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terça-feira, 19 janeiro 2021 09:44

Mário Ferro

Um dia, tinha eu 20 anos, a idade da minha filha Mayisha hoje, desci a pé pela Vladimir Lenine abaixo e fui ter ao mítico jornal Notícias, na vetusta Joaquim Lapa. Pedi para falar com o Chefe de Redacção e este recebeu-me de imediato. Ouviu-me com parcimónia. Creio, a esta distância, que fui bastante ousado: propunha-me a ser colunista do jornal. Levava comigo duas laudas.

 

Mário Ferro assentiu e deu-me uma coluna. Advertiu-me que seria na página 3. Ele cogitava abrir portas para jovens escritores e fê-lo com denodo. Na última página pontificam os nomes estelares, entre eles o Albino Magaia, o Leite de Vasconcelos ou o Mia Couto.

 

Aprendi a batucar prosas literárias com velhos mestres brasileiros. Carlos Drummond de Andrade, antes de todos. O seu livro Fala, Amendoeira serviu-me de viático para a jornada. Lia-o com método. Lia outros tantos cronistas: Rubem Braga, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. Quase todos mineiros, à excepção do velho Braga. Outro grande mestre no género foi o meu amigo Baptista-Bastos. Provavelmente, o maior cronista português do século passado. O livro Cidade Diária foi um verdadeiro manual.

 

Aqueles dias aturdidos, aqueles meses longos, aqueles anos intermináveis, vívidos e sofridos. O quotidiano, o nosso quotidiano, enchia-nos de vozes que habitavam os nossos textos. Era um quotidiano duro, difícil, dias do fim de um tempo, dias do fim de uma era. Mas havia uma coisa que não vejo hoje: humanismo. Éramos solidários, próximos, humanos.

 

Porfiávamos, naqueles textos breves e urgentes, a nossa esperança. Escrever, naqueles dias, por aqueles dias, era uma espécie de um sobressalto de quem apostava no futuro. Eram dias duros, disse-o. Os de hoje não são menos. As nossas crónicas, as nossas histórias, recortavam-se nessa gente anónima, viviam dessas vozes sussurradas, de gente humilde.

 

Vivíamos, escrevíamos, amávamos sem um manual de sobrevivência. Contudo, éramos lidos. Hoje quem nos lê? Com o advento da televisão e as telenovelas, primeiro, e, depois, com a revolução dos telemóveis e de seus avatares, a leitura tornou-se obsoleta. A esta distância, digo, éramos felizes e não sabíamos. Que belos e pungentes tempos!

 

Devo ao Mário Ferro a realização daquele sonho de Escrevedor de Destinos. Num livro que leva esse título, redigi um texto em sua homenagem. Num país onde praticamos o descaso em relacção aos nossos melhores, quis lembrar-me dele em vida. A omissão, o olvido e a desmemória são práticas comuns na Pátria. Cá por mim, curvo-me ao Mário Ferro. Obrigado, meu velho Mestre, por teres acolhido a minha canhestra “tabuleta da oficina”, que saía justamente às terças-feiras, como hoje, no dia em que te lembro e exulto, comovidamente, a tua memória.

 

Nelson Saúte

A organização do poder na e da sociedade política (constituição dos órgãos de poder), a determinação dos mecanismos de decisão e fiscalização, é temporal e está num presente indefinido. As pessoas singulares mudam, as decisões são diversas, mas as instituições são supostamente imutáveis. Além disso, só se tornam instituições se se afastarem do evento para se constituírem como mecanismos e regras do jogo. Funcionam então num tempo móvel, mas que assegura o regresso ao mesmo. O tempo neutro e cíclico é, por excelência, o da vida política institucional.

 

A unidade de tempo que analisa e mede a vida política da sociedade é a duração de vida do principal corpo político. Na realidade, as ciências sociais não podem construir uma conceptualização do tempo. A história e todas as abordagens genéticas adoptam a concepção do tempo como linear, orientada e activa. É um tempo absoluto estruturado pelo calendário e pela periodização que o pesquisador constrói sobre o calendário. Este tempo social histórico permite organizar eventos e fenómenos duradouros de acordo com uma cronologia (Borella, 1990). A sociologia e todas as abordagens sincrónicas querem afastar-se deste tempo fluente a fim de basear a sua cientificidade no tempo relativo e neutro da mecânica. É o tempo dos sistemas e estruturas, específicos de cada sistema, uma dimensão simples do mecanismo que pode ser dispensada se o sistema for estável e fechado.

