Já não sou propriamente um homem de euforias, as festas do Natal e do fim-de-ano não mudam muito a minha rotina. A cidade transforma-se, eu não. Há um entusiasmo na vizinhança, denunciado pela música alta demais, então tenho que fazer um esforço doloroso para suportar aquilo. As compras que vou fazer são as mesmas de sempre, poucas, ao limite das possibilidades. Mas vai ser difícil dormir com este barulho todo, que não me permite sequer assistir a televisão ou ouvir transquilamente a Rádio.
Se não fosse o David estaria lixado. Foi ele que ligou para o meu celular perguntando se queria dar uma volta, eu disse que sim, assim estaria livre deste inferno. David é um solitário como eu. Detesta barulho, nem que seja em festa. Cultiva o silêncio no bairro de Nhapossa onde vive numa casa sem muro de vedação, para quê o muro se eu sou um homem livre! Nem grades tem nas portas e janelas, não preciso!
Então veio no seu carro, um Mitsubichi Pajero velhaco, porém em condições de nos levar para onde queremos ir nesta noite de quarto crescente. Olhou para mim e disse, estás jovial! Respondi com um sorriso, ao mesmo tempo que lhe perguntava sobre a trajectória que iamos seguir. David não tinha mapa traçado, eu também não. O que queriamos era encontrar um lugar tranquilo, sem música e esse lugar não sabemos onde está.
Saímos da Fonte Azul e andamos ao calha. Passamos pela Ponte Cais - uma obra inquebrantável - cujas lâmpadas de iluminação dependuradas nos postes, ao longo de toda a plataforma, tornam o lugar muito lindo à noite, sobretudo quando é contemplado a partir da zona da prancha. E hoje não está ninguém neste sítio que se tornou, durante tempos e tempos, um ponto importante de encontro da juventude, e o David disse, vamos ficar aqui um tempinho.
Sentamo-nos no passeio com as pernas suspensas para a água em maré cheia que se esbate na barreira, movendo-as em relaxamento como quatro badalos que, mesmo cansados, ainda têm duas almas fortes que as sustentam. Parecemos fedelhos, mas issos é mentira. As memórias que alimentam a nossa conversa não nos deixam enganar a ninguém, nem a nós própriios. Somos felizes assim, longe das nossas namoradas que decidiram passar com as suas famílias, e nós sozinhos.
A maré é calma, não se ouve nenhum som daqui onde estamos, a não ser o cantar do próprio silêncio e, de longe, o leve roncar dos motores fora-de-bordo das barcaças que vão e vêm com passageiros indo ao encontro dos seus sonhos e frustrações, cada um com o seu destino, como nós que estamos aqui, ruminando alegrias da infância e da adolescência e da juventude. Ninguém nos dá cavaco. Temos um catalisador no coleman que alimenta os nossos vaipes. Cada vez que vai um copo, vamos ficando mais lúcidos, e assim amanheceu sem darmos conta, felizes da vida.
São cinco horas da manhã e já não dá para mais. Voltamos para casa animados e satisfeitos pela decisão que tomamos de nos isolar, e no dia 25 já não houve o barulho do dia anterior, de modo que deu para repousar e agradecer a Deus por nos ter protegido.
A eleição da figura do ano, no nosso País, não tem um padrão definido claro, através do qual, as pessoas deveriam procurar encaixar a figura proposta e, por via disso, oferecer espaço de debate público e criar-se um consenso. Cada organização escolhe a figura e justifica a sua escolha e assim vamos andando com figuras da nossa Pérola do Índico!
Devo dizer que não faz parte das minhas reflexões propor figura do ano e tão pouco discutir essa figura proposta seja por quem for. No entanto, este ano, abro excepção para propor como figura do ano o Senhor Juiz Dr. Efigénio Baptista, Juiz das “dívidas ocultas” que esteve em foco ao nível do País e do mundo. Não creio que antes deste caso fosse tão conhecido e badalado o Juiz Efigénio Baptista, mas, graças a este julgamento, qualquer cidadão nacional sabe que existe um cidadão de nome Efigénio Baptista!
