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segunda-feira, 03 dezembro 2018 16:40

Sobre as estórias da História da Ilha e a memória dos elefantes de Moçambique

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O fascínio exercido pela Ilha de Moçambique, sem par em Moçambique e na linha dos grandes tesouros patrimoniais da Humanidade, explica o muito que se tem escrito sobre ela, em termos de História, Arquitectura, Religião, Cultura, Poesia. A Ilha, Muipiti, tem sido um tema irresistível para os poetas. N“Os Lusíadas”, Camões dedicou-lhe uma estrofe, embora não das mais notáveis do épico. Seguiram-se outros grandes poetas: Alberto de Lacerda, Virgílio de Lemos, Glória de Sant’Anna, Luís Carlos Patraquim, Nelson Saúte, outros, e o meu preferido, Rui Knopfli, com o seu extraordinário livro de poesia e fotografia, “A Ilha de Próspero”, ponte entre a Ilha e o Bardo.

 

A fortaleza mergulha no mar

os cansados flancos

e sonha com impossíveis

naves moiras.

 

Neste ano, quando se comemoram duzentos anos da elevação da Ilha de Moçambique à categoria de cidade, Ricardo Barradas oferece-nos agora dois belos livros, fruto de muita investigação, que nos ajudam a mais e melhor conhecer este tesouro que foi a antiga capital deste país. Estes dois livros, “Ilha de Moçambique – estórias da sua história” e “Memória dos elefantes de Moçambique”, apresentam-nos, de modo acessível, em linguagem escorreita, português sem entorses, o que o autor pesquisou em autores antigos e não tão antigos, pondo à nossa disposição um mosaico de imagens do muito que, ao longo de séculos, se foi passando nesta região de Moçambique, tendo a Ilha como ponto central.

 

No primeiro livro, o das “estórias da sua história”, somos levados numa viagem fascinante, ao longo dos onze capítulos que o compõem. Viagem iniciada com uma descrição da Ilha de Moçambique na época em que foi elevada à categoria de cidade, ou seja, no primeiro quartel do século dezanove, passando pelos seus cemitérios, contando-nos das gentes que a habitaram ou que com elas interagiram, em capítulos dedicados aos baneanes e aos ajauas da feira do Mossuril. Não podiam faltar, neste livro de “estórias da história”, as narrações dos conflitos militares, tanto dos portugueses com outros pretendentes coloniais, nomeadamente os holandeses, como dos portugueses com povos moçambicanos, com um capítulo dedicado a Mouzinho de Albuquerque e à sua nada vitoriosa campanha contra os namarrais.

 

O autor transcreve passagens de autores diversos, tornando a leitura diversificada e motivadora. Veja-se esta, da autoria de Frei Bartolomeu dos Mártires, onde ele classifica os habitantes da Ilha por volta de 1820: Chamo Reinóis a todos os portugueses filhos de Portugal e do Brasil, e famílias, que descendem delles; Asiáticos chamo a todos os filhos da Índia, que distinguirei em Christão, Mahometanos e sectários de Brahma e Visnú; Africanos são todos os indígenas, incluída a 3ª raça proveniente destes e dos Mouros.  As designações já, por si, elevavam ou rebaixavam determinados grupos populacionais. Os hindus, a quem os portugueses chamavam de baneanes, tiveram uma enorme importância no desenvolvimento da Ilha, e o autor dedica-lhes particular atenção num capítulo específico, justificado com a frase que vai buscar a um texto do historiador Alexandre Lobato, de 1945:

 