 

Esta dualidade é particularmente marcante em demografia, economia e política. Tanto assim que se duvida se estamos a falar das mesmas coisas. No primeiro caso, estamos a falar de objectos naturais, como teria dito Auguste Comte; no segundo, de objectos artificiais, sistemas abstractos e modelos. Na maior parte das vezes, ambos não têm mais nada a dizer um ao outro. Os historiadores só falam do passado e proíbem-se de qualquer explicação e especialmente de qualquer previsão. Outros, sociólogos, economistas, cientistas políticos, de facto falam do presente, mas como se fosse intemporal, isto é, eterno, e aspiram à previsibilidade dos seus modelos.

 

Mas em política não podemos cingir-nos a esta observação. A política como acção e a política como conhecimento são de facto inseparáveis. Como acção, a política é o controlo de um grupo social, do espaço que ocupa, do tempo que vive, por uns poucos ou pelo próprio grupo. Assim, é em primeiro lugar uma tentativa de controlar o tempo, mas inseparavelmente, é controlado por ele.

 

Tal como a política não pode fazer o tempo, também a política não pode fazer o tempo, mas tenta controlá-lo a fim de neutralizá-lo. Este esforço visa organizar o tempo político como uma realidade autónoma em relação ao tempo do mundo orientado e irreversível, e em relação ao tempo da história, em suma, em relação ao tempo que flui. A política procura estabelecer um tempo mecânico, neutro e reversível em que não há passado nem futuro. O fenómeno político só existe se observarmos esta situação de uma sociedade que se organiza para controlar a temporalidade do mundo e da história, para se instalar num presente permanente.

 

Por política, entendemos toda e qualquer acção que se efectiva pela capacidade de provocar ou retardar mudança e que é exercida pelos actores com poder de decisão sobre destinos colectivos. Com efeito, o tempo tem interessado à política, designadamente, enquanto um meio e um instrumento de calendarização de actividades ou como um plano de orçamentos e de avaliação da concretização de metas. Trata-se do tempo-calendário, o tempo como sistema métrico e cronológico (Araújo, 2018). Neste comentário, propomos argumentar que a política (que tanto se refere à acção dos representantes políticos, como a acção do indivíduo humano, no contexto da sua vida) se “esquece” frequentemente do tempo.

 

Explicadas as metamorfoses sobre o tempo, importa destacar que ao analisar a implementação de uma reforma (do sector público) ou de uma iniciativa governamental, existem dois tempos centrais para a boa realização ou não de tal pretensão política.

 

O primeiro momento podemos designá-lo de tempo técnico, que seria a possibilidade material e efectiva de colocar em prática um serviço – uma acção. Dito de outra forma, é a criação de condições objectivas para que a vontade do político seja materializada. Aqui não basta a promessa ou a mera intenção, é preciso que existam condições para o efeito, sejam elas de ordem material, financeira ou mesmo humana.

 

O segundo tempo é político, que é a vontade do implementador (entenda-se actor político de governação) para colocar em marcha uma determinada acção governativa, tendo como objectivo principal o cumprimento de uma promessa política. Seria a ‘entrega’, em forma de bens e serviços, aos cidadãos de um pacto político feito antes da eleição do governante.

 

Trazemos esses dois tempos para perceber de que forma os mesmos podem ter aplicação, face ao momento de crise que, mais do que sanitária, deve ser entendida como tendo pendor político, sobretudo porque demanda dos governantes a tomada de acções para minimização dos impactos que podem afectar a sua reeleição ou mesmo manutenção em determinados cargos de exercício de poder.