A minha escolha não visa avaliar o seu desempenho como Juiz, não tenho essa capacidade e tão pouco me proponho a tão hercúlea tarefa, mas tão somente falo de um homem cujo nome saiu do anonimato e passou a ser parte do quotidiano dos moçambicanos e não só. Hoje, arrisco-me a dizer que o Juiz Efigénio Baptista é tão popular quanto os políticos, músicos e outras figuras que estão na boca do povo todos os dias.
Como disse, a escolha pessoal da figura do ano tem que ver com o facto de, na minha opinião, até a altura que ficou com o caso das “dívidas ocultas” não era tão conhecido, mas, o efeito dos órgãos de comunicação social, aliado ao interesse que o caso despertou no comum cidadão, este passou a ser parte dos debates populares em tudo quanto é canto deste Moçambique e não só.
Nesta classe de profissionais, de quando em vez emergem pessoas que se tornam figuras populares e ascendem a cargos de maior visibilidade, graças a causas que julgam. Foi assim com o Juiz Augusto Paulino que julgou o caso do assassinato do Carlos Cardoso. Depois deste caso, o Juiz Augusto Paulino ascendeu a Procurador Geral da República de Moçambique. Não estou a dizer que a ascensão seja automática, tudo depende da forma como a classe política for a avaliar o seu desempenho no caso. Se concluírem que foi de grande competência, naturalmente ascende e se concluírem que não foi competente, provavelmente volte à sua “vida pacata” de um profissional como outro qualquer.
Aqui, o caro amigo pode se questionar, se é preciso agradar os políticos para se ser nomeado para cargos superiores. O agradar a que me refiro não tem que ver com a satisfação de capricho de quem quer que seja, mas com a avaliação objectiva do sucedido. Lembrar que a nomeação de Procurador Geral da República, do Presidente do Tribunal Supremo, do Administrativo e outros é da competência do Chefe de Estado e não resulta da escolha da classe através dos seus pares e como é óbvio o Chefe de Estado é político.
Bom, aqui fica a minha opinião sobre a figura do ano de 2022. Repito, a minha escolha não tem que ver com a avaliação do desempenho do Juiz, não tem que ver com eu gostar dele ou não, tem sim que ver com o grau de popularidade que teve durante o ano de 2022, popularidade ganha no desempenho da sua profissão que, nem ele próprio, acredito, imaginava que pudesse estar nesse patamar de popularidade e, o mais importante, quer me parecer que a popularidade não o envaideceu. Pronto, para mim Efigénio Baptista é a figura do ano 2022!
Adelino Buque
"O balanço é positivo porque existe vontade de busca de uma paz definitiva. Não é um processo fácil. O processo tem muitos aspectos complexos e ambas as partes devem ser ouvidas, mas depois de três anos de desmobilização, estamos felizes e as pessoas que trabalham neste processo estão orgulhosas do resultado".
Mirko Manzoni, in Carta de Moçambique
O Acordo de Paz e Reconciliação Nacional de Maputo foi assinado em Agosto de 2019 pelo Chefe de Estado moçambicano, Filipe Nyusi, e pelo presidente da Renamo, Ossufo Momade, prevendo, entre outros aspectos, o Desarmamento, Desmobilização e Reintegração (DDR) do braço armado do principal partido da oposição, a Renamo, num total de 5221 homens que ficaram por desmobilizar no âmbito do Acordo Geral de Paz, assinado em Roma, a 04 de Outubro de 1992.
O anúncio do encerramento da última base da Guerrilha da Renamo deve encher de orgulho a sociedade moçambicana e os parceiros de cooperação internacional, porquanto, mostra que os moçambicanos têm a vontade de viver em Paz. A desmobilização, desarmamento e reintegração de 5.221 homens e mulheres que militaram na guerrilha da Renamo não é uma tarefa fácil, foi um grande desafio. Digo isso porque, a partir de 19 de Dezembro de 2022, Moçambique não conta mais com um partido armado com assento parlamentar!
Neste quesito, sem menosprezar os diferentes intervenientes no processo, devemos, como moçambicanos, dizer obrigado ao Presidente da República Filipe Jacinto Nyusi e ao Presidente da Renamo, Ossufo Momade, por este passo gigantesco que, acredito, os seus antecessores trabalharam para esse fim. Simplesmente, por várias razões não lograram chegar ao fim, mas vão, igualmente, agradecimentos ao Presidente Joaquim Chissano e ao Presidente Armando Guebuza pelo feito de 19 de Dezembro de 2022. Não menos importante, um especial, a título Póstumo ao Líder da Renamo Afonso Macacho Marceta Dhlakama.