Pouca gente saberá que a Ilha de Moçambique foi, até há meio século, propriedade de grande parte de monhés portugueses de Damão e Diu. São também de interessante leitura os capítulos dedicados à relação da Ilha de Moçambique com Portugal, o Reino Unido de Portugal e do Brasil; à difícil navegação, condicionada pelas monções e pelos tufões do Oceano Índico, os monomocaios; à importância do comércio de panos. E, como os factos com que a História se constrói permitem elaborações teóricas diversas, o autor incluiu um capítulo com um título ironicamente provocador: O mito dos 500 anos de colonialismo. Mito propagado pela potência colonizadora para, em compita com outras potências imperiais europeias, justificar a posse do território. Mito continuado pela propaganda salazarista para evocar glórias que justificassem a exploração da colónia e da sua população e, finalmente, para justificar uma guerra cruel e injustificável. Mas, ironia do destino, mito aproveitado também pelos libertadores da pátria para uma mais forte mobilização do povo para o combate final contra o ocupante colonial.

 

O segundo livro, “Memória dos elefantes de Moçambique” é mais breve do que o anterior, uma monografia onde se percebe que confluem dois amores de Ricardo Barradas: a Ilha de Moçambique e a Natureza, esta corporizada nestes magníficos animais que vemos, horrorizados, à beira da extinção no nosso país, perante o que não sei se é impotência, complacência ou cumplicidade de demasiada gente. O declínio do número de elefantes em Moçambique é assustador: estimavam-se em cinquenta mil na altura da Independência, já eram apenas cerca de vinte mil em 2010, o número caiu para metade em 2015-2016.

 

O massacre dos elefantes começou séculos antes da nossa Independência. Escreve o autor: O elefante foi fulcral para o desenvolvimento da história do território que hoje é Moçambique durante séculos e especialmente nos anos 1700, até por volta de 1900. Durante quase dois séculos, o marfim foi o produto de eleição para exportação a partir da Ilha de Moçambique. Ricardo Barradas cita Rita Ferreira, que estimou que, ao longo de quatrocentos anos, tenham sido mortos mais de um milhão de elefantes, apenas na região a Sul do Save. Ao longo do livro, vamos encontrando histórias, algumas burlescas, como os mitos sobre os órgãos genitais dos elefantes ou sobre a sua longevidade, outras interessantes, como as dos elefantes enviados como ofertas entre reis e papas.

 

Parte importante do livro é dedicada ao comércio do marfim, que atingiu o seu auge entre meados do século dezoito e o fim do século dezanove, altura em que a Ilha de Moçambique, em fins do século dezoito, chegou a exportar quase duzentas toneladas de marfim por ano. Se se tomar um peso médio de dez quilos por ponta, tal corresponderia a dez mil elefantes mortos em apenas um ano! Mas, escreve o autor, a importância da Ilha de Moçambique decresceu no século dezanove pela concorrência de outros comerciantes no Vale do Zambeze, que passaram a usar outros portos para a exportação do marfim, cujo valor continuou a crescer.

 

No livro, fala-se ainda da constituição dos Prazos da Coroa e da sua evolução, e do papel que os exércitos privados formados a partir de populações escravizadas, os chicunda, tiveram como caçadores de elefantes. É muito interessante a descrição da metodologia das caçadas, as práticas mágicas, os caravaneiros. São aspectos curiosos a incursão que o livro faz sobre os elefantes na região de Maputo e Zululândia e sobre a colecção de fetos em vários estádios de evolução em exibição no Museu de História Natural, única no mundo. Estes dois excelentes livros de Ricardo Barradas são enriquecidos por listas bibliográficas, imagens e fotos, num grafismo que as enquadra muito bem com o texto. Só me resta agradecer ao Ricardo a oportunidade que me deu de, publicamente, lhe dar os parabéns por este magnífico contributo, que nos permite ficarmos todos a saber um pouco mais sobre esta nossa maravilhosa Ilha, de Prósperos e Mirandas, de Ariéis, de libertados Calibans

 

*Texto de apresentação de dois livros sobre a Ilha de Moçambique, nomeadamente “Ilha de Moçambique - Estórias da sua Historia”e “Memória dos Elefantes de Moçambique”, de Ricardo Barradas.

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