 

O tempo técnico em face desta pandemia seria a criação de vacinas ou soluções médicas que possibilitem a erradicação da doença, mas enquanto essa acção não se concretiza de todo, o actor político precisa acelerar a sua marcha para que possa cumprir as juras que fez ao seu eleitorado, sobretudo antes da pandemia – referimo-nos aqui ao tempo político.

 

Pensamos que vivemos hoje a contradição invisível de dois tempos que procuram coexistir num mesmo espaço que podemos designar de arena social, onde enquanto que os cidadãos (aqui entendidos como eleitores) demandam por protecção em prol da sua saúde, o político (governante) preocupa-se em garantir que, ao mesmo tempo que disponibiliza serviços de saúde, deve colocar em marcha as suas promessas políticas (que vão para além de gerir uma pandemia) tendo em vista os próximos pleitos eleitorais – uma campanha política permanente. Se bem feita tal protecção sanitária, pode valer claramente a reeleição de um político ou do seu partido. Esta equação não deve ser surpreendente, se tivermos em conta a racionalidade incompleta que guia qualquer actor político, cuja preocupação maior passa pela perpetuação do poder (Marrel, 2018).

 

Em outros termos, diríamos que os actores políticos têm consciência da importância do inesperado e do desconhecido no desenvolvimento da tomada de decisão e de políticas. Todavia, a sua visão de tempo na política é fundamentalmente de carácter sequencial, linear e delimitada pela prevalência de datas e de prazos. Uns, à escala anual, como planos de actividade, programas ou orçamentos, e outros a uma escala mais longa. Na base, pode afirmar-se que predomina o conceito de tempo-recurso. As técnicas da acção política utilizam o tempo como recurso e meio de acção, e não apenas como objecto de acção, o que demonstra a transformação do papel da política. Já não se trata de uma questão de poder político que estabelece normas para a actividade humana e social, que de outra forma é deixada livre. É claro que o Estado continua a ser responsável por esta tarefa, estabelece e controla as regras do jogo, mas também se torna um dos jogadores.

 

Esta situação é bem conhecida. O estado neutro, liberal, mínimo ou modesto é a política no presente permanente, enquanto que o estado intervencionista, assistencialista e providencial é a política em acção no tempo histórico. Estratega e táctico, o actor estatal actua num tempo prospectivo e finalizado, que se torna um recurso raro como os outros recursos necessários para qualquer acção (meios humanos e financeiros, espaço e técnicas, materiais e intelectuais).

 

Desde as acções mais simples, como as obras públicas, até às mais complexas, como o planeamento completo de toda a vida económica e social, o tempo histórico-social torna-se um recurso raro. Nas democracias liberais, cuja acção política é canalizada através de eleições populares, o intervalo entre as eleições fornece a matéria-prima temporal para a acção dos órgãos políticos eleitos. Os regimes autoritários ou totalitários, ao recusarem as eleições e/ou mandatos limitados, pretendem fornecer-se com uma oferta inesgotável de tempo.

 

Chegados aqui, sobressaem duas questões que nos parecem fundamentais: como garantir a articulação entre o tempo e a política durante a gestão de uma pandemia? Seria esta uma oportunidade ou perigo político?

 

*Sugestões de leitura

 

  • Emília Rodrigues Araújo. Para uma perspetiva aplicada do tempo na política. Revista de Estudios Sociales. 65. 2018. pp. 63-72.
  • France Culture. Le politique réduit-il le temps de la politique?. Podcast. 2017
  • François Borella. Le temps et la politique. Critique du savoir politique. Presses Universitaires de France. 1990. pp. 163-182.
  • Guillaume Marrel et al. Temporalité(s) politique(s): Le temps dans laction politique collective. De Boeck. Paris. 2018.
segunda-feira, 18 janeiro 2021 06:57

O político tramado

Na “pátria dos heróis” facilmente são criados “falsos vilões e paladinos do povo”. Na Matola, em meados de 2013, era derrubado um edil bastante protegido, que tudo inaugurava, mesmo o que não lhe dizia respeito. Em meio à tempestade, algumas figuras sobressaíam e os detentores do poder não viam o mesmo com bons olhos. 
 