Chegados aqui, é importante recordar que os parceiros de cooperação tiveram uma palavra sobre este processo e espero, muito sinceramente, que cumpram as promessas feitas aquando da assinatura do Acordo de Paz e Reconciliação Nacional de Maputo. Digo isto porque tem sido normal, nos últimos tempos, a comunidade internacional fazer promessas e não cumpri-las, parcial ou integralmente. A questão da Paz é bastante sensível e não gostaríamos de voltar à estaca ZERO!
Felicitar os moçambicanos por essa capacidade de perdoar e integrar esses guerrilheiros residuais da Renamo, não é fácil para quem sofreu várias sevícias com os guerrilheiros e do nada reconciliar-se com o seu detractor. Se a reconciliação deve vir de ambos os lados, é importante dizer que este aspecto não pode ser descurado e os homens da Renamo devem saber estar nessas povoações onde estão inseridos.
Mais, existem cidadãos nacionais que se tornaram pobres devido a esta guerra “estúpida”, pessoas que dormiram em casas de alvenaria e acordaram por baixo de cinzas, pessoas que dormiram empresárias com meios de transportes, com loja e ou outro tipo de negócio e acordaram pura e simplesmente pobres e devedores da Banca Comercial e o Governo não moveu “palha” em seu socorro, estão, até hoje, a pagar por coisas que já não têm e nem têm perspectivas de obtê-las!
Por isso, o dia 19 de Dezembro de 2022, com o encerramento da última base da Renamo na Gorongosa, deve servir de reflexão para todos os moçambicanos sobre o que queremos hoje, amanhã e a longo prazo. Não há vencedores nesta guerra, mas, há gente que empobreceu e isso não é ficção, é realidade, mas, comemoremos o fim definitivo das hostilidades militares entre moçambicanos e que o dia 19 de Dezembro seja perpetuado como de reconciliação e Paz!
Adelino Buque
O fechar das cortinas de mais um ano, serve para uma breve radiografia de mais 365 dias de um país na sua longa marcha.
Iniciamos o ano com mensagens de esperança renovada que já nos é característica enquanto povo. Expectativas, altas ou baixas, vão variando de moçambicano para moçambicano em função das suas experiências e vivencias. As nossas dúvidas foram se transforando em nossas dívidas, e as nossas incertezas ficaram mais certas.
O povo forte, resiliente e muito lutador está em busca de forças para manter sua fé (in) abalável e sua crença quase que ortodoxa de que o futuro melhor está por vir.
O custo de vida tem estado a disparar de forma preocupante; a condição de vida deteriora-se dia após dia desafiando diariamente o povo da pátria amada; a condição social e económica das famílias está a degradar-se; as desigualdades e os focos de pobreza urbana e rural alastraram.
O restart ainda não esta programado e, não é possível ainda. Como povo estamos em busca de uma reinvenção e de um redescobrimento. Redescobrir forças para enfrentar a sagacidade desta selva que faz apelo a teoria da evolução das espécies de Charles Darwin. No actual contexto, parar pode ser sinonimo de desaparecimento, e desaparecimento pode significar o parar do pulsar da moçambicanidade.
As liberdades fundamentais vão a reboque, o espaço cívico vai regredindo e as marchas de repudio, sejam pacificas ou não, são proibidas e/ou reprimidas pelas forças policiais – Temos até medo de pedir respeito pelo direito de podermos ser cidadãos. Porque a força policial intimida, reprime e asfixia as liberdades deste povo já sofrido.
A violência estrutural que o povo (considerado patrão) sofre transcende o chamboco da polícia e o gás lacrimogénio - está na subida do preço do pão, do transporte e dos produtos de primeira necessidade. Está na impossibilidade de prover bens básicos ao povo: uma refeição condigna, acesso a educação, a saúde, a água, ao saneamento digno e a livre circulação.
A mamana do dumba nengue queima de sol a sol para garantir seu sustento e dos seus. Ela é a imagem da resiliência da nossa mulher moçambicana – volta e meia aquela mesma mamana vê suas bacias de chamussas, mahanti e badjias ou até da sua peneira com amendoim torrado tomada pelos agentes da polícia em nome da postura urbana do município.
A nossa educação esta mergulhada numa crise alarmante e que exige uma reflexão e accão profunda, mas vamos lançando esse sujo para debaixo do tapete. O escândalo dos manuais são apenas mais uma gota grossa neste balde que se faz transbordar e que pode inundar o futuro do país com quadros com formação duvidosa. Negar boa educação é negar que sejamos um país próspero e que possamos sonhar com um amanhã risonho para o nosso belo e vasto país.
Cabo Delgado chora desde 2017, e nem parece que seja parte de Moçambique pelo desdém que recebe por parte de alguns. Vários distritos, localidades e vilas da terceira maior baía do mundo, vão queimando ao sabor das investidas dos insurgentes, e os bombeiros vieram de Kigali e de alguns países da SADC para conter a queima da insurgência. A insurgência ensaiou um alastramento para as províncias circunvizinhas e, tentou espreitar as terras do Lago e da Reserva do Niassa e chegou a entrar em Nampula.
Os raptos, começaram como algo pequeno, de fácil resolução e, tornaram-se uma prática grande, extremamente lucrativa, e com selo de cumplicidade e cobertura institucional. Quem põe guiso ao gato? Com a naturalidade que acontecem, sugere uma realização cinematográfica de Hollywood com Bollywood a mistura, mas são uma realidade bastante coordenada e sincronizada.
A pandemia da COVID19, que nos mergulhou em restrições e estados de emergência e de calamidade pública, parece ter abrandado. Este abrandamento permitiu que o antigo normal voltasse a ocupar o seu lugar empurrando o apelidado “novo normal” – voltaram os beijos, abraços, apertos de mão e convívios à nossa maneira. O tecido social e económico vai tentando se recuperar com maior ou menor dificuldade. E como a COVID19 foi oportunidade para alguns edificarem seus impérios com fundos públicos, em breve teremos a actualização dos novos ricos de Moçambique.
O gás do Rovuma já jorra – A Plataforma flutuante chegou ao mar moçambicano vinda das águas asiáticas e já opera. Há quem a considere a nossa bandeira energética depois da imponente e majestosa Cahora Bassa. Estamos na jogatana dos hidrocarbonetos e conquistamos um lugar na geografia e economia política dos recursos naturais. O nosso grande desafio é tornar esse ganho sustentável e diversificar para que possamos ter menos dependência no futuro.
A eleição de Moçambique para Membro Não Permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas foi um momento de exaltação da nossa diplomacia e, há quem considere um ganho tremendo para o país – essas são palavras dos entendidos arautos da diplomacia. Eu como leigo vou dedicar um tempo e estudar um pouco mais sobre as vantagens desta eleição.
O Programa Sustenta promete agitar o polo de desenvolvimento e dinamizar o processo de integração entre o familiar e o industrial. Os campos verdejantes são uma realidade e espera-se que a produção possa suprir paulatinamente as necessidades da população que cresce a olhos vistos. Mas não basta produzir se a cadeia de produção não incluir os mercados e não desenharmos políticas e medidas protecionistas.
Os buracos do nosso país receberam nova nomenclatura: sugeriu-se que os buracos das nossas estradas recebessem nomes de membros do maior partido da oposição e que famosa lixeira do Hulene recebesse novo nome à moda das picardias entre a Renamo e a Frelimo.
A FACIM continua a ser a super feira de Maputo e cada vez mais concorrida. Os machos de Maputo mostram sua pujança financeira e sua tentam disfarçar a sua suposta fraca condição viril, comprando tudo o que os stands de Manica e Sofala oferecem como solução - (os pós e raízes milagrosas vão fazendo história e batendo recordes de venda a cada edição). Daqui a algum tempo iremos confundir a tradicional FACIM com uma feira de afrodisíacos.
Realizou-se, com muita pompa o Congresso do glorioso partido e, diga-se um, dos mais agitados dos últimos tempos - numa atmosfera de muita festa, trajes à rigor com o vermelho e o branco a dominarem a indumentária dos camaradas; fotos e estampas que sugeriam uma a apologia ao empregado do povo e, muito suspense e expectativas sobre o que se passava lá dentro. Notas de destaque foram a renuncia da Mamã Graça, ascensão meteórica de novos e queda frustrante de antigos. A renovação e arrumação da casa esta em curso.
A Tabela Salarial Única (TSU), que a meu ver é a expressão do ano, veio como uma solução para uniformização dos salários da função pública, mas tem mostrado incongruências e chega a confundir até os próprios proponentes. Muita expectativa se criou em torno dela, e muito se disse sobre as melhorias que ela traria aos funcionários públicos. Porém, a realidade na sua implementação mostrou gralhas e incongruências de palmatória. Mais do que isso causou descontentamento e frustração no seio da classe de funcionários a vários níveis.
A TSU veio mostrar que quando o assunto é dinheiro até os manos do MEF saem a rua para mostrar descontentamento – vestiram a pele de povo e alguns foram parar na procuradoria. Os médicos se mantêm firmes na sua corajosa atitude de paralisação parcial dos serviços básicos; Os professores até tentaram mas terminaram a beber água e a fazer manifestações isoladas com menor impacto; Os juízes e os magistrados sentiram-se amuados e desrespeitados por serem órgãos de soberania sem o devido respeito e tratamento que se espera diferenciado de outros sectores vão se esgrimindo numa surdina negocial.
O julgamento das chamadas dívidas ocultas – um enredo sem igual com um início cáustico e promissor, e um fim considerado decepcionante para muitos dos que esperavam penas exemplares. A tenda montada na BO viu o melhor e o pior durante meses de uma maratona bastante desgastante. Tubarões reduzidos a peixes de aquário à peixes que almejam ser tubarões foram vistos neste enredo que quase paralisou o país. A façanha serviu para assistirmos a nata de advogados a desfilar sua classe, seu linguajar jurídico, suas lutas internas e suas fragilidades epistemológicas e processuais. Serviu também para expor e oferecer gratuitamente a segurança e inteligência do estado, seu funcionamento e sua informação classificada a todos interessados em aprender sobre alguns do modus operandi da segurança. A valoração do desfecho da sentença, deixo a cargo de cada moçambicano.
A minha retrospectiva não apresenta o método e o rigor sequencial que se pede e, pode ser algo atabalhoado. Mas não poderia deixar de trazer um grande momento desportivo que foram as medalhas internacionais que as nossas pugilistas (Alcinda Panguane e Rady Gramane) trouxeram ao país, mostrando que é possível com o querer e vontade institucional.
A província de Inhambane, distrito de Vilanculos acolheu o africano de futebol de praia. Uma festa de exaltação da moçambicanidade e exibição cultural, gastronómica, turística e muito mais – com um pontapé de saída magistral e emblemático.
Não saberei adjectivar este 2022. E para não usurpar as funções do mais Alto Magistrado da Nação, irei esperar pelo informe sobre o Estado Geral da Nação que será lido em breve.
Feliz 2023. A Luta Continua
A minha pátria é outra e ela ainda está por nascer. Mia Couto - (in " Mulheres de Cinza ")
Por: Hélio Guiliche
“Na manhã de 16 de Dezembro de 1972, tropas coloniais portuguesas reuniram os habitantes de Wiriamu, incluindo mulheres e crianças, no largo principal da povoação e ordenaram-lhes que batessem palmas que cantassem para se despedirem da vida. Em seguida, os soldados abriram fogo. Os que escaparam às balas foram mortos por granadas. Incitados pelo brado ´Matem-nos a todos´, os militares levaram o morticínio a quatro povoações vizinhas ao longo do Rio Zambeze, onde o território de Moçambique se estende para o Zimbabwe (Rodésia, à data dos acontecimentos), a Zâmbia e o Malawi – uma região designada pelos missionários católicos como ´a terra esquecida por Deus`. No final do dia, perto de 400 aldeãos tinham sido mortos, e os seus corpos eram lentamente consumidos pelas chamas em piras funerárias ateadas pelos soldados com o capim que cobria as palhotas” – esta descrição é feita pelo jornalista britânico Peter Pringle no prefácio ao magistral livro “O Massacre Português de Wiriamu, Moçambique 1972” do moçambicano Mustafah Dhada.
O dia 16 de dezembro de 1972, passam hoje 50 anos, calhou num sábado e a população de Wiriamu preparava-se para agradecer aos deuses pelos dias de chuva que tivera. Os dias tinham sido de fermentação de pombe e cachassu. A chuva era uma bênção que se conquistava muitas vezes à custa de mphondoro. Na manhã desse sábado longínquo, a celebração não aconteceu em Wiriamu. Sobre aquele lugar caiu uma chuva de balas, que estão na origem de um dos mais ignominiosos actos promovidos pelos portugueses e que marcam, de forma sangrenta, a história da sua colonização em Moçambique. Peter Pringle, um dos jornalistas britânicos que conseguiu ludibriar as autoridades portuguesas conseguiria confirmar as denúncias que tinham sido despoletadas no jornal “London Times” pelos Padres de Burgos que corajosamente fizeram chegar ao Padre Adrian Hastings esta página ominosa da história.
A 10 de Julho de 1973, o jornal britânico “London Times” publicou a história do massacre de Wiriamu, facto que seria corroborado pelo Insight Team do “Sunday Times”, dias depois, numa extensa cobertura deste infausto acontecimento. Portugal procurou, por todos os meios, desmentir os factos e desacreditar aqueles que promoviam o conhecimento desta macabra verdade. Usaram os mais hediondos argumentos: conspiração internacional, Wiriamu não existia, invenção dos padres, ficção. Marcello Caetano estava de visita a Londres para a comemoração dos 600 anos da aliança Luso-Britânica. Para além dos jornais e das notícias sobre a brutalidade do regime que representava, tinha manifestações nas ruas de Londres.
A história chegara a Londres por intermédio dos Padres de Burgos que haviam promovido a criminação. A intervenção de Adrian Hastings é decisiva. Os documentos tinham saído clandestinamente de Moçambique para Espanha pela mão de Miguel Buendia. Mas a história vem de longe. Tete fez parte da diocese da Beira até 1962. O Bispo D. Sorares de Resende foi quem convidou as sociedades missionárias dos Combonianos, dos Sagrados Corações de Jesus e Marias, dos Padres Brancos e da Sociedade de São Francisco Xavier (Burgos) para trabalharem na sua diocese onde havia, manifestantemente, falta de padres. A Igreja iria tornar-se num agente transformador da sociedade, sobretudo através da acção das ordens dos Padres de Burgos e outros, na diocese de Tete, que então se autonomiza. A açcão deles, sobretudo a sua formação de cidadãos moçambicanos, é crucial. Muitos deles foram presos, outros tantos interrogados. Os padres, afirmando-se equidistantes tanto das forças portuguesas como das nacionalistas, colaboravam, inequivocamente, com os libertadores. E tiveram uma postura activa na denúncia das atrocidades praticadas contra as populações, contra os moçambicanos.
Mustafah Dhada: “O papel da Igreja no massacre de Wiriamu não é singular, nem simples. Uma das razões que o explicam prende-se com o surgimento de uma liderança senciente disposta a deixar-se moldar pelo ardor da experiência vivida. Soares de Resende, o novo bispo, mudou o rumo da igreja de Tete. Felizmente, a escassez de sacerdotes em Portugal permitiu-lhe selecionar padres que considerava adequados às necessidades de Tete sob o seu episcopado. Daqui resultou um grupo de sacerdotes “importados” extremamente diversificado e ecléctico, que assumiu as responsabilidades inerentes à sua missão com grande seriedade e acolheu uma vida de isolamento nos lugares mais recônditos de Tete como um trunfo para a construção de uma comunidade de crentes socialmente activa. Os Padres Brancos e os Padres de Burgos notabilizaram-se neste tipo de trabalho: os primeiros, graças á sua experiência sacerdotal em África, e os segundos, devido à sua formação e experiência com paróquias assoladas pela pobreza em Espanha franquista e pelas suas personalidades individuais”.
A frente da denúncia, que irá provocar um terramoto, que inclui uma apresentação nas Nações Unidas, foi assumida por Adrian Hastings. O seu relato foi baseado nas denúncias dos padres que estavam no terreno e será corroborado por vários jornalistas, entre os quais Peter Pringle. Esta história não é apenas importante pelo embaraço que criou a Marcello Caetano e ao regime que liderava, ao expor a sua natureza e desumanidade, mas porque estará na origem, a par de outros acontecimentos, do colapso do mesmo, o que acontece a 25 de Abril de 1974, menos de 1 anos depois de ser despoletada. A acção destes padres, que eram uma verdadeira barreira de defesa das populações e que apoiavam a luta pela nossa independência, não é valorizado nem devidamente reconhecido. A história oficial se não a rasura, não a sublinha.
O relatório sobre o massacre de Wiriamu foi inicialmente redigido pelo padre Domingos Ferrão, o primeiro padre negro da diocese de Tete. Os Padres de Burgos protegeram-no dado que ele tinha sido preso anteriormente. Os dados mais importantes destes acontecimentos são conhecidos desde 1972: o número de mortos, o local, as causas – o facto de ser um corredor da frente nacionalista na sua marcha para sul, frente Manica Sofala – e aqueles que o perpetraram.
Vicente Berenguer: “Após o massacre, eu, juntamente com o padre Ferrão e padre Sangalo, fizemos um relatório que foi publicado pelo padre Hastings na Inglaterra. Isto criou uma polêmica, mas Marcello Caetano mesmo assim desmentiu os factos. (...) Viajámos para vários países europeus para expor as atrocidades cometidas pelo regime colonial contra o§ povo moçambicano”.
À distância destes 50 anos, há lugar para que reconheçamos o papel daqueles que assumiram corajosamente o papel da denúncia – redigiram o relatório, levaram-no daqui para Espanha – foi Miguel Buendia que corajosamente o fez -, conseguiram que um jornal britânico desse primeira página e tornaram insustentável a posição e o regime fascista português. Estes padres não só assumiram este importante papel de denúncia das atrocidades, mas deram um contributo decisivo na libertação de Moçambique.
Mustafah Dhada: “O padre Catellá serviu-se engenhosamente dos dois protagonistas do conflito para servir a sua Igreja. Enrique Ferrando recorreu à sua escrita para registar situações de violência em massa e, ao mesmo tempo, defender os direitos dos mais pobres. Alfonso Valverde de León não descansou enquanto não expôs o que considerava ser a verdade nua e crua. Miguel Buendia tinha a habilidade de convencer os colegas mais indecisos a tomarem uma posição apresentando os argumentos adequados com ardor e paixão. Dividido entre o medo e a fé, o padre Ferrão registou o número de mortos na sua lista de vítimas, enfrentando o risco de prisão. Entre eles estava também o padre Berenguer. Os seus truques de magia conquistaram a lealdade dos rapazes mais novos da sua paróquia. A sua calma aristocrática permitiu preservar a consistência da história apesar das tentativas dos detractores para ferir a sua veracidade. O mais excêntrico de todos talvez fosse o padre Sangalo, filho de um toureiro e um ás ao volante de uma Suzuki. O seu dom para travar amizade com representantes da autoridade em pleno território inimigo salvou a sua vida e a de uma testemunha, o que acabou por inverter o rumo da contranarrativa promovida por Portugal.”
Mustafah Dhada nasceu perto do triângulo de Wiriamu onde aconteceu este massacre que este estuda e divulga, com uma notável pesquisa de fontes orais, primárias e documentais, entrevistas. “O Massacre Português de Wiriamu, Moçambique 1972” é uma obra importantíssima para a demanda da história deste massacre e uma denúncia documentadíssima do mesmo. Não sei se a nossa academia a estuda ou promove. Não fosse a nossa congénita distração, o moçambicano Dhada teria sido convidado para falar sobre esta sua investigação e sobre esse seu notável trabalho, o mais importante desenvolvido sobre este tema, aquando desta efeméride. Mais: as instituições que deviam cuidar da nossa memória estariam obrigadas a promover, sobre esta mesma efeméride, iniciativas que a levassem ao conhecimento sobretudo dos mais jovens. Mas ficamo-nos pelo circunstancial e pela instrumentalização política da história. A história não se escreve com slogans ufanos. A história é saber contar os episódios da vida de um povo e este é, indubitavelmente, um deles.
A história oficial ou oficiosa é lacunar e não conta as histórias que fazem a História e oculta o nome de protagonistas importantes. Aí estão e alguns deles vivos. O país deve-lhes um tributo. A todos eles. De Ferrão a Hastings, de Sangalo a Berenguer ou Buendia, entre tantos outros. Hoje passam 50 anos, teria sido uma ocasião soberana para o país lembrar-se destes homens altruístas, generosos, magnânimos, corajosos, que ajudaram a denunciar um regime decrépito - a sua brutalidade, a sua insanidade, a sua desumanidade - e tiveram um papel libertador no futuro do nosso país. Não tenho notícia de que alguma vez estas figuras tenham merecido um reconhecimento oficial, uma homenagem nacional, o que nos honraria a todos como moçambicanos.
Desembarcamos por volta das 13 na ponte-cais de Inhambane, vindos de Linga-Linga, lugar paradisíaco para onde tenho ido nos últimos anos com alguma regularidade, depois de ter sido convidado pela primeira vez em 2019 por Peter Vurukudzu, um zimbabweano excêntrico capaz de arder à mínima faúlha. Hospedo – sempre que vou – em casa dele, localizada num outeiro, isolada das demais residências que não são tantas. É uma habitação ampla, coberta de colmo maciço com paredes de tijolo e, assim com este material, transmite para o seu interior um ambiente fresco e agradável.
É um privilégio estar na casa de Peter Vurukudzu, de onde se pode contemplar eternamente o Índico, é um regalo. Daqui ainda se ouve o esbater das ondas na areia da costa, e à noite, o hulular do mar é um afago para o corpo e a mente e a alma. Tenho saudades de voltar sempre, e Vurukudzu já me disse, venha quando quiseres, a casa é tua.
Como estava dizendo, desembarcamos por volta das 13 na ponte-cais de Inhambane, mas quem vinha conversando comigo ao longo da viagem é Catidza Maguirimussa, mulher de palavras austeras, livre de bater na minha mão em cada riso, como se já nos conhecessemos de outros caminhos. Estamos sentados lado a lado, enconstados um ao outro de tal modo que o roçagar das nossas roupas e um pouco dos nossos corpos, perturbavam-me e fiquei com a sensação de que ela também sentia-se mexida.
Era eu quem mais falava e Catidza ouvia-me com atenção. Fazia-me perguntas por vezes acentuadas e eu respondia com hosnestidade, sem o receio de que não conheço esta mulher que se desabrocha para mim sem nenhum complexo de me tocar no corpo e bater a minha mão em cada riso. Preferi acreditar na sua sinceridade, no seu fascínio por mim, um homem que ela nem conhece.
Descemos e começou a chover, se calhar para gáudio de Catidza, que abriu o enorme guarda-chuvas cobrindo-nos aos dois, de tal modo que os nossos corpos vão continuar em contacto, num encosto agora mais assustador porque ela abraçou-me, tornando mais flexível a mobilidade, e naquelas condições perdi a capacidade de arvorar qualquer palavra, nem que fosse para dizer idiotices. Foi ela então que se adiantou, dizendo aquilo que tenho dito em muitos momentos: “adoro a chuva”!
Estamos quase no fim do tabuleiro da ponte, que na verdade é onde ela começa, as pontes começam de fora para dentro. Era necessário que dissesse alguma coisa, mesmo sabendo que o meu quoficiente de inteligência é sumário, então repeiti o que Catidza tinha dito : “eu também adoro a chuva”!
Chove chuva fininha sem molhar, mesmo assim, os nossos corpos que se unem em marcha desinteressada. Senti que já não éramos nós que íamos, éramos levados por força desconhecida. Fomos conduzidos sem resistir ou tentar fazê-lo, à varanda da loja do Damodar Jethá “Jethá da esquina”, que seria afinal o ponto da nossa bifurcação.
- Muito obrigado pela companhia, Catidza, obrigado por me teres protegido da chuva.
Ela estendeu-me a mão e disse, leva-o para te lembrares de mim, um dia a gente se encontra por aí.
Peguei no guarda-chuva, abraçamo-nos profundamente e depois fiquei ali a assistir - depois de me deixar com o seu cartão de visitas - a mulher que descia como um anjo até perder-se no desvio da antiga Sapataria Bernardo. Chama-se Catidza Maguirimussa.