções, a saber: manter o establishment criado e consolidado pelo seu antecessor, Eduardo dos Santos, durante os seus 38 anos na direcção dos destinos de Angola como uma nação (1979-2017); ou, criar uma ruptura com o neopatrimonialismo político e económico que caracterizou a governação do Zédu.
No seu longo percurso de governação, Eduardo dos Santos criou uma teia complexa de corrupção, envolvendo seus filhos, familiares, amigos, generais (antigos combatentes do governo e da UNITA, cooptados para não cogitar a possibilidade de regressar as matas e atrapalharem suas contas de manter-se no poder por longos anos).
José Eduardo dos Santos criou um Estado à sua imagem e semelhança (Estado Família) ou um verdadeiro regime neopatrimonialista, com seus filhos e várias figuras a si ligadas a controlarem sectores nevrálgicos na geração da riqueza e desenvolvimento da economia angolana. São os casos da Sociedade Nacional de Combustíveis de Angola (Sonangola) e Fundo Soberano, que eram as galinhas de ovos de ouro de Angola cuja sua direção máxima era assumida por Isabel e José Filimone dos Santos, respectivamente. Ainda na busca da consolidação de um "Estado Família" Zédu colocou, nas eleições de 2017, a sua filha, Welwitschea José dos Santos, mais conhecida por Tchizé dos Santos como deputada da Assembleia Nacional, onde assumiu o cargo de primeira vice-presidente do Grupo de Mulheres Parlamentares de Angola, do qual são membros todas as deputadas de todos os partidos políticos e coligação com assento no parlamento.
Uma das filhas do antigo homem mais forte de Angola, Isabel dos Santos, foi considerada a mulher mais rica e poderosa de África e, segundo a revista Forbes, a sua fortuna alcançara a marca dos mil milhões de dólares no início de 2013, passando a três mil milhões de dólares, em menos de um ano. Em 2016, ela assumiu a gestão da Sonangol. Isabel dos Santos tem participações na empresa de telecomunicações Unitel, na Santoro Finance, na Efacec Power Solutions e na rede de hipermercados Candando, entre outros. Como foi retro mencionado, o seu irmão, José Filimone dos Santos assumiu a gestão máxima do fundo soberano angolano, entre 2013 à 2017.
Enquanto por um lado, o neopatriminialismo político e económico criado por Eduardo dos Santos deve ser entendido como uma ordem política na qual quem rodeava o príncipe participava do processo de apropriação, por outro, destaca-se elementos que favoreciam a personalização da autoridade e a confusão entre espaço público e espaço privado. Deste modo, a governação de Zédu foi caracterizada pelas enormes dificuldades em compreender os seus limites de actuação e teve a máquina estatal como um instrumento ao serviço dos seus interesses privados e dos que por ele eram coopatados (clientes) e legitimados para fazer parte da máquina.
Perante o cenário acima descrito, Joao Lourenço tinha poucas opções: manter a estrutura corrupta e neopatrimonialista, criada pelo Zédu e que acomodava os apetites dos príncipes e princesas da antiga família real de angola e das elites ligadas ao "monarca", ou concertar o pais. Entretanto, não seria possível uma concertação sem dor. Aliás, numa das suas primeiras visitas presidências à Portugal, João Lourenço teria dito ter noção de que o verdadeiro combate à corrupção em Angola criaria choro e ranger de dentes. Foi nesta senda que teria afirmado que ao escolher o caminho de combate à corrupção sabia que estava a mexer com o ninho dos marimbondos ou vespas.
A coragem e assertividade de João Lourenço no que concerne ao combate à corrupção tem incomodado as elites económicas e politicas ligadas ao regime do Zédu, incluindo seus filhos que enriqueceram usando Estado como vaca leiteira. Na verdade, estes é que constituem o ninho dos marimbondos e que hoje uniram-se para destilar o seu veneno contra João Lourenço e combate-lo a todo custo.
Portanto, é nesta lógica que na corrida ao poder em curso, em Angola, Adalberto Costa Júnior aliou-se às elites ligadas aquele que transformou Angola e seus recursos num quintal privado, saqueando-os em benefício próprio e daqueles que lhe prestaram lealdade. Ao aceitar esta aliança, o Júnior tornou-se num instrumento ao serviço das antigas elites corruptas do MPLA, incluindo dos filhos de Zédu cuja justiça está ao seu encalço. Caso os angolanos decidam, amanhã (24 de Agosto), eleger ao Adalberto Costa Júnior, como seu Presidente, será, por um lado, o símbolo da vitória e o regresso ao poder da elite corrupta e sanguinária do MPLA que desiludiu e traiu as expectativas de angolanos, durante 4 décadas. E a derrota de João Lourenço será, por outro lado, o fim do progressista que ousou sonhar e lutar por uma Angola livre da corrupção e dos crimes do colarinho branco.