Algum tempo depois, a “praga” instalada na autarquia mais extensa e das mais concorridas na “terra dos desmentidos” foi removida. Tinha que se encontrar um substituto (coitado!). Na lista dos que mais “barulho” fizeram, encontrou-se um homem, doptado de fortes habilidades humanas, competências técnicas, princípios éticos e com uma avalanche de apoio das massas.
 
O homem era a pessoa certa para gerir a Matola que todos queriam. Infelizmente, no meio daquele “ciclone político e partidário”, alguém tinha que pagar pelo caldo derramado das alas detentoras do poder. Nisto, a ousadia de combater e afrontar a incompetência de um protegido da oligarquia partidária víria a custar muito caro ao homem.
 
Foi o que aconteceu. Eles haviam mexido o filhote da leoa. O grupo tentou rir-se do crocodilo, antes de atravessar o rio. Zombaram-se da monarquia interna a nível da província. O sarcasmo havia sido demasiadamente usado naquele bestseller político. Além disso, a vassoura da feitiçeira tinha sido tocada e usada para atacar o filhote querido e amado.
 
Dias, semanas e meses passaram. A autarquia estava numa gestão dos que combateram pela transparência e qualidade governativa dos munícipes matolenses. Algo tinha que ser feito para travar o jovem revolucionário, porque o trabalho feito demonstrava que o homem tinha tudo para ser o candidato e vencedor das autárquicas de 2014.
 
Várias linhas operativas de sabotagem foram montadas e enviadas para o campo. Levantamentos bancários, da vida, académico, profissional e empresarial foram feitos. Tinha que haver uma falha. Não era possível, diante de tanta súcia partidária, existir uma virgem imaculada como aquela.
 
A tesão e tensão era tanta no seio da oligarquia partidária cinquentenária. O pénis não conseguia deixar de estar erecto. A bombril pedia, cada vez mais, por mais rounds. Era preciso encontrar o meio para ejaculação ou atingir o orgasmo. Tantas rameiras passaram pelo porongo erecto insaciável. Vários gigôlos tentaram e não conseguiram vencer a tusa da bombril. O homem tinha ficha limpa e tudo para avançar a tão querida e desejada liderança da Matola. 
 
Inesperadamente, uma esperança de última-hora surgiu... Os homens, enviados em diferentes linhas operativas da sabotagem, acharam uma coisa pequena nos movimentos bancários da mulher do “jovem político atrevido” que ousou em confrontar as doutrinas cinquentenárias do partido que libertou Mosambike do jugo imperial e colonial português.
 
A esposa do “Rango da Matola” trabalhava no departamento das finanças no Ministério da Administração Estatal, onde processava, fazia os balancetes e os lançamentos dos salários. A jovem mulher, atarefada e sempre dedicada ao trabalho, profissional reconhecida no ofício e que procurava, constantemente, cumprir as metas, acabou cometendo um “erro perdulário”, que, no entanto, lhes custou muito caro.
 
A mulher do “político tramado”, efectuando pagamentos de serviços prestados pelo seu sector laboral a forncedores, acabou transferindo, supostamente por erro, uma quantia de 175 mil meticais para uma conta conjunta do casal, que tinha mais de 20 milhões de meticais, valores que se assumem  pertencer à empresa particular do “Rango da Matola”.
A transferência falhada da mulher para uma conta bancária do casal, a qual também era da empresa deles, retirou o véu da virgem imaculada que tanto os leões quanto as leoas caçavam. 
 
Finalmente, o porongo erecto despejou o esperma na cara e nos mamilos da primeira meretriz que apareceu. O orgasmo foi atingido com um simples beijo. Sucede que a ansiedade era tanta e os nervosos quase explodiam a cabeça da cúpula toda. Os batuques já não tocavam o som do Mapiko/ Nhambaro/ Tufo ou Marrabenta. A orquestra tinha que encontrar novas formas de maestria. Por fim, a hora da vingança foi anunciada: a justiça espantalha tinha que funcionar para os senhorios do glorioso.
 
Foi feita a cama para o “Rango da Matola” dormir. O homem acabou sendo constituído arguido, acusado de cumplicidade por defraudação e ocultação de crime financeiro. O adversário do protegido e discípulo do mestre do calote secular, Chopstick, já tinha o passe livre para chegar ao trono. 
 
Enquanto isso, o “Rango” combatia na justiça procurando provar que não tinha nada a ver com aquela situação e que a mulher havia falhado, para além do referido valor ser uma simples gota de água no oceano. Mesmo defendido por um dos melhores advogados da praça, o homem foi condenado a oito anos de prisão, por um crime que ele não cometeu e a mulher, que supostamente desviou o dinheiro, voltou para casa inocentada. 
 
A informação sobre a sentença era comemorada nas vermelhadas e badaladas campanhas. Brindes de whiskys, vinhos e champagnes eram feitos, porém, escondidos dos holofotes da mídia crítica, que poderia afectar negativamente a imagem do partido e do candidato, a favor da oposição.
 
O homem havia sido atirado para as masmorras. Inconformado e com a honra manchada, o jovem Rango recorreu da sentença. Metidos a competentes, os juízes da dita Secção reduziram-na para três anos, mas com pena suspensa. Entretanto, o homem, insistiu. Escreveu para o Supremo, pedindo que o seu caso fosse analisado no âmbito da jurisprudência (igualdade de direitos/ sem dualidades de critérios). 
 
No Supremo, a esperança de que a honra seria reposta era tanta. A luta pelo poder político seria recomeçada: o sistema teria um novo adversário, um osso duro de roer, porém a esperança desmoronou. Ora, sucede que no Supremo, o homem tinha lá o seu padrinho de casamento, um pai, irmão e companheiro de longas batalhas. Com a jurisprudência criando fortes dores de cabeça nos juízes presidentes do Supremo, aliada à pressão externa da mão política, num belo dia, cumprindo uma agenda política e devidamente desenhada, o “admirado padrinho” foi mandatado para convencer o homem a retirar o processo no âmbito da jurisprudência, visto que estava a lutar demais com o sistema, na sua totalidade, e pediu para submeter um novo requerimento solicitando o arquivamento do processo por erros judiciais.
 
Quando tudo indicava que o “acordo de cavalheiros” entre o mediador (padrinho) e os leões ferozes havia sido suprido, eis que o último golpe de Shaolin foi aplicado. O colectivo de juízes presidentes do Supremo enviou o homem para os calabouços, dando três anos de prisão efectiva e matando todas as possibilidades de o homem continuar a sua vida com a família. 
 
O Rango da Matola foi destruído social, política e juridicamente. Contudo, ele permaneceu espiritual e epistemologicamente livre.
 
Fica uma lição: a luta de homens iguais morre quando, em vida, não encontramos discípulos a altura de Platão e Aristóteles. O Rango da Matola foi mais um político convicto tramado, entre os vários que, dia-a-dia, vivem situações similares na família, no sector de trabalho, na mesa de copos com amigos, discotecas, no partido, na igreja e noutros locais.
 
Segundo informações, os pássaros dizem que, após ele ter vivido nas masmorras, atirado pelo. onde vivia como um menino da caverna de Platão, contemplando o mundo no interior daquele pavilhão pintado de branco, tentando compreender o fado e o valor da vida. 
 
Hoje, habituado com o canto dos pássaros e o uivo dos lobos, o homem pretende viver ao lado dos apóstolos do bem...Onde é, e quem são?
 
Omardine Omar
Janeiro de 2021   
segunda-feira, 18 janeiro 2021 05:44

Takdir é o país

Imagine que amanhã a gerência do Takdir convoque uma conferência de imprensa para anunciar que tudo está resolvido porque contratou novos cozinheiros. Ou, então, imagine que o gerente diga que a imundície continua na mesma, mas que houve remodelações: aquele que fritava batatas vai passar a grelhar frangos, o que grelhava frangos vai pilar piri-piri, o que tratava do piri-piri vai temperar frangos e o temperador de frangos vai passar a receber os dinheiros. E prontos! Já está! O chão, o moedor de carnes, as frigideiras e os bidões não foram lavados e não precisam de ser higienizados. O piri-piri continua ali mesmo ao relento. O carvão continua aos molhos ao lado do papel de cáqui.
 
Pois é! Acho que estaremos felicíssimos porque é isso que temos visto na Cê-Ene-É. Só muda o maestro. Mudam os membros, mas a porcalhada institucional continua na mesma. A orquestra continua cada vez mais desafinada, com as trombetas entupidas, os pianos roucos, os violoncelos constipados e os microfones gagos. Para piorar, existe uma pauta, mas a orquestra não a segue. Não há harmonia. Cada membro vem do coral de uma igreja diferente e faz de tudo para que sejam cantadas as suas sinfonias. E nesse fusuê todo, a música que se canta de forma esmagadora, retumbante, asfixiante, qualquerizante e pequenizante é a do coral maioritário. E como o pentagrama desta orquestra filarmônica é simples enfeite, o maestro faz gestos que o Pastor da igreja maioritária manda. O maestro faz gestos a remoto controlo.
 
A Cê-Ene-É é um autêntico Takdir onde a ordem e a regra escasseiam. Uma cozinha imunda onde a culpa recai para o cozinheiro. Um Takdir onde o povo se contenta com uma simples mudança do 'Chef'. Uma cozinha com ingredientes, mas sem receitas. Um avião avariado que, ao invés de levarmos à oficina, mudamos de piloto a cada novo vôo. 
 
O problema da Cê-Ene-É não são as pessoas. Não são os membros. O problema não são os presidentes que ali passaram e irão passar. O problema não é a fé, a altura da túnica ou o tamanho da toga do presidente. O problema da Cê-Ene-É é ela própria: a Cê-Ene-É. O seu modelo. A sua constituição. A sua génese que faz com que os seus objectivos, missão, visão e valores sejam meros enfeites. O presidente da Cê-Ene-É é o elo mais fraco desta jogada toda. É um saco de pancada colocado ali para relaxar os nervos do povo. É um espantalho colocado na machamba para atrapalhar macacos pouco experientes. O modelo não lhe permite que exerça o poder na sua plenitude, nem ao menos lhe permite que seja ético. 
 
Com esta configuração da Cê-Ene-É mesmo com Cristo, Maomé, Buda, Sadhu, Dalai Lama, Abraão, etecetera, as urnas vão continuar a sair pela janela, a É-Dê-Eme vai continuar a promover apagões deliberados, Gaza vai continuar 20 anos a frente, os votos dos soutiens e os de baixo dos cajueiros vão continuar a ser validados. O actual modelo da Cê-Ene-É só agrada aos próprios partidos políticos que a constituem. É uma boa forma de garantir tacho. Não será o presidente da Cê-Ene-É quem vai acabar com isso. O debate não é impor regras. Não! Os partidos parlamentares rezam para que os assentos sejam aumentados para conseguirem colocar mais membros. Os extra-parlamentares rezam para que os assentos da Cê-Ene-É sejam expandidos para a periferia para eles também conseguirem o tacho. Todos têm consciência que este modelo é obsoleto, mas ninguém fala. Preferem responsabilizar o bobo da corte.
 
Não há dúvidas que o Bispo Dom Carlos Matsinhe é mais um cidadão de boa fé, de reconhecida boa índole e bem intencionado que foi colocado como capitão de um barco sem rumo. Se não chegar a bom porto, não será por sua culpa, assim como também não foi culpa de Mazula, Taimo, Litsure, Leopoldo e Carimo. É o barco que foi construído propositadamente sem leme... para não atracar em porto algum. É um barco pilotado a remoto a partir de uma torre de controlo. O capitão só serve para assinar documentos. Enquanto não colocarem leme neste navio, enquanto não entregarem os binóculos, a bússola e a carta hidrográfica ao capitão, nada feito. Continuaremos à deriva nessas tempestades democráticas, onde todo o vento não nos será favorável, e trocando de capitão a cada maré.
 
É isso aí! Se o dono do Takdir fosse um gajo que quer desenvolver o país, amanhã mesmo anunciava a contratação de novos empregados, com novo uniforme, e mantinha o resto como está. Chamava a imprensa e apresentava o novo 'Chef' grifado de novo dólmã bem engomado, caprichado e perfumado. O gajo ia jurar, ao vivo, dedicar todas as suas energias e sabedoria para oferecer o melhor frango da praça. Acredito que todos iam gramar. É assim que as coisas funcionam aqui: arranjar novo personagem, fazer juramento, manter o resto e o país vai andando. 
 
Pois é! Takdir é o país. É patriótico ser Takdir.
 
- Co'licença!
 
 
 
 
 
quinta-feira, 14 janeiro 2021 08:41

Carta de mortos aos ladrões de caixões

"A vida má, sem moderação, desprovida de entendimento e de respeito pelo sagrado não é uma vida má, mas um morrer lentamente." Demócrito de Abdera – 460 a.C. – 371 a. C. Filósofo grego

 

Não vos devíamos saudar, mas a realidade espiritual obriga-nos a fazermos. Esperamos que a vossa vida no mundo dos seres vivos e visíveis esteja a correr devidamente, porque nós por cá nada vai bem, pelo menos, no que concerne ao descanso eterno dos nossos corpos. As nossas almas ainda contemplam o mundo e o além.

 

Escrevemos num momento em que os nossos dias já não são os mesmos; tornaram-se amargos. Quando deixamos o mundo dos vivos e descemos à cova tínhamos um fardo de certeza: teremos um bom descanso. Nenhum de nós queria estar aqui. Gostaríamos de continuar vivos, a viver do pouco que tínhamos ou mesmo à francesa. Talvez estaríamos, agora, murmurando com máscaras nas ruas como pessoas. Mas o anjo da morte carimbou-nos os passaportes sem o nosso consentimento; e atravessamos a fronteira; cá estamos: mortos.

 

As nossas famílias, visando garantir um repouso eterno para os nossos corpos deitados, adquiriram caixões em função do nosso status social, político e financeiro; embora a areia que nos cobre seja a mesma para qualquer um que tenha nascido e morrido. O que elas não sabiam é de que o caixão adquirido na funerária foi desenterrado de um vizinho de campa e colega da vida espiritual.

 

Os ladrões perderam a "honra da ladroagem" e violaram todos códigos da classe dos gatunos. Já não bastava o roubo de rosas, de quinquilharias, lápides com datas e nomes e quadros prateados ou bronzeados com fotografias! Eles agora levam também o caixão e sepultam corpos indignamente.

 

Os ladrões e os proprietários das funerárias vivem como se fossem imortais. Roubam até a cama de um ser indefeso e o pior, inanimado, sem vida! A busca pelo dinheiro fácil os faz acreditarem que o luto de uma família é negócio para as gangs da Lhanguene, Michafutene, Mahotas, Texlom, Saudade, Muxará, Quichanga, Manga ou Coalane. Os ladrões de caixões vivem para além dos limites da (in)moralidade. De uma coisa temos certeza: todo ser-vivo, um dia, morrerá e a terra tornar-se-á o local onde todos os corpos serão sepultados como lixo humano. O que adianta assaltar um defunto e ainda sentir orgulho disso?

 

Que espécie de seres humanos actualmente habitam no mundo? No nosso tempo não era assim. Uma espécie que vê a maldita morte como uma oportunidade para abrir uma multinacional que gere caixões desenterrados em nossas casas! A imoralidade social e financeira atingiu os píncaros da decadência. Ontem roubavam flores, vasos e hoje roubam caixões. Quantas cerimónias fúnebres foram realizadas usando-se os mesmos caixões? E amanhã o que venderão? Com certeza os nossos restos ósseos ou mesmo a areia do cemitério…

 

Acreditem que devido a demanda no negócio de vendas de caixões muitas famílias devem estar a prestar homenagens ou a visitar campas com corpos de outros defuntos. A estupidez é tanta que até existem grupos criados para tal.

 

O anjo da morte é impiedoso na hora que dita que o corpo deve parir a alma. As funerárias são impiedosas com as famílias que procuram pelos seus serviços no momento em que um parente se vai. A saga dos ladrões de caixões revela que a busca por alternativas de sobrevivência, em Moçambique não tem limites, até alguns podem mentir que vendem a "imortalidade